"Uma bela maneira de lembrar um homem que sempre privilegiou o diálogo teológico e o aprofundamento acurado da tradição é justamente tecer um diálogo em torno dele. Por isso, apreciei bastante a iniciativa de Marinella Perroni, que com Elizabeth Green e Alberto Dal Maso constrói, em diálogo, uma reevocação muito profunda da figura e personalidade de Rosino Gibellini. Agradeço a ela por querer publicar o texto neste blog", escreve o teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, ao comentar o diálogo promovido por Marinella Perroni e publicado no blog Come Se Non, 29-11-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Um dia – acredito que em 2011, mas não tenho certeza – na Cidadela de Assis, sem saber onde sentar para almoçar, acabei à mesa com um senhor distinto e idoso com modos de outros tempos. Um verdadeiro cavalheiro, que se apresentou como Rosino e com quem (nem preciso dizer) entabulei uma excelente conversa”.
Essas palavras de Elizabeth Green, teóloga e pastora batista, me levaram a escrever um livro de memórias do Pe. Rosino Gibellini que, de alguma forma, refletisse a sua busca constante por dar voz ao inédito. Então pedi a Alberto Dal Maso, redator da Editora Queriniana, e à própria Green que escrevessem juntos uma lembrança sobre este intelectual que engrandeceu a teologia italiana, não escrevendo um panegírico, mas simplesmente "falando sobre ele". E, sobretudo, deixando entender porque nós, teólogas italianas, sentimos uma grande gratidão para com ele.
Na foto, Rosino Gibellini é o primeiro à esquerda. No centro do grupo de teólogos, estão Karl Barth e Karl Rahner (Foto: Reprodução/Blog Come Se Non)
Marinella Perroni: Muitos de nós tivemos a oportunidade de conhecer Gibellini, de perceber sua qualidade humana e intelectual, mas ter com ele uma relação profissional, trabalhar lado a lado nos mesmos projetos, mesmo com papéis diferentes, é outra coisa...
Alberto Dal Maso: Fui contratado pela Queriniana em 1998, portanto conheci o Gibellini de mais de setenta anos, aquele mais reflexivo, pensativo. Não o jovem que em algumas fotos em preto e branco pode ser visto por trás de Karl Barth, no final de uma fila de teólogos. Não o personagem mais seguro de si que está ao lado de Karl Rahner em uma fotografia, entretendo-o em uma conversa cara a cara. Não o homem de cinquenta anos que, em 1979, participou pessoalmente da conferência do CELAM em Puebla junto com o Pe. Bartolomeu Sorge. Não: diante dos meus olhos de jovem redator apareceu primeiro o Rosino da maturidade, que se entregava com parcimônia e severidade, exceto quando se entusiasmava por poder reivindicar: “Eu estava lá”. Claro: por trás de sua cabeleira branca e revolta às vezes se adivinhava o rebelde de Sessenta e oito, por trás de certas posturas nervosas podia se entrever as garras do leão orgulhoso que ele tinha sido. Mas então, com o passar dos anos, aquela figura se desvaneceu imperceptivelmente no idoso sábio, mais lento em seus movimentos, mais condescendente, mais inclinado a contar sua história – sempre com grande consciência de si.
Marinella Perroni: Pelo pouco que pude conhecer sobre ele e apesar de sempre ter sido muito cordial comigo, não devia ter tido um caráter fácil.
Alberto Dal Maso: Ele não era do tipo que encorajava você, benigno, com um tapinha nas costas.
Ele não era paternal, no sentido mais afetuoso do termo. Era bastante seco, frio, longe de ser expansivo. Eu diria imperativo. Isso me causava um temor reverencial. Afinal, ele era um homem "antiquado", a quem uma rígida formação havia inculcado não expressar sentimentos, nunca demonstrar nenhuma fraqueza. Ocasionalmente, porém, era temperamental. Nos eventuais momentos de profunda irritação, ele se enfurecia e gritava na cara de quem estivesse presente, incutindo um terror sagrado. Diante das frustrações mais graves, sobretudo se imprevistas, batia os pés com raiva, metaforicamente mas não muito: e aí - enquanto as pernas tremiam - você adivinhava a criança sozinha e ferida em seu orgulho que ele tinha sido, filho único da mãe Clementina, mãe solteira em pleno período fascista, por quem tinha infinita estima.
Marinella Perroni: Talvez por isso tenha prestado uma atenção particular ao pensamento e ao trabalho teológico das mulheres. Nós, teólogas feministas, sempre tivemos um aguçado senso da importância da genealogia, estamos atentas a reconhecer aquelas que abriram o caminho, nos precederam e nos apoiaram e podemos dizer que Gibellini é parte integrante de nossa biografia coletiva de teólogas.
Elizabeth Green: Como em algumas genealogias da Bíblia, geralmente todas masculinas, às vezes aparece o nome de alguma mulher, até nas suas genealogias intelectuais que as mulheres se esforçam para reconstruir, aparece o nome de algum homem. Rosino Gibellini é um deles. Devemos à sua ampla visão e abertura de espírito e de coração como diretor da Queriniana que, poucos anos após sua publicação no exterior, chegaram à Itália as primeiras obras da então nascente teologia feminista, tanto no campo católico quanto no protestante. Suas escolhas foram argutas pois a antologia que editou junto com Mary Hunt, La sfida del femminismo alla teologia (1980) traz alguns ensaios fundamentais para a reflexão feminista que ainda são – infelizmente devemos dizer – atuais. O livro da teóloga protestante Letty Russell, Teologia femminista (1977), relacionava-a com a teologia da libertação, outro filão que Gibellini se apressava em publicar, embora não fosse inteiramente apreciado pelas hierarquias eclesiásticas.
Alberto Dal Maso: Amigo de muitas mulheres, ele era amigo de poucos homens escolhidos. Nas mulheres e em seu pensamento, inclusive teológico, ele via o futuro. À sua abertura instintiva ao crédito para com o mundo feminino, nada era tão estranho quanto o desprezo típico de um certo mundo clerical. Pelo contrário: admirava e apreciava o trabalho das mulheres, suas lutas, com grande respeito e curiosidade. E isso, na época, exigia coragem: era uma aposta com poucas chances de ganhar, tinha elementos de inovação que beiravam o escandaloso.
Elizabeth Green: Certamente não podemos subestimar o fato de que foi ele quem tirou a teologia feminista daquele apartheid ao qual é sempre condenada: a teologia feminista e aquelas que a exercem não têm uma vida fácil em nenhum país, e a Itália certamente não é exceção. Rosino Gibellini entendeu que a grande história do pensamento teológico é feita tanto de protagonistas quanto de uma pluralidade de escolas acadêmicas, mas também de vertentes que nasceram e foram crescendo por dentro da vida. Por isso, grande conhecedor da teologia do século breve em sua monumental Teologia del XX secolo (1992), não deixa de dedicar um capítulo à teologia feminista, tema que voltará a ser proposto no olhar que lança em Prospettive teologiche per il XXI secolo (2003) no milênio recém iniciado. Também não se pode esquecer seu empenho pela publicação da revista Concilium que nos apresentou pequenas e grandes vozes da teologia internacional sobre os mais diversos temas, incluindo, por muito tempo, a teologia feminista em suas múltiplas nuances.
Alberto Dal Maso: Por outro lado, Gibellini podia contar com uma curiosidade sem limites, em 360 graus e com uma memória férrea e prodigiosa. Seus blocos de nota são lendários, sempre à mão no bolso do paletó, com os quais sempre tomava notas com um pequeno lápis: seja por uma ideia oferecida por uma leitura, seja por uma intuição improvisada. Seu caderninho de notas era a tela de um radar permanentemente ligado: bastava um telefonema da Alemanha, uma referência ouvida por acaso na TV, o quadro de avisos de uma igreja sul-americana, uma crítica no Sole24Ore, uma exposição sobre van Gogh, uma observação inteligente numa conferência, e ele escrevia. Anotava nomes e datas, acima de tudo. Ou palavras-chave. Que depois viravam livros, senão mesmo séries editoriais. Ele estava sempre sedento por conhecer a visão de mundo alheia, sempre ávido por comparações e por experimentar novas perspectivas, o que o fazia sentir alegria e espanto. Que o faziam correr rápido, com o olho e com o pensamento, sempre no ponto antes dos outros (editores e não), vencendo-os no tempo. Mas ele me surpreendia, jovem redator, pela profusão de referências a fatos e pessoas ou pelo conhecimento assombroso do catálogo editorial - que ele mesmo construiu - nos mínimos detalhes. Era um concentrado de memória histórica. Quem o conheceu garante que mais do que as atas de anos passados, para as reuniões do conselho internacional da Concilium valia o seu relato das decisões originalmente tomadas. Também adorava viajar para além das fronteiras nacionais, conhecer novas culturas, movimentar-se como um batedor livre, conhecer pessoas originais, espreitar em suas livrarias e bibliotecas, saborear a boa comida e o bom vinho dos países que visitava.
Marinella Perroni: E, de volta à Itália, ele se esforçava para escancarar as janelas e deixar o ar mudar, tonando menos provinciano o nosso pequeno mundo antigo. Talvez ele se interpretasse como uma ponte entre nós e o resto do mundo.
Alberto Dal Maso: Ele se mantinha constantemente atualizado sobre as últimas tendências: da teologia, mas não só. Ao lado da leitura de jornais, a sétima arte era para ele uma fonte de conhecimento incomparável: para farejar as tendências de costumes, para se manter atualizado com os temas que atraem o grande público. O seu radar interior não cessava de monitorar a situação, o espírito do tempo, para “interceptar” (esse era o verbo que gostava de repetir) lugares teológicos insuspeitos – mesmo seculares. Tinha um olhar aberto e ecumênico sobre as coisas: sabia pensar como um cosmopolita. Esse seu alcance universal levou-o a relativizar muitas pequenas querelas da nossa casa, evitando cair em fáceis provincianismos. “Quais são as línguas faladas por mais pessoas no mundo?”. As línguas estrangeiras, usadas com elegância ou com descarado sotaque macarrônico, lhe serviram para construir relações. Isso falava da sua teimosia em chegar a todo custo onde ninguém mais ousava ir. Mesmo de uma forma pouco ortodoxa, se fosse o caso.
Marinella Perroni: Mas seus absolutos eram certamente os livros e, talvez, sua primeira razão de viver. Aliás, eram sua única missão. Na verdade, eram parte dele, embutidos em seu ser. Como um concertista quando é um só com seu instrumento.
Alberto Dal Maso: Com os livros tinha uma relação física, magnética, antes mesmo de uma relação intelectual; ouso dizer uma relação sensual: “Os livros para mim são como as mulheres para os homens: os belos raramente me deixam indiferente. Pelo contrário: não os deixo escapar!”. Mas seus interesses iam além. Não era por ostentação de erudição, mas por autêntica paixão que citava obras de arte, do Renascimento aos contemporâneos: “Em 2013 desfrutei de uma monografia sobre Edward Hopper no MoMA de Nova Iorque: inesquecível!”. Ele também adorava música clássica e frequentava os cinemas e cineclubes da cidade.
No entanto, tinha uma ética de trabalho, mais que teutônica, ousaria dizer inteiramente piamartina, que o tornava incansável em produzir, seguir, acompanhar pessoalmente os muitos projetos editoriais. Quando tinha investido num determinado projeto e estava plenamente convencido dele, não conseguia conter uma urgência, uma certa impaciência. Ele o queria pronto, mas também perfeito até o último detalhe. Em outras palavras, entrava em ação um impulso de desejo que era irreprimível para ele. Porque amava aquele precipitado de cultura e teologia que se condensava nos livros.
Marinella Perroni: Nas vezes que tive a oportunidade de conversar com ele, percebi com extrema clareza que para ele o trabalho teológico nunca era neutro, nunca anônimo ou rarefeito. Quase gostaria de dizer que para ele a teologia só podia ser militante.
Elizabeth Green: Bastaria apenas dizer que, no caminho difícil que a teologia feminista comporta, ele nunca diminuiu o ritmo.
Alberto Dal Maso: Talvez ele tenha sido um revolucionário no passado. Um rebelde de Sessenta e oito e quase incendiário: imagino-o com o cabelo desgrenhado e vestindo um parká. Polêmico com autoridade quando não digna de estima. Ele tinha um traço subversivo: em seu tempo travou batalhas porque “Depois da Revolução Francesa não é mais possível que alguém se considere ‘superior’ aos outros: não há súditos, subordinados. Muito menos em uma ordem religiosa." Ele era um teólogo partidário, mas respeitava a outra linha de pensamento. Não por uma tendência pseudo-ecumênica de ficar em cima do muro, mas para deixar espaço para o debate, para o confronto na diversidade das posições. Reivindicava ter editado Infallible? tanto quanto Il Complesso Antiromano. Pensativo, taciturno, refletiu consigo mesmo, silenciosamente, minuciosamente. Depois, de uma hora para outra, mesmo depois de dias, você o via se iluminar: uma centelha nos olhos, um brilho cintilante. E a decisão chegava - certeira -. Por isso, raramente agia por impulso: no entanto, a taxa de genialidade e a pura intuição que estava em seu sangue às vezes o induzia a jogar o coração por cima do obstáculo, mesmo contra o conselho das pessoas próximas a ele.
Marinella Perroni: A morte nos obriga, no entanto, a nos despedirmos...
Elizabeth Green: Saudações, Pe. Gibellini com carinho e gratidão pelo que fez corajosamente, esperando que outros e outras acolham o testemunho que nos deixou.
Alberto Dal Maso: Não será fácil seguir seus passos. Serão necessárias coragem e visão: como ele as mostrou, mas interpretadas por nós, para o nosso tempo. Mas este é o momento de gratidão na lembrança. Porque foi um privilégio tê-lo tido como mentor. E tudo isso agora está envolto em uma espessa névoa de saudade.