07 Outubro 2022
"Surge a questão de quais sejam os objetivos pelos quais continuar a guerra. 'Liberar' a Crimeia que nunca foi ucraniana? Quebrar as pernas à Rússia? Provocar a queda de Putin (o que, como todos sabem, não levaria a uma primavera democrática) e jogar a Rússia nos braços da China?", questiona Marco Politi, ensaísta italiano e vaticanista, em artigo publicado por Il Fatto Quotidiano, 06-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
O Papa Francisco se atravessa. Numa linha oposta à política de escalada militar descontrolada na Ucrânia, perseguida pelo secretário da OTAN Stoltenberg, pela presidente da Comissão Europeia, Von der Leyen, pelo presidente do Conselho Draghi e pela futura primeira-ministra Meloni. Seu apelo, lançado no domingo, não é uma súplica moral e nem mesmo uma oferta de mediação que ninguém lhe pediu. É uma proposta de iniciativa política alternativa àquela atualmente seguida pelo Ocidente e que está levando diretamente à insana eventualidade de um acidente nuclear.
Francisco colocou as cartas na mesa. Ele pediu a Putin que parasse a agressão. Ele pediu a Zelensky que "estivesse aberto a propostas sérias de paz". Ele pediu aos líderes mundiais que se movessem para parar a guerra. Ele pediu que "um cessar-fogo seja alcançado imediatamente". Destacou três condições para a paz: a soberania e a integridade territorial de cada nação, os direitos das minorias, as preocupações legítimas. Não são expressões retóricas, são pedidos concretos: trabalhar por uma trégua imediata, garantir os direitos da minoria de língua russa do Donbass (em termos italianos significa garantir um estatuto de autonomia como aquele da região do Alto Adige), levar em consideração os interesses de segurança da Rússia ("legítimas preocupações" que valem para os Estados Unidos em suas fronteiras e também valem para a Rússia ou outras potências).
Nas últimas semanas, ao reunir-se com os coirmãos jesuítas no Cazaquistão, o papa reiterou o contexto geral em que surgiu o conflito. “Não é um filme de caubóis onde há mocinhos e bandidos”, não é uma guerra entre a Ucrânia e a Rússia, é uma guerra em dimensão mundial. E poderia ter sido evitada. Estamos assistindo a "imperialismos em conflito". Não havia necessidade que a OTAN fosse "latir às portas da Rússia". São fatos que não coincidem com a narrativa oficial obsessivamente imposta por Kiev, Bruxelas e Washington. Mas os fatos permanecem. Um grande realista como Henry Kissinger apontou que nas últimas décadas a política do Ocidente em relação à Rússia foi errada e que a Ucrânia não deveria ser um "posto avançado" ocidental contra a Rússia.
Nos últimos meses, o Ocidente apoiou a Ucrânia com armamentos, preciosa colaboração de inteligência, ajudas financeiras e humanitárias. Ajudada pelo Ocidente, a Ucrânia – com seus soldados fortes, corajosos e determinados – alcançou três objetivos: Putin foi derrotado em seu plano de tomar Kiev, foi derrotado em seu plano de derrubar o país e provocar uma mudança de regime, finalmente está perdendo territórios conquistados. Surge a questão de quais sejam os objetivos pelos quais continuar a guerra. "Liberar" a Crimeia que nunca foi ucraniana? Quebrar as pernas à Rússia? Provocar a queda de Putin (o que, como todos sabem, não levaria a uma primavera democrática) e jogar a Rússia nos braços da China?
A atmosfera bélica que circula em certas capitais é tudo menos racional. Ursula von der Leyen grita "glória à Ucrânia", a primeira-ministra estoniana Kaja Kallas que se faz fotografar se exercitando com um míssil antitanque Javelin transmitem a imagem de uma excitação militaresca completamente inconsciente diante da extrema gravidade da situação. Toda guerra é uma questão de custos e benefícios. A Europa está entrando em uma grave crise econômica. A crise energética e a recessão estão batendo às portas. Na Itália, a inflação ronda os 10%, destaca-se a perspectiva de mais de 100 mil empresas em risco de fechamento e a possibilidade de centenas de milhares de desempregados. Para atingir qual objetivo?
O Ocidente não pode limitar-se a ser o porta-malas da política de Kiev. Muitos ambientes econômicos estão começando a se fazer perguntas. O empresário superbilionário Elon Musk, que também disponibilizou seu sistema de interconexão por satélite Starlink à Ucrânia para neutralizar os russos, postou no Twitter (107 milhões de seguidores) um plano de paz:
1) Refazer as eleições nas regiões anexadas pela Rússia sob a supervisão da ONU e deixar o povo decidir;
2) Reconhecer a Crimeia como parte da Rússia considerando que o é desde 1783 (exceto pelo erro cometido por Khrushchov);
3) Assegurar o abastecimento hídrico da Crimeia;
4) Neutralidade da Ucrânia. (De 2,7 milhões de respostas, 41% responderam positivamente, 59% negativamente. Insultado pelo governo ucraniano, o bilionário rebateu: na Crimeia e no Donbass, a população vota onde quer estar).
Musk não é ingênuo. Ele tem um ouvido apurado para o que está acontecendo na comunidade empresarial estadunidense e internacional. Na Itália, algum tempo atrás, Carlo De Benedetti disse na TV que continuar a guerra não era do interesse da Europa. Francisco não está sozinho em promover a necessidade de um cessar-fogo.
Na área do Vaticano, o presidente da Pontifícia Academia de Ciências Sociais Stefano Zamagni publicou um plano de paz articulado:
1) A neutralidade da Ucrânia e sua entrada na UE;
2) Garantias internacionais para a soberania e integridade da Ucrânia;
3) A Rússia mantém o controle de fato da Crimeia e uma solução definitiva é deixada para as partes;
4) Autonomia das regiões de Lugansk e Donetsk no âmbito da Ucrânia;
5) Acesso garantido aos portos do Mar Negro para a Ucrânia e a Rússia;
6) Remoção gradual das sanções ocidentais à Rússia;
7) Criação de um fundo de reconstrução para a Ucrânia do qual a Rússia participa.
Nesta situação, a decisão de Zelensky de assinar um decreto para "proibir negociações com Moscou" enquanto Vladimir Putin estiver no comando, evidencia sua intenção de forçar a mão da Europa. Seu conselheiro Mikhailo Podolyak replicou a Elon Musk com um seu "plano de paz", que prevê a retirada da Rússia de todos os territórios, incluindo a Crimeia, e acima de tudo a desmilitarização e desnuclearização da Rússia. Um programa de vingança que não parece funcional aos interesses da Europa.
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Papa Francisco como Elon Musk: entre as poucas vozes a pedir um cessar-fogo na Ucrânia. Artigo de Marco Politi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU