Francisco capta um estado de ânimo amplamente generalizado entre crentes e não crentes, que não são particularmente politizados, mas se sentem incomodados pela contínua pressão midiática “de cima”, segundo a qual é preciso seguir em frente com a guerra e não fazer perguntas.
Essa guerra já é um desastre para Putin. O projeto de se apoderar de Kiev fracassou, o projeto para prender ou forçar o presidente Zelensky a fugir fracasso, o projeto de derrubar o Estado ucraniano fracassou, e, enfim, a recente contraofensiva ucraniana representou um golpe duríssimo contra o prestígio do Exército russo.
Marco Politi, renomado escritor e jornalista italiano (nascido em Roma, em 29 de janeiro de 1947), recebeu-nos com muita disponibilidade para uma entrevista que já estávamos buscando há algum tempo. Os eventos bélicos desde o início da invasão russa da Ucrânia, há quase sete meses, complexos e arriscados para o mundo, assim como as consequências em muitos âmbitos, com a experiência pluridecenal de Politi, podem ser analisados sob uma perspectiva diferente da que é recorrente hoje.
Marco Politi foi correspondente em Moscou do jornal Il Messaggero de 1987 a 1993, período histórico em que se encontram a crise e a dissolução da URSS e o nascimento da Federação Russa. Ao mesmo tempo, de 1971 até hoje, Politi também tratou de questões vaticanas e religiosas. Entre 1993 e 2003, foi o vaticanista do jornal La Repubblica.
Em sua carreira profissional, Marco Politi também trabalhou para outras publicações internacionais e atualmente colabora com o jornal Il Fatto Quotidiano. Basicamente, há mais de 40 anos, Politi, autor de mais de 10 livros centrados na figura e no magistério dos três últimos papas, é um vaticanista a ser incluído na definição de “historiadores”. Ele tem um notável conhecimento do poder e da sociedade, primeiro da URSS e depois da Rússia. Acompanhou e escreveu sobre os últimos seis presidentes soviéticos (de Vasily Kuznecov a Mikhail Gorbachev) e sobre os dois da Federação Russa: Yeltsin e Putin.
Essas são as experiências e os conhecimentos que fazem de Marco Politi uma verdadeira testemunha deste último meio século, assim como uma testemunha da complexa relação entre Moscou e o Vaticano desde a queda do Muro de Berlim. Essa trajetória profissional faz de Marco Politi um estudioso singular, talvez único.
A entrevista foi concedida a Il Sismografo, 22-09-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Aqui publicamos a primeira parte da entrevista.
A segunda parte da entrevista pode ser lida aqui.
Gostaria de começar com a guerra em curso no coração da Europa. Francisco disse há alguns dias: “Uma guerra de especial gravidade, tanto pela violação do direito internacional, quanto pelos riscos de uma escalada nuclear, quanto ainda pelas pesadas consequências econômicas e sociais”. Em sua opinião, o Santo Padre abordou corretamente a questão da agressão russa contra a Ucrânia ou cometeu erros que, depois, condicionaram todo o caminho a ponto de ter que renunciar – por enquanto – a uma viagem a Kiev? Você deve se lembrar que também se falou do fracasso da diplomacia vaticana, tão relevante e respeitada ao longo das décadas.
Para os observadores que olham para a realidade global, e especialmente para aqueles que no jargão são chamados de “decision makers” políticos e militares, está bem claro que estamos diante de um conflito russo-estadunidense.
A Ucrânia é o campo de batalha. Os soldados que combatem com grande coragem, tenacidade e determinação são ucranianos. As vítimas civis e militares da invasão são ucranianas. Mas são ocidentais – em primeiríssima linha, estadunidenses, e depois da Grã-Bretanha e de outros países da Otan – as armas, os suprimentos, o treinamento, a inteligência, a cooperação estratégica (como se viu na recente contraofensiva em torno de Kharkiv e no Donbass). São ocidentais as ajudas econômicas e humanitárias. É ocidental a arma poderosamente invasiva das sanções contra a Rússia.
Um correspondente veterano como Domenico Quirico, no jornal La Stampa, chama diretamente de guerra russo-estadunidense. Para além da expressão técnica, é aquilo que muitos jornalistas também pensam, depois de terem experimentado profissionalmente os anos da Guerra Fria.
Francisco (a quem deve ser reconhecida a lucidez de ter falado desde o início do pontificado de “guerra mundial em pedaços”, indicando os muitos focos bélicos no cenário internacional) usou nos últimos dias um termo preciso e dramático: Guerra Total. Porque ela repercute nos Estados do planeta e envolve – pelos seus efeitos políticos, sociais e econômicos – massas consistentes da população mundial, muito além dos protagonistas oficiais do confronto. E, enquanto isso, paira o risco nuclear.
Nesse sentido, a decisão, diplomaticamente bastante audaciosa, de ir à embaixada russa junto à Santa Sé no início do conflito foi profética: a extrema advertência àqueles que começavam a guerra para não se aventurarem por um caminho ruinoso. As palavras do papa (no dia 23 de fevereiro na Audiência geral) sobre a necessidade de as lideranças políticas fazerem um “sério exame de consciência diante de Deus, que é o Deus da paz e não da guerra, que é o Pai de todos, não apenas de alguns, que nos quer irmãos e não inimigos”, se inserem diretamente naquela tradição papal que viu João Paulo II admoestando para não iniciar a guerra no Afeganistão e se opor decisivamente à invasão estadunidense do Iraque.
Alguns observaram que, naquelas horas, Francisco poderia ter feito um gesto igualmente especial de proximidade ao povo ucraniano. É uma notação apropriada. Naquele momento, o Papa Bergoglio deu prioridade aos riscos geopolíticos, que agora estão debaixo dos nossos olhos. “A guerra – tuitou ele no dia de sua conversa com o embaixador Avdeev – é um fracasso da política e da humanidade... uma derrota perante as forças do mal”.
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— Papa Francisco (@Pontifex_pt) February 25, 2022
Em todo o caso, ao longo das semanas e dos meses, ele expressou sistematicamente sua condenação à invasão russa e aos massacres e destruição em curso na “martirizada Ucrânia”, e enviou ao país dois cardeais e o ministro das Relações Exteriores vaticano para manifestar tangivelmente sua proximidade. Mostrar-se em uma Audiência geral com a bandeira de Bucha foi um sinal inequívoco.
Por outro lado, o que o pontífice absolutamente não quer é fazer uma viagem a Kiev sem uma viagem análoga a Moscou. O Vaticano, como informou, não é equidistante entre quem começou a guerra e quem a sofre, mas quer ser “equipróximo” aos dois povos, ucraniano e russo, para poder favorecer eventualmente um cessar-fogo e o início das negociações.
É a linha tradicional da Santa Sé, que, em tempos contemporâneos, sempre se recusou a tomar partido de um dos contendores. Insistir infinitamente no fato de que há um agressor e um agredido é tautológico e, em última análise, está ligado à propaganda de guerra. Todos os conflitos, desde os tempos dos sumérios, têm alguém que os inicia e alguém que é atacado. Mas a busca de uma solução negociada geralmente não se desenvolve segundo a metódica do professor de escola que pune e recompensa. Fazer a guerra ou a paz é uma questão de interesses, de equilíbrio de interesses.
A URSS e os Estados Unidos invadiram o Afeganistão em tempos diferentes, citando grandes motivações, que se liquefizeram diante do desastre da ocupação. Então, de repente, as proclamações foram postas de lado, e a disputa acabou. Eu estava em Cabul quando os soviéticos começaram sua retirada em 1989. As médicas e as professoras afegãs estavam angustiadas com a ideia da partida dos russos e da chegada dos talibãs. Trinta e três anos depois, as mulheres afegãs viveram com igual angústia a retirada estadunidense. Mas, naquele momento, assim como em 1989, o destino delas não era mais considerado importante.
No início da guerra, falou-se muito de uma mediação vaticana, talvez superficialmente demais. Não se pode esquecer que a mediação de João XXIII no tempo da crise cubana foi o fruto de uma escolha das duas superpotências, os Estados Unidos e a URSS. Ambas quiseram se aproveitar da oportunidade oferecida pelo Papa Roncalli. A Santa Sé não abre nenhuma mesa por iniciativa própria. Em anos recentes, quando o Vaticano facilitou a reaproximação entre Obama e o regime de Castro, foi porque isso era conveniente tanto para Washington quanto para os cubanos.
A pergunta, no mínimo, é por que Estados Unidos e Rússia ainda não têm interesse de iniciar, mesmo que informalmente, pré-negociações.
O Patriarca de Moscou, Kirill, desde o primeiro instante, com diversos discursos e gestos, alistou-se nas posições e narrativas de Putin, a ponto de o papa sentir a necessidade de lhe enviar uma fraterna advertência: “Não seja um coroinha de Estado”. Kirill e Hilarion responderam com dureza e ira. Nesse ponto, o que se pode dizer sobre o diálogo ecumênico com a mais importante e maior Igreja Ortodoxa? Os progressos, após um milênio de antagonismos, foram gigantescos. Agora, foi tudo por água abaixo?
O patriarcado russo nasceu em estreita simbiose com o Estado, submetido à autocracia dos grão-duques e czares de Moscou. Em 1721, com Pedro, o Grande, o patriarca foi até mesmo abolido e substituído por um Sínodo, administrado por um funcionário, como um departamento de Estado.
Restaurado em 1917, o patriarcado viveu a dura perseguição do stalinismo contra a religião, o terror dos gulags e das delações, a submissão completa ao aparato totalitário e a infiltração sistemática da KGB. Depois, assim como em todos os Estados que surgiram da dissolução da URSS, a Igreja Ortodoxa, nas suas hierarquias – com algumas notáveis exceções na base –, compartilhou o nacionalismo do novo regime e, em todo o caso, sentiu e sente o peso de um sistema autocrático. A liberdade de cargo e de expressão não se adquire com um estalar de dedos.
Também não podemos fechar os olhos diante da história global. O escritor italiano Beniamino Placido observava com perspicácia que, na eclosão da Primeira Guerra Mundial, em todas as nações, as Igrejas invocavam a ajuda de Deus para a vitória. Durante dois terços do século XX, as hierarquias eclesiásticas nacionais não sonhavam em entrar em contraposição com a liderança estatal. Especialmente no campo da política externa (a situação italiana antes da Concordata é um caso à parte).
O processo de distinção entre a esfera religiosa e a esfera política, que conhecemos no Ocidente do pós-guerra, é um fenômeno gradual e complexo, ligado ao desenvolvimento da democracia de massa e da secularização. No entanto, ainda hoje assistimos a fenômenos que fazem a roda da história girar para trás. O surgimento do nacional-clericalismo na Polônia e na Hungria, a aliança entre supremacistas e religiosos fundamentalistas evangélicos no bloco formado em torno de Donald Trump, a instrumentalização dos símbolos religiosos entre os soberanistas italianos dos partidos de Salvini e Meloni.
Por isso, a complexidade da história não deve ser ignorada. É evidente que os discursos apocalíptico-ultranacionalistas de Kirill são condenáveis do modo mais claro, mas não faz sentido travar uma guerra contra a Ortodoxia russa como tal.
Nos últimos dias, por ocasião de sua assembleia geral, o Conselho Mundial de Igrejas (CMI) recusou-se a pôr em votação a expulsão da Igreja Ortodoxa Russa. Uma decisão equilibrada em relação a um pedido insensato. Precisamente em momentos de crise, os canais de diálogo devem ser mantidos abertos. No auge da Guerra Fria, o CMI (nascido de um pacto entre anglicanos, protestantes e ortodoxos), envolvendo as hierarquias eclesiásticas do bloco oriental, não esperava da parte deles declarações contra as lideranças soviéticas ou pró-soviéticas, mas trabalhava não só pelo ideal ecumênico, mas também em vista de um amadurecimento da situação, da cultura, da relação entre fé e política naquela parte do mundo.
A mesma intenção inspirava João XXIII e Paulo VI ao convidar as hierarquias dos países do Leste para o Concílio Vaticano II.
Francisco foi muito claro ao dizer a Kirill – informando a opinião pública mundial – que o patriarcado russo não pode ser o “coroinha” de Putin. E também agora, no Cazaquistão, ele reiterou que a religião não está a serviço de quem manda: “O sagrado não seja suporte do poder, e o poder não se valha de suportes de sacralidade”.
Nesse sentido, Bergoglio optou por um caminho de equilíbrio: suspensão do encontro planejado há tempos em Jerusalém com o patriarca de Moscou e cancelamento de um encontro face a face, que poderia ter sido realizado em Nur-Sultan, mas mantendo os canais de diálogo: no Cazaquistão, ele se encontrou brevemente com o responsável das relações exteriores do Patriarcado da Rússia, o Metropolita Antonij.
O encontro em Cuba com Kirill em 2016 e o documento assinado em Havana, que pôs fim a meio milênio de hostilidade entre catolicismo e ortodoxia russa, foram resultados importantes demais para não serem salvaguardados mesmo nestes tempos de ferro. E o mesmo vale para o precioso trabalho realizado ao longo de décadas pelo CMI.
O fato de o arcebispo greco-católico ucraniano Shevchuk já ter criticado o documento conjunto de Francisco e Kirill em 2016 é, no máximo, o sinal de um nacionalismo que vê apenas a dimensão de seu próprio lado.
Pelo contrário, um observador da política externa não pode deixar escapar o fato de que a pressão para a expulsão do patriarcado russo do CMI (uma questão levantada por personalidades cristãs da República Tcheca e dos Estados Unidos, além do ex-primaz da Igreja Anglicana, Rowan Williams) se situa em um impulso geral para relegar a Rússia e as instituições russas de qualquer tipo a uma condição de “párias”.
A Ucrânia, a Polônia e os Estados bálticos têm motivos justificados de inimizade histórica com a Moscóvia czarista, soviética e putiniana. E é nessa área que se manifesta uma busca obsessiva por sanções cada vez maiores e mais extensas contra Moscou. No entanto, o que chama a atenção – como nos tempos das guerras na ex-Iugoslávia – é a explosão e o crescimento de um ódio étnico exasperado. Não basta atingir Putin e talvez os seus principais colaboradores políticos, militares e econômicos, não basta atingir o seu círculo. É preciso atingir qualquer um que de algum modo esteja alinhado com ele. E, no fim, o povo russo, culpado de não se rebelar contra Putin, deve ser envolvido no ódio geral.
O ódio é um veneno. Perigoso e sumamente irracional. Em última análise, expulsar a Ortodoxia russa do CMI ou impor sanções a Kirill (proposta que depois foi abandonada em sede europeia) só consolidaria ainda mais a adesão das camadas mais periféricas e menos aculturadas da população russa às hierarquias do poder político e eclesiástico, em um clima emocional de defesa da “pátria em perigo”.
Da mesma forma, a proibição do turismo russo, solicitada com insistência por alguns países do Leste Europeu que foram autorizados a realizá-lo de forma autônoma, pune a classe média russa: precisamente a classe que mais gostaria de ser europeia, que também gostaria de mais liberdade política, embora não tendo a coragem ou a força para reivindicá-la, que é capaz de recorrer a outras fontes de informação que não as do autoritarismo oficial, que, em suas viagens, pode ser mais permeável à opinião pública ocidental.
Esse ódio étnico está o mais longe possível da visão da Santa Sé, quer se trata deste pontificado ou dos pontificados anteriores. É bom lembrar que, em meio aos conflitos étnicos na ex-Iugoslávia, João Paulo II não ficou do lado dos católicos croatas ou dos cristãos ortodoxos sérvios, mas se colocou em defesa dos bósnios muçulmanos.
De certa forma, é embaraçoso que, nos dias em que o parlamento de Estrasburgo critica fortemente a Hungria por ter se afastado dos “valores europeus”, a presidente da Comissão, Von der Leyen, continua fechando os olhos para a proibição que na Ucrânia afeta a literatura russa, o teatro russo, a ópera russa, a música russa, os vídeos russos. Um racismo étnico-cultural totalmente em contraste com os valores fundadores da União Europeia.
O caso do diretor ucraniano Sergei Loznitsa, vencedor do Prêmio Fipresci e autor de renomados documentários históricos, é exemplar. “O pedido de boicote à cultura russófona, que é também a conquista e a riqueza da Ucrânia – declarou ele publicamente –, é arcaico e destrutivo. Contradiz os princípios europeus do pluralismo cultural e da liberdade de expressão em sua essência”. Loznitsa criticou fortemente a decisão da Academia Europeia de Cinema de excluir do concurso europeu os filmes produzidos na Rússia. Por esses posicionamentos, em 19 de março passado, Loznitsa foi expulso da Academia Ucraniana de Cinema. Entre as culpas que lhe foram atribuídas: o fato de ser cosmopolita demais. Quem conheceu a URSS reconhece algo de requintadamente soviético nesse método.
Acompanhar o Vaticano como correspondente significa se submeter a um treinamento que exige uma atenção rigorosa não só ao conteúdo dos documentos, mas também às palavras e aos gestos improvisados da liderança eclesiástica, aos silêncios, aos aparentes esquecimentos, às mudanças de expressão e até às tonalidades do contexto. Ver a presidente Von der Leyen vestindo roupas com as cores da bandeira ucraniana lembra aquilo que na cultura histórica alemã é chamado de “Hurrah Patriotismus”, a exaltação retórica da causa e a eufórica expectativa da inevitável vitória. Falar da Ucrânia como um “país de heróis”, proclamar enfaticamente que “a Europa prevalecerá, e Putin fracassará”, ouvi-la gritar “Slava Ukraini! Glória à Ucrânia” é uma forma de silenciar qualquer raciocínio crítico sobre os objetivos da guerra e as repercussões sobre a situação mundial.
As transformações verbais importam. Em poucos meses, a terminologia de alguns líderes ocidentais passou da invocação da “defesa” da Ucrânia para a proclamação de uma “vitória” final não mais bem especificada.
Mas há uma nuance de mudança ideológico-política ainda mais importante. No discurso sobre o Estado da União Europeia, a presidente Von der Leyen (alemã de extração democrata-cristã) declarou que “um dos ensinamentos que obtivemos com essa guerra é que deveríamos ter dado ouvidos a quem conhece Putin”... na Polônia e nos países bálticos. É uma mudança radical de visão em relação à política dos chanceleres da CDU, Angela Merkel, e, nas últimas décadas, Helmut Kohl.
Unir-se ao radicalismo dos europeus orientais contrasta com aquilo que ainda era sublinhado após o ataque russo por Merkel, que reiterou sua convicta oposição à entrada da Ucrânia na Otan, expressada em 2008.
Na Ucrânia, muitos acadêmicos, políticos, analistas, observadores e homens da Igreja ressaltam que o Vaticano, a Sé Apostólica, há muitos anos “privilegiou uma leitura russa da complexa realidade ucraniana”. E essa questão não surge com Francisco, mas se prolonga há décadas. A Declaração Conjunta de Francisco e Kirill em Cuba em 2016 também foi criticada, por ser considerada flexível nos pontos sobre a Ucrânia. O que você acha? Desde o início da guerra, percebe-se uma tensão subterrânea entre o Vaticano e Kiev, tanto com a Igreja greco-católica quanto com o governo e a política.
Sim, essa tensão entre o Vaticano e Kiev existe. E explodiu com a violenta reação ucraniana à Via Sacra, que na Sexta-Feira Santa viu em procissão uma mulher ucraniana e uma mulher russa segurando a cruz. Eram duas amigas. A russa, no dia da invasão, foi ao encontro da amiga ucraniana chorando, expressando dor e vergonha pela guerra desencadeada por Putin. Mas isso não era bom para a estratégia midiática de Kiev. O símbolo da esperança espiritual e religiosa de uma vitória do mal sobre o bem, do amor sobre o ódio, da reconciliação sobre a vingança não deveria ser mostrado em procissão.
A televisão estatal ucraniana censurou a Via Sacra. A lista dos meios de comunicação privados ucranianos que se uniram para tapar a boca da mensagem da procissão papal é impressionante. O espectador ucraniano foi privado da possibilidade de ter uma opinião autônoma.
O golpe contra o Vaticano foi tão forte que o jornal L’Osservatore Romano não colocou a foto na primeira página e, nas páginas internas, mostrou as duas mulheres segurando um pedaço de madeira preta, porque o braço e o topo da cruz estavam cortados e também podiam ser duas peregrinas quaisquer.
A tensão explodiu novamente quando o papa expressou compaixão pelo atentado contra Daria Dugina. Diante da onda de raiva desencadeada na Ucrânia, o Vaticano emitiu um comunicado de renovada condenação à invasão russa, qualificando-a como “moralmente injusta, inaceitável, bárbara, insensata, repugnante e sacrílega”. No entanto, é um comunicado anônimo. Não vem nem do secretário de Estado nem de outra autoridade da Santa Sé, nem é assinado pelo diretor da Sala de Imprensa. É difícil entender quem é o responsável pela terminologia. Um observador secular poderia se perguntar o que significa dar à guerra até mesmo a marca de “sacrílega”.
Mas o cerne do problema é outro. Não existe apenas uma narrativa ucraniana ou russa das guerras. Existe o mundo. Do palácio apostólico, os pontífices e a diplomacia vaticana estão acostumados a vagar mentalmente pelo cenário internacional. E, nesse cenário, mais da metade do mundo não quer se alistar do lado de nenhum dos contendores. Não é um “neutralismo” incerto, mas responde aos próprios interesses econômicos e políticos. Um número consistente de Estados não compartilha a ação militar russa, mas também não compartilha a tentativa aberta dos Estados Unidos de manter uma hegemonia unipolar em âmbito internacional. Acima de tudo, esses Estados não querem cair nas ferozes divisões de uma guerra fria e também não querem ser arrastados para a histeria de uma guerra total.
Esses Estados buscam um equilíbrio internacional para retomar o desenvolvimento interrompido pela pandemia da Covid, que trouxe novas formas de pobreza para um número adicional de milhões de pessoas e destruiu muitas oportunidades de crescimento.
Esses Estados fazem parte de uma rede de relações complexas e complicadas, que não podem ser cortadas com uma machadinha.
Pensemos no acordo Quad, que reúne Estados Unidos, Japão, Austrália e Índia e, como Quad Plus, também Nova Zelândia, Coreia do Sul e Vietnã. Ele tem o objetivo de frear os objetivos de Pequim. Mas a própria Índia também faz parte da Organização para a Cooperação de Xangai, junto com a Rússia e a China. E, por sua vez, esses Estados, junto com a África do Sul e o Brasil, fazem parte do grupo chamado Brics.
O Avvenire, o jornal dos bispos italianos, dedicou muito espaço com vários artigos, incluindo os do sociólogo Mauro Magatti e do ex-subsecretário italiano das Relações Exteriores Mario Giro, ao fato de que a atual guerra russo-estadunidense não pode ser avaliada unicamente sob a ótica das declarações e dos interesses de Washington, Bruxelas, Kiev e Moscou. Os interesses do mundo não podem ser simplesmente postos de lado. Por outro lado, ler os eventos internacionais como um choque entre regimes liberal-democráticos e regimes ditatoriais não leva a lugar nenhum.
Quando se levanta a questão sobre se a fase atual pode ser qualificada como um choque entre democracias e autocracias, um dos maiores especialistas em política internacional – Lucio Caracciolo, diretor da revista Limes – responde com sobriedade que se trata de uma visão ideológica e que, na realidade, estamos na presença de um confronto entre impérios.
No mundo acadêmico estadunidense, discute-se sem complexos sobre a possibilidade ou não de que o cenário internacional ainda possa se mover sob a orientação de uma hegemonia unipolar sob a direção dos Estados Unidos. A guerra na Ucrânia certamente responde a uma necessidade de assertividade e de hegemonia estadunidense no campo ocidental, mas precisamente nos ambientes políticos e militares estadunidenses se enfatiza que o verdadeiro front agora é o Indo-Pacífico, onde a expansão imperial da China deve ser bloqueada.
A Rússia, por sua vez, iniciou essa guerra pela preocupação de ser percebida como uma superpotência em fase de declínio. O resultado desse conflito e o tipo de paz e de compromisso que será alcançado estão inevitavelmente destinados a moldar a estrutura das relações internacionais das próximas décadas. Ainda na recente cúpula da organização de Xangai (SCO), realizada no Uzbequistão, tanto a China quanto a Índia e a Turquia começaram a se fazer ouvir, pressionando Putin para que encerre o conflito.
A ideia de que o Ocidente pode pensar em impor sua própria linha ou sua própria visão ao resto do mundo se fundamenta em bases frágeis. As votações na ONU são indicativas. Quando se tratou de condenar a Rússia pela invasão da Ucrânia, a maioria foi muito clara. Mas, no dia 9 de abril, quando se votou a suspensão da Rússia do Conselho de Direitos Humanos da ONU, o quadro foi muito diferente. Os 93 votos a favor foram contrabalançados por 82 contra e abstenções: mais da metade da população mundial. Entre as abstenções, registram-se Índia, Brasil, África do Sul, México, Egito, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Jordânia, Catar, Kuwait, Iraque, Paquistão, Singapura, Tailândia, Malásia, Indonésia. Atores dinâmicos no cenário internacional.
E, se quiséssemos contar as democracias liberais do mundo, descobriríamos que elas envolvem apenas um quarto da população global.
Por isso, muitos analistas consideram inviável o caminho de uma estratégia política “West vs. Rest” (o Ocidente versus o Resto do mundo). O caso russo-ucraniano se insere nesse quadro, e, por esse motivo, o discurso sobre a “vitória” de um ou de outro continua sendo complexo e não pode ficar preso a slogans.
Em relação à narrativa da coalizão ocidental, repetida sistematicamente pela quase totalidade dos meios de comunicação e focada unicamente na dicotomia agressor/agredido, Francisco certamente é uma voz fora do coro.
Nos últimos meses, a visão, elaborada pelas intervenções papais e expressada por expoentes da Santa Sé, adquiriu uma organicidade própria, centrada em uma série de pontos:
a) Existe, sem dúvida, o direito de defesa de um povo agredido. “Defender-se não é apenas lícito, mas também uma expressão de amor à pátria”, ressaltou Francisco no voo de volta do Cazaquistão. No entanto, é um direito que deve ser inserido em uma avaliação de proporcionalidade e de moralidade dos efeitos. O secretário de Estado, cardeal Parolin, já mencionava isso nos últimos meses, e o Papa Bergoglio reiterou isso com exemplos: “Pode ser imoral se for feito com a intenção de provocar mais guerra”. Em suma, o quadro geral nunca deve ser perdido de vista.
b) Existem “aspirações legítimas” de ambos os lados, explicou o secretário de Estado no início do conflito. Em outras palavras, se houver interesses de segurança para os Estados Unidos, o mesmo princípio vale também para a Rússia. Obviamente condenando a invasão russa, o senador estadunidense Bernie Sanders destacou: “Há realmente quem acredite que os Estados Unidos não teriam nada a dizer se México, Cuba ou qualquer outro país sul-americano formassem uma aliança militar contra os Estados Unidos?”.
Trabalhar pela paz significa fazer as contas com os fatos, sem afirmar princípios de segurança nacional para si mesmo e negá-los a outras potências.
É significativo que os Estados Unidos e a Austrália tenham ficado alarmados na primavera passada, quando foi anunciado o projeto de um acordo de cooperação, inclusive em matéria de segurança, entre Pequim e as Ilhas Salomão.
Nesse sentido, a tradicional atenção da diplomacia vaticana a um olhar de conjunto se manifesta extremamente realista.
c) O contexto histórico geral também pesa. A exigência de analisar todos os elementos da crise militar e política fez com que Francisco, em uma já célebre entrevista ao La Stampa, em junho passado, exclamasse que não se podia olhar para os acontecimentos ucranianos segundo o esquema da Chapeuzinho Vermelho: “Chapeuzinho Vermelho era boa, e o lobo era o malvado”.
Expressado com grande clareza, o conceito reflete a pedra angular da visão de Francisco sobre o conflito russo-estadunidense em andamento. “Não existem bons e maus metafísicos, de modo abstrato... está emergindo algo global, com elementos que estão muito entrelaçados uns com os outros... (A Otan) estava latindo às portas da Rússia”. É preciso pensar em “raízes e interesses, que (na guerra em curso) são muito complexos”.
Apresentar a Otan de acordo com seu manifesto de fundação no período imediato do pós-guerra, quando nasceu como uma organização defensiva contra a URSS, é anti-histórico. Após o colapso do império soviético, a Otan travou guerra contra a Sérvia, ajudando Kosovo a se separar, sem um mandato da ONU. Mais tarde, deslocou-se para o Afeganistão e o Iraque, fora da sua dimensão defensiva original, apoiando a política de ocupação estadunidense. Hoje, raciocinamos sobre um eventual envolvimento dela para assegurar a estabilidade do espaço indo-pacífico.
É justo considerar a Otan – que se expandiu decisivamente para o Leste após o colapso da URSS – na perspectiva de um bloco político-militar. Nas atas da diplomacia, resta o pedido do presidente russo, Putin, na última parte de 2021, de que lhe fosse fornecida uma garantia por escrito de que a Ucrânia não entraria na aliança atlântica. Solicitação que não foi respondida.
d) Não devemos nos acostumar com a continuação da guerra e com a espiral de aumento das armas postas em campo. Não se deve favorecer uma escalada sem refletir sobre os objetivos finais do conflito.
A coalizão ocidental agora assumiu as exigências de Kiev: retirada da Rússia de todos os territórios da Ucrânia. Na prática, voltar à situação anterior a 2014.
Concretamente, o que isso significa? Expulsar os russos do Donbass, onde nunca se realizou aquela autonomia para os russófonos, assegurada pelos chamados acordos de Minsk? Expulsar a Rússia também da Crimeia, onde se encontra a base naval estratégica de Sebastopol? (que, para Moscou, equivale em importância ao que a base de Guantánamo na ilha de Cuba representa para os Estados Unidos).
Toda resposta envolve efeitos específicos. A Santa Sé não entrou nesses detalhes. A revista dos jesuítas La Civiltà Cattolica, cujos rascunhos são revisados pela Secretaria de Estado, destacou, no entanto, uma ideia geral: não corresponde aos interesses da paz mundial tratar a Rússia como a Alemanha guilhermina foi tratada pelas potências vitoriosas da Primeira Guerra Mundial. Esmagar uma nação dessa maneira tem efeitos desastrosos.
Entrevistado pelo Vatican News, o economista jesuíta Gaël Giraud lembrou ainda que a esperança de provocar uma mudança de regime na Rússia, derrubando Putin, poderia se revelar falaciosa e o início de um caos como o Iraque e a Líbia experimentaram após a queda de Saddam Hussein e Kadafi. Giraud, no entanto, é da opinião de que uma solução de paz deveria incluir a realização de referendos no Donbass e na Crimeia para deixar nas mãos das populações envolvidas a escolha de seu futuro.
A ideia de não abordar a questão com uma atitude revanchista também foi defendida pelo presidente francês, Macron, na Conferência sobre o Futuro da Europa em maio: o compromisso de preservar a soberania e a integridade territorial da Ucrânia, ressaltou, não deve significar “travar guerra à Rússia”. Porque a necessidade de construir novos equilíbrios de segurança no futuro exige “nunca ceder à tentação da humilhação e do espírito de vingança”.
e) Em última análise, segundo Francisco, é preciso trabalhar por uma “nova governança” mundial. Apresenta-se, portanto, do lado vaticano, o projeto de um equilíbrio multipolar a ser construído em nível internacional com a mesma paciência com que em 1975 se chegou ao Tratado de Helsinque, entre Estados Unidos, Canadá, democracias da Europa ocidental e URSS, com os países do Pacto de Varsóvia. Hoje, trata-se de trabalhar segundo um método semelhante, mas em escala planetária: as novas regras devem ser encontradas e estabelecidas junto com os novos protagonistas do cenário internacional. A começar pela China.
Não por acaso, dirigindo-se a Nur-Sultan, Francisco reiterou sua disponibilidade de ir a Pequim. Não é sem significado que, ao falar no consistório extraordinário de agosto, o Papa Bergoglio tenha elogiado os talentos do cardeal Agostino Casaroli, mestre da diplomacia vaticana precisamente em anos cruciais da Guerra Fria, quando era necessário tecer o difícil diálogo entre Leste e Oeste.
Um mundo unipolar não é sustentável. O Papa Wojtyla, dez anos após a queda do Muro de Berlim, já comentava: “Não sei se é bom” que tenha restado uma única superpotência. A anotação foi feita durante o voo sobre o Atlântico em janeiro de 1999, dirigindo-se para o México e depois para os Estados Unidos em St. Louis (recebido pelo presidente Clinton).
Precisamente nessa cidade, celebrando as Vésperas na catedral, Wojtyla advertiu os Estados Unidos contra a tentação da onipotência, citando o episódio da travessia do Mar Vermelho por obra de Moisés, evento em que o povo de Israel se salvou, e o exército do faraó pereceu. “Há uma lição para toda nação poderosa”, disse João Paulo II, exortando os Estados Unidos a trabalharem pela paz, pela justiça e pela vida.
Dois anos depois, após o término da presidência de Clinton, George W. Bush se tornaria presidente: o atentado às Torres Gêmeas em setembro de 2001 foi seguido pelas aventuras militares no Afeganistão e no Iraque.
f) Para bloquear uma escalada da guerra na Ucrânia, de resultados imprevisíveis, Francisco propõe não continuar adiando o início das negociações. No ponto de virada dos 100 dias de conflito, o papa pedia que “sejam postas em prática verdadeiras negociações, negociações concretas para um cessar-fogo e para uma solução sustentável”. No Cazaquistão, ele reiterou: “Não nos acostumemos com a guerra, não nos resignemos à sua inevitabilidade… O que ainda é preciso ocorrer, quantos mortos será preciso esperar antes que as contraposições cedam lugar ao diálogo pelo bem das pessoas, dos povos e da humanidade? A única saída é a paz, e o único caminho para chegar lá é o diálogo”.
Um diálogo, explicou ele depois aos jornalistas, que deve ser feito mesmo quando “fede”, porque deve ser feito com o agressor: deve ser buscado com “qualquer potência que esteja em guerra”.
Esse conjunto articulado de temas se fundamenta em uma premissa sobre o papel do chefe da Igreja Católica: o pontífice não é o “capelão” do Ocidente, pronto para alistar Deus e para abençoar a guerra em seu nome. É um clichê que não corresponde à realidade. Isso foi publicado com autoridade, em página inteira, na abertura do L’Osservatore Romano de 14 de março de 2022, assinado por Andrea Tornielli, diretor editorial do Dicastério para a Comunicação.
Em geral, essa posição papal é compartilhada dentro das hierarquias eclesiásticas por um grupo sólido, que inclui tanto expoentes reformistas quanto expoentes conservadores. No entanto, não faltam no mundo católico correntes claramente alinhadas com a atual estratégia ocidental.
Francisco, porém, capta um estado de ânimo amplamente generalizado entre crentes e não crentes, que não são particularmente politizados, mas sentem com incômodo a contínua pressão midiática “de cima”, segundo a qual é preciso seguir em frente com a guerra e não fazer perguntas. O fenômeno ainda não foi estudado, mas é generalizado um incômodo, por exemplo, que poderia ser definido como pré-político, pela presença contínua e obsessiva de Zelensky nas telas de televisão e nas mais variadas ocasiões – de uma sessão parlamentar a uma cúpula internacional, passando pelo Festival de Cinema de Cannes ou de Veneza –, em que o presidente ucraniano diz ao público de forma assertiva o que é preciso fazer.
O papa argentino também capta um sentimento compartilhado entre os Estados que podem ser definidos como não alinhados, para os quais a guerra representa um fator de desordem e de dano na difícil recuperação após o choque sanitário e econômico da pandemia. As palavras que o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, dirigiu a Putin em Samarcanda durante a cúpula da organização de Xangai são indicativas a partir deste ponto: “Excelência, eu sei que a época atual não é (uma época) de guerra, e ao telefone já dissemos muitas vezes que democracia, diplomacia e diálogo são as coisas que tocam o mundo”. Há problemas cruciais a serem enfrentados, a crise energética, a crise alimentar, os nós da situação geopolítica, como se disse no colóquio bilateral entre o líder da Índia e o russo.
Francisco, como já ocorreu com João Paulo II na época da invasão do Iraque, intercepta, em suma, sentimentos e exigências generalizadas em nível mundial. Onde a paz não é uma aspiração abstrata e adocicada, mas uma condição essencial para o desenvolvimento.
Na sua opinião, a Rússia vai vencer essa guerra? Você sabe bem que há opiniões de autoridade que dizem que Putin já perdeu. E, se ele vencer, será o fim da Ucrânia, como disseram vários porta-vozes do Kremlin?
Esta guerra já é um desastre para Putin. O projeto de se apoderar de Kiev fracassou, o projeto de prender ou forçar o presidente Zelensky a fugir fracassou, o projeto de derrubar o Estado ucraniano fracassou, e, enfim, a recente contraofensiva ucraniana representou um golpe duríssimo contra o prestígio do exército russo.
Se a “operação militar especial” devia mostrar ao Ocidente e ao mundo que Moscou é uma grande potência, os acontecimentos dos últimos meses terminaram em um desastre. Putin obteve uma derrota estratégica e muitas derrotas táticas. O exército se manchou de crimes de guerra. Veio à tona que os soldados russos estão despreparados, desmotivados, a qualidade humana é decadente, o armamento é decadente, o moral é baixo. Nos primeiros tempos, assistimos a cenas dolorosas de saques de eletrodomésticos e televisores, que sinalizam miséria das famílias de origem.
Nas últimas semanas, também circularam notícias sobre a recusa de soldados russos de ir combater na Ucrânia.
Igualmente grave é a dificuldade em substituir os armamentos que foram destruídas. Por fim, vieram à tona falhas impressionantes nos serviços de segurança e de espionagem, que eram a menina dos olhos dos aparatos russos. É impressionante a relativa facilidade com que esquadrões de sabotadores ucranianos conseguem matar ou mandar pelos ares expoentes militares e civis russos, russófonos ou colaboracionistas.
Dito isso, as guerras sempre podem reservar surpresas. Uma coisa, no entanto, já pode ser dada como certa: a Ucrânia fortaleceu seu senso de comunidade nacional, demonstrou dotes excepcionais como combatente e, se alguém pensava em apagá-la do mapa, era um delírio.
Putin sempre teve uma expressão gélida e imperturbável, mas, na cúpula de Samarcanda – cara a cara com Modi –, seu rosto estava pálido e, durante o discurso do primeiro-ministro indiano, as agências relatam que o presidente russo muitas vezes tinha os olhos voltados para o chão.
A guerra provou ser um choque sem precedentes para a população russa. A imagem de Putin, que remete a ordem e grandeza, entrou em uma forte crise. No fundo, o líder russo deve sua ascensão a uma promessa que espelha o slogan de Trump: “Make Russia Great Again”. Nas últimas décadas, o aumento da influência de Moscou foi constante.
O fato de uma personagem pop como a cantora Alla Pugaciova, de 73 anos (idolatrada desde os tempos da URSS), lançar no Instagram o apelo para que “nossos jovens parem de morrer por objetivos ilusórios, que tornam o nosso país um pária” é um sinal alarmante para o regime.
Na população, o estado de ânimo é muito misturado. Consternação e preocupação. Quem tem os meios e as conexões certas tenta se mudar para o exterior. Quem deve ficar na pátria oscila entre o desejo de sair do túnel da guerra e das sanções e, por outro lado, o impulso “patriótico” de cerrar fileiras para resistir à tempestade. Mas as sanções mordem, e a sensação de ser empurrado para as margens da sociedade internacional representa um duro contragolpe para quem estava convencido de que os tempos sombrios ficaram para trás. Aqui e ali, entre expoentes políticos locais de marca democrática, manifestam-se sinais de protesto e até de contestação direta à liderança de Putin. O descontentamento dos ultranacionalistas também surge por motivos opostos.
Se entre os “falcões” do campo ocidental existe o objetivo de derrubar Putin, deve-se notar, porém, que seu fim não seria automaticamente o prelúdio de uma primavera democrática. Tampouco é previsível a que poderia levar um colapso da Federação Russa. Raiva, frustração e desorientação social são muitas vezes sementes de explosões violentas e de movimentos autoritários. Um país em desordem com armamento nuclear seria um pesadelo, não um salto para a democracia. É por isso que os defensores de uma espécie de “guerra santa” devem ser rejeitados.
Há um fato histórico que se destaca com clareza. As temporadas de abertura na Rússia sempre ocorreram em uma fase de distensão internacional, nunca no meio de um confronto pela sobrevivência. O degelo de Khrushchev foi o fruto da primeira distensão. A perestroika de Gorbachev se desenvolveu em um período de aproximação Leste-Oeste e de grandes negociações sobre o desarmamento: sobretudo, a única primavera democrática que a Rússia teve na segunda metade dos anos 1980 foi possibilitada pelos acordos de Helsinque, pela difusão gradual de um clima de “desescalada” psicológica (apesar da ocorrência em certos momentos de sobressaltos duramente polêmicos).
Portanto, fica em aberto se a coalizão ocidental seguirá o impulso daqueles que, por motivos de rancor histórico, querem “colocar a Rússia de joelhos” e destruir Putin como um “mal absoluto” ou se aterá à abordagem expressada por Henry Kissinger, segundo o qual não se deve esquecer que a Rússia faz parte do “sistema europeu” há quatro séculos e, portanto, deve ser trazida de volta para esse espaço, até para evitar que seja lançada nos braços da China.
O presidente Biden, até agora, se moveu seguindo uma linha racional. Evitou qualquer intervenção de tropas da Otan em solo ucraniano, recusou-se a declarar a Ucrânia “no fly zone”, como Zelensky pedia, porque isso implicaria a intervenção da aviação da Otan, dosou atentamente a qualidade das armas chamadas defensivas e ofensivas, proibiu que Zelensky usasse as armas ocidentais para atingir alvos em território russo.
Biden também descartou a proposta apresentada pela comissão de Relações Exteriores do Parlamento letão de declarar a Rússia um “Estado terrorista”. Uma hipótese que lança luz sobre a histeria em que todo o conflito corre o risco de escorregar.
Resta saber o que os Estados Unidos entendem como objetivo final da guerra. O secretário de Defesa estadunidense, Lloyd Austin, convocando para a base militar de Ramstein (Alemanha) a coalizão dos países defensores da Ucrânia, declarou em abril: “Nós queremos ver a Rússia enfraquecida a tal ponto que não possa mais fazer coisas como a invasão da Ucrânia”. Poderia ser um chamado à ação para levar Moscou de volta à razão ou poderia revelar a vontade de reduzir a Rússia de uma vez por todas a uma potência de segundo escalão, uma espécie de Sérvia (mas com armas nucleares). Uma versão ou outra teria efeitos muito diferentes.