"O confronto entre os Estados Unidos e a Rússia na Ucrânia é peça de uma guerra mundial", escreve Marco Politi, ensaísta italiano e vaticanista, em artigo publicado por Limes, 22-11-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em 7 de novembro, o arcebispo maior Svjatoslav Ševčuk, chefe da Igreja Greco-Católica da Ucrânia, deu de presente ao Papa Francisco um fragmento de uma mina russa, que destruiu a fachada da igreja em Irpin. Para recordar - num mundo que vive de signos como o Vaticano - a barbárie do inimigo e a total hostilidade que lhe é devida. Celebrando missa na igreja dos ucranianos em Roma, Ševčuk exclamou que "Jesus Cristo é morto, baleado, torturado, executado... no corpo de nossos soldados e civis nos territórios ocupados e durante o cativeiro russo".
Um dia antes de retornar do Bahrein, citando a "Ucrânia atormentada", Francisco havia contado aos jornalistas que ficou impressionado com a crueldade dos mercenários russos, "que não é do povo russo...porque tenho em alta estima o povo russo, o humanismo russo. Basta pensar em Dostoievski, que ainda hoje inspira os cristãos a pensar sobre o cristianismo. Tenho muito carinho pelo povo russo. E também tenho muito carinho pelo povo ucraniano". Aos onze anos, confidenciou o papa, havia sido coroinha em Buenos Aires de um padre ucraniano em sua língua.
O embaixador ucraniano junto à Santa Sé, Andrij Juraš, prontamente tuitou: “Para entender o ‘humanismo’ no qual o Papa acredita, bastaria ver como estão apreciando esse ‘humanismo’ os 4,5 milhões de pessoas que ficaram sem eletricidade e água” . Falando com Francisco, Sua Beatitude Shevchuk observou que Moscou está fazendo propostas de "pacificação colonial", que negam a existência do estado ucraniano. Por outro lado, na primavera, a vice-primeira-ministra ucraniana Iryna Vereshčuk havia afirmado para a televisão italiana que "todos os russos" são responsáveis pela guerra e por suas consequências.
Mapa: Revista Limes
É difícil imaginar um afastamento mais claro da posição do Vaticano, voltada para a promoção de uma solução política para o conflito. Nestes nove meses, o Papa Francisco construiu uma linha que é antitética à narrativa (e, portanto, à estratégia) defendida publicamente tanto nos ambientes religiosos e governamentais de Kiev quanto na OTAN e na União Europeia. Não há dúvida de que o pontífice imediatamente – quando ainda em Moscou e talvez no Ocidente se pensava em uma rápida conclusão da campanha militar – tenha intuído o enorme perigo da escolha de Vladimir Putin para os equilíbrios mundiais. Poucas horas depois da agressão, num gesto absolutamente inédito, Francisco dirigiu-se pessoalmente ao embaixador russo na Santa Sé para exortar Putin a parar a invasão, colocando-se à disposição para uma mediação, dispondo-se inclusive a ir a Moscou.
Uma vez que a máquina bélica entrou em ação e as atrocidades cometidas pelas tropas russas vieram ao conhecimento, o Papa Bergoglio denunciou sem maios termos a invasão "inaceitável, repugnante, insensata, bárbara, sacrílega". O beijo da bandeira azul-amarela, levada a ele de Bucha na audiência geral, sancionou simbolicamente sua total solidariedade com o povo ucraniano.
Bergoglio não se limitou a uma posição moral e substancialmente declamatória. Semana após semana, delineou uma linha totalmente política, alternativa à narrativa institucional e midiática predominante no Ocidente (e totalmente alheia aos delírios nacionalistas expressos em alguns discursos de Putin e do patriarca de Moscou e de toda a Rússia, Kirill). Narração segundo a qual, uma vez que as razões do agredido e do agressor não podem ser comparáveis, resta apenas apoiar o esforço bélico da Ucrânia até à derrota do invasor. Desde o início, o cardeal secretário de Estado Pietro Parolin exortou que fossem levadas em consideração as "aspirações legítimas" de cada parte, convidando a uma análise comum e em um contexto - ressaltou - mais amplo, evitando a escalada militar, mas também verbal.
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No final do primeiro mês de guerra, vendo os Estados Unidos abandonarem a opção diplomática e optarem pelo caminho do apoio total a Kiev num confronto militar que visa sobretudo atingir as ambições de poder da Rússia, o Papa Francisco decide opor-se totalmente a essa estratégia. Como costuma fazer, manifesta-se de improviso em uma qualquer ocasião. Em 24 de março de 2022, diante de representantes do Centro italiano feminino, declarou que o aumento de 2% nos gastos militares dos países da OTAN era uma loucura e que a resposta à situação de guerra na Ucrânia não era "mais armas, mais sanções, mais alianças político-militares... não é mostrar os dentes... mas uma forma diferente de governar o mundo já globalizado e orientar as relações internacionais".
A doutrina de Bergoglio é antitética à linha que o secretário de Defesa dos Estados Unidos, Austin Lloyd, exporá publicamente em abril diante do chamado grupo Ramstein, os Estados comprometidos com o abastecimento militar de Kiev: “Queremos ver a Rússia enfraquecida a ponto de não poder mais fazer o tipo de coisa que fez com a invasão da Ucrânia".
Segundo o Vaticano, uma linha desse tipo diz respeito a uma questão de hegemonia. Abre o problema da visão unipolar ou multipolar da cena planetária. E, em todo caso, não é no interesse da convivência internacional, necessária para o desenvolvimento da "família humana": pensamento cardeal de Francisco, empenhado na superação das desigualdades e convencido da urgência de uma nova economia social de mercado junto com a luta contra a degradação natural e climática, dados seus perniciosos efeitos sociais. As encíclicas Laudato si' e Fratelli tutti são eloqüentes a esse respeito.
Sem diminuir a responsabilidade de Putin por desencadear o conflito, a abordagem do papa inclui as causas do confronto que se abriu entre a Rússia e o Ocidente. Houve um “ladrar da OTAN às portas da Rússia”, declarou em entrevista ao Corriere della Sera, escolhido para dar o máximo destaque. Após o fim da URSS, lembram no Vaticano, a Aliança Atlântica expandiu-se continuamente para o leste. A Rússia foi "humilhada e cercada pela OTAN", sublinha o historiador Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio. O não dito, que o Vaticano guarda no arquivo da memória, diz respeito à recusa da OTAN, no outono de 2021, de garantir a Putin preto no branco que a Ucrânia nunca aderiria à Aliança Atlântica.
O embate em curso - o pontífice descreve de forma imaginativa, mas eficaz - não pode ser lido segundo o esquema dos contos de fadas. “Chapeuzinho Vermelho era boa e o lobo era mau. Aqui não há bons e maus metafísicos, de forma abstrata”, explica aos diretores das revistas jesuítas recebidos em junho. A complexidade da situação não pode ser reduzida, insiste Bergoglio, sem pensar sobre raízes e interesses muito articulados. Está em andamento um evento de “apropriação geopolítica” em nível global, diz ele. Essa guerra, reitera aos jesuítas no Cazaquistão, não é um filme de cowboys e nem mesmo é entre a Rússia e a Ucrânia: “Não, esta é uma guerra mundial”. Estamos diante de “imperialismos em conflito” e, quando se sentem ameaçados e em declínio, os imperialismos reagem pensando que a solução seja desencadear uma guerra para se recuperar.
A saída então não pode ser confiada apenas ao diálogo entre Kiev e Moscou e nem mesmo a um futuro entendimento recente entre Moscou e Washington, certamente necessário para acabar com a crise ucraniana. Se esta é realmente uma guerra mundial (sobretudo pelas suas repercussões cada vez mais pesadas em termos de crises energética, econômica, alimentar e possivelmente migratória) a saída - na visão de Bergoglio - deve passar pelo estabelecimento de regras partilhadas e uma nova governança em nível global: algo como o pacto de Helsinque de 1975 que estabilizou a situação internacional e preparou a saída da Guerra Fria.
Gostando ou não, é uma visão estratégica com coerência própria. Faz parte dela também a convicção, compartilhada com Henry Kissinger e Angela Merkel, de que a Rússia deve permanecer ancorada à Europa e não ser jogada nos braços da China. Já em abril, a revista dos jesuítas Civiltà Cattolica, cujas minutas são revisadas pela Secretaria de Estado do Vaticano, argumentou que não é desejável a "perspectiva de uma Rússia enfraquecida e humilhada, considerada um estado pária ... tomada por impulsos revanchistas", como a Alemanha após a Primeira Guerra Mundial.
Um elemento de fraqueza na posição é representado pelo fato que, diferentemente da crise de Cuba de 1962, nem Moscou nem Washington sentiram a necessidade de recorrer ao canal de mediação do Vaticano. À Santa Sé também falta o apoio do eixo Paris-Berlim, que foi essencial para João Paulo II quando se opôs com todos os meios diplomáticos e de opinião pública à intervenção dos Estados Unidos no Iraque.
Mapa: Revista Limes
Por outro lado, porém, existe um bloco internacional que não tem intenção de se alinhar nem com posições russas nem estadunidenses. Também na última votação na ONU, as abstenções e os contrários à condenação da Rússia representam por população a maioria do planeta.
Vários sujeitos contribuíram nos últimos meses para dar forma à linha indicada por Bergoglio. Além do Osservatore Romano, a revista dos jesuítas Civiltà Cattolica, a Comunidade de Santo Egídio, o jornal dos bispos italianos Avvenire, os presidentes da CEI, cardeais Gualtiero Bassetti primeiro e Matteo Zuppi agora.
O Avvenire em particular, em seus editoriais, denunciou a "arrogância de rearmamento" que aponta para uma escalada, independentemente dos riscos nucleares e da crescente destruição infligida à Ucrânia. O Avvenire tem repetidamente sugerido alargar o olhar para além do campo ocidental, para evitar que no final o jogo se reduza ao que os analistas rotulam como "Ocidente vs. Resto": o Ocidente contra o resto do mundo. Há uma vasta parte do planeta, observa o sociólogo católico Mauro Magatti no jornal dos bispos, que "não aceita o modelo liberal ocidental": está em curso um lento e delicado processo de formação de áreas político-econômico-culturais, que buscam um posicionamento estratégico em nível regional e global. Uma coexistência positiva deve ser encontrada com essas áreas multifacetadas. Este é o significado de uma Helsinque global.
A linha assumida pelo Papa Francisco o levou a se chocar com o patriarca russo Kirill, alinhado de forma exaltada com as escolhas pan-russas de Moscou na visão de uma luta contra o Ocidente moralmente corrupto. O pontífice repetidamente cancelou encontros já programados com o patriarca e fez saber publicamente que lhe disse que não cabe aos líderes religiosos agir como "clérigos de Estado". Ao mesmo tempo, o Osservatore Romano apontou que o papa de Roma não é o "capelão do Ocidente". Bergoglio pretende manter uma posição absolutamente super partes e por isso, apesar de ter enviado dois cardeais e seu ministro das Relações Exteriores, monsenhor Paul Gallagher, à Ucrânia, não quer ir a Kiev a menos que também possa ir a Moscou ao mesmo tempo.
Mesmo com Kiev, o Vaticano teve momentos de confronto. Por ocasião da Via Sacra no Coliseu, que a televisão estatal ucraniana, juntamente com as emissoras católicas locais, não divulgaram para não mostrar uma mulher ucraniana segurando a cruz junto com uma mulher russa. E novamente quando o papa – altamente criticado pelo governo ucraniano – deplorou o atentado à filha do ideólogo pan-russo Aleksandr Dugin, ocorrido perto de Moscou.
O Vaticano está muito preocupado com a explosão de ódio étnico desenfreado de ambos os lados que está se manifestando no curso do conflito. Um fenômeno que lembra o que aconteceu nas guerras da ex-Iugoslávia. Com a chegada do outono, o Papa Francisco pareceu avaliar a linha político-diplomática por ele formulada. No Angelus de 2 de outubro, ele pediu paralelamente a Vladimir Putin para parar a espiral de violência e morte e para Volodymyr Zelensky para "estar aberto a sérias propostas de paz". Mas, acima de tudo, Bergoglio indicou um objetivo a ser alcançado sem demora: um cessar-fogo, preliminar para negociações capazes de levar a soluções "acordadas, justas e estáveis".
Não é sem importância que no G20 em Bali tanto a Índia quanto a China fizeram a mesma proposta. Segundo o Vaticano, o incidente do míssil Przewodów reforça a urgência de uma trégua. Nos bastidores, a Santa Sé também tem dúvidas se o presidente ucraniano deveria ser o único indicado a decidir quando e com que base negociar com a Rússia. Porque a legítima defesa não deve ser confundida com uma escalada sem limites, incluindo riscos nucleares.
Nesse ínterim, no Vaticano se trabalhou para redigir um esquema de acordo. Desde a primavera europeia passada, um grupo de trabalho sobre a paz, coordenado pelo economista estadunidense Jeffrey Sachs, trabalha na Pontifícia Academia de Ciências. No final de setembro, o presidente da Pontifícia Academia de Ciências Sociais, Stefano Zamagni, tornou público um “Plano para uma paz justa e duradoura na Ucrânia”, que está na mesa da Secretaria de Estado. Prevê a neutralidade da Ucrânia e sua entrada na União Europeia, garantias internacionais de sua soberania e integridade, controle de fato da Crimeia pela Rússia enquanto se aguarda uma solução definitiva confiada ao diálogo entre as partes, autonomia das regiões de Luhansk e Donetsk dentro da Ucrânia, criação de um Fundo de Reconstrução da Ucrânia do qual a Rússia participa, remoção gradual das sanções em paralelo com a retirada das tropas russas.
Diante dos tênues sinais de fumaça para possíveis negociações, que surgiram após o retorno de Kherson ao controle ucraniano, chega do Vaticano um documento inspirado pela concretude.