A luta dos uberizados no pós-pandemia

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25 Mai 2022

 

Quando pensamos no cenário da sociologia brasileira hoje, o nome de Ricardo Antunes é um dos mais destacados entre os pensadores da área. Inserido no campo da Sociologia do Trabalho, Antunes tem como marca de sua obra uma interpretação crítica e solidamente marxista sobre as relações de trabalho no capitalismo. A rebeldia do trabalho, que destrincha as greves do ABC paulista, e Adeus ao trabalho?, que apresenta as metamorfoses do trabalho na contemporaneidade, são alguns de seus escritos que reforçam a cada dia seu caráter de clássicos indispensáveis, constando ano após ano nas leituras promovidas nos cursos de humanidades.

 

Com a sociologia brasileira, as mudanças no mundo do trabalho que já estavam em curso nos últimos anos se tornaram ainda mais aceleradas. Jair Bolsonaro consolida a destruição dos direitos trabalhistas tradicionais em paralelo à proliferação das novas formas precárias de emprego vinculadas às tecnologias digitais. Nossos parceiros da Boitempo Editorial lançam neste mês Capitalismo Pandêmico (já disponível para compra no site), coletânea dos textos produzidos por Ricardo Antunes no contexto da pandemia da COVID-19. Neles, o sociólogo analisa a história da luta dos trabalhadores brasileiros, os rumos do atual governo, a situação política da América Latina e outros temas atuais.

 

O trecho a seguir compõe o capítulo Trabalho e Igualdade Substantiva do livro Capitalismo Pandêmico, onde Ricardo Antunes, professor titular de Sociologia do Trabalho no IFCH/Unicamp, propõe imperativos cruciais para tempos de trabalho uberizado e plataformizado

 

A introdução ao texto é de Guilherme Arruda. O capítulo foi reproduzido por Outros Quinhentos, 23-05-2022

 

Boa leitura a todos!

 

Eis o texto.

 

I

 

Ao escrever a “Introdução” do livro A montanha que devemos conquistar, primeira parte conhecida de sua obra póstuma Para além do Leviatã, o filósofo István Mészáros deu continuidade à elaboração de um dos elementos nodais de sua construção intelectual: a luta pela emancipação da humanidade passa indelevelmente pela conquista da igualdade substantiva.

 

Ao ilustrá-la, Mészáros recorre a um expressivo depoimento, que inspirou as ações populares durante as revoluções francesa, norte-americana e inglesa e se contrapôs aos formalismos legalistas que obstavam a conquista de avanços substantivos: “Desde tempos imemoriais, eles hipocritamente repetem: todos os homens são iguais, e desde tempos imemoriais a desigualdade mais degradante e monstruosa pesa insolentemente sobre a raça humana”. Dando ainda mais concretude à reivindicação, o depoimento acrescenta: “precisamos da igualdade de direitos não só inscrita na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão; nós a queremos em nosso meio, sob os telhados das nossas casas”.

 

Essa passagem me ocorre a propósito do trabalho, sua produção e reprodução social, tema absolutamente vital para a humanidade, em plena época em que sua derrelição ou mesmo sua devastação encontram-se em curso acelerado. Como garantir os direitos humanos, particularmente em relação ao direito ao trabalho, em uma sociedade que apresenta uma abissal desigualdade social? Como efetivá-lo quando, mesmo antes da pandemia, em fevereiro de 2020, contabilizávamos no Brasil quase 40% da força de trabalho na informalidade e, portanto, à margem da legislação social protetora do trabalho?

 

O cenário é tão devastador que, em maio de 2021, a imprensa, a partir de dados do IBGE, apresentou uma manchete aparentemente “auspiciosa”: a informalidade diminuíra. Mas, analisando os dados, constatava-se que muitos trabalhadores e trabalhadoras informais estavam perdendo suas ocupações. Ou seja, a imprensa acabava de apresentar a mais recente aberração social: a do(a)s trabalhadore(a)s informais desempregado(a)s. E, para fechar o círculo, que inclui o desemprego aberto e aquele por desalento, terminamos o ano pandêmico de 2020 com cerca de 20 milhões de desempregados. Sem mencionar os altos níveis de subocupação e subutilização.

 

É preciso enfatizar, então, que essa abjeta desigualdade social foi exasperada, mas não foi causada pela pandemia. Ela vem sendo forjada, passo a passo, pelas incontáveis (des)construções do sistema do capital, que (des)estrutura a totalidade social e, em nosso solo, viceja desde o advento da Colônia. Nos (tenebrosos) dias atuais, nós atingimos, além da destrutividade, também a letalidade.

 

II

 

No Brasil, conhecemos os principais elementos estruturantes dessa tragédia humana e social. Basta lembrar que a vida comunal indígena que aqui vigorava, e foi responsável pela criação de uma sociedade verdadeiramente sustentável, foi dizimada pela chegada do emergente mundo burguês, já então movido pela lógica da mercadoria e do dinheiro.

 

O trabalho aqui existente, antes de sermos “descobertos” pelo “mundo civilizado”, era verdadeiramente social, autônomo e prioritariamente voltado para o atendimento das necessidades (materiais e espirituais) das comunidades indígenas, mesclando, com leveza, atividade vital, catarse e fruição, momentos que somente podem efetivamente se inter-relacionar quando o trabalho é dotado de sentido humano e social. As comunidades indígenas não necessitavam dos cronômetros nem das “metas” produtivistas que nos são cada vez mais impostas.

 

Instaurada a “nova Colônia”, nossa sociedade original se transmutou e transfigurou. Converteu-se em apêndice da Metrópole, subordinada ao “Novo Mundo”. Aquilo que até então contemplava a atividade vital virou predação e servidão.

 

O que então sinalizava coágulos daquilo que os ingleses denominam work (para diferenciá-lo de labour) gerou outro monstrengo ainda mais horripilante e profundamente antissocial: aquilo que se tornou a enorme e profunda chaga que rasga e até hoje macula a sociedade brasileira. Um esquadrão assanhado de ávidos burgueses alvos, mercantis e europeus, sempre em nome da “civilização”, introduziu entre nós o que é ainda nosso vilipêndio maior: para garantir a produção colonial (que Caio Prado Jr. tão bem definiu como o sentido da colonização), criou-se a escravidão africana, a nova mercadoria barata que passou a ser traficada para a nova terra santa.

 

Maryse Condé exprime algo desse sentimento de horror que maculava em profundidade a população negra escravizada de Barbados em seu forte e belíssimo livro Eu, Tituba, bruxa negra do Salem: “Sem dúvida um navio negreiro acabara de lançar âncora, pois, debaixo do toldo de palha de um Mercado, ingleses, homens e mulheres, examinavam os dentes, a língua e o sexo dos boçais (negros recém-desembarcados e não batizados), que tremiam de humilhação”. Ou ainda: “Que mundo era aquele que me separava dos meus? Que me obrigava a viver entre pessoas que não falavam a minha língua, que não compartilhavam a minha religião…”.

 

No Brasil, o pretenso “país cordial” talhou para si, desde os primórdios da colonização, uma marca animal. Desenvolveu uma mistura pouco fina entre o mundo aristocrático/senhorial/escravista emergente e a burguesia mercantil florescente (ou será praguejante?), ambos deitados e acumulando riqueza sobre a escravidão africana. Nascia, assim, uma variante de prussianismo colonial-escravista que, ao mesmo tempo que sonhava com a Europa, exercitava sua pragmática racista e predadora de escravos.

 

Passaram-se centenas de anos, várias décadas e alguns séculos. O país “modernizou-se”, mas preservou o forte traço ontogenético. A acumulação primitiva colonial deslanchou, virou agricultura de exportação, tornou-se indústria, metamorfoseou-se em finanças, oligopolizou-se e monopolizou-se em alguns ramos e setores. Integrou-se externamente de modo subordinado e desintegrou-se internamente. Gerou aberrações inimagináveis, mesmo sabendo que exemplares desse naipe se esparramam em tantas partes do mundo.

 

O governo Bolsonaro, resultado de uma (só aparentemente) esdrúxula combinação entre neoliberalismo primitivo e autocracia militarizada e tutelada, é um exemplar dessa espécie, o que por certo parece assustador, pois foi resultado das urnas, não importando aqui sob quais condicionantes.

 

Nem o período da ditadura militar foi tão devastador em relação ao trabalho no Brasil como os últimos quatro anos. Os períodos anteriores por certo não foram gloriosos, longe disso. Só para citarmos alguns exemplos mais recentes, a liberação da terceirização e a contrarreforma trabalhista, ambas gestadas no governo Temer, acrescidas do desmonte da previdência pública e à ameaça diuturna de Bolsonaro de implantar a carteira de trabalho “verde e amarela”, mostram a que ponto chegamos.

 

No entanto, a desigualdade visceral e a devastação social, articuladas à destruição ilimitada do meio ambiente por queimadas, desmatamentos, aquecimentos decorrentes da energia fóssil, assim como ao descontrole do agronegócio, tudo nos empurra para o fundo da fossa.

 

Essas medidas, vale dizer, se amplificaram exponencialmente nesse terrível cenário moldado pela pandemia. Urge acrescentar, porém, que a contaminação em massa pela covid-19, além de possuir uma clara conformação corpórea, pois atinge mais letalmente o corpo da classe-que-vive-do-trabalho, articula-se transversalmente com as vitais dimensões de gênero, raça e etnia.

 

III

 

Para melhor compreendermos, ainda que de modo sintético, as tantas complexificações em torno do tema da depleção do trabalho no mundo atual, algumas indagações tornam-se necessárias. Que caminhos e motivações têm levado a essa monumental derrelição, desmontagem ou mesmo devastação do trabalho, em amplitude global e exasperadas em nosso país?

 

Trata-se, como tantos dizem (em geral aqueles que ficam com as benesses), de um movimento irreversível? Será que estamos caminhando, como propagandeiam, rumo a uma nova era da felicidade, agora moldada pelo mundo internético, digital e algorítmico? Na contraposição: será possível que essa “nova ordem” seja experimentada igualitariamente pela totalidade da população, em todos os seus quadrantes?

 

Esse cenário nos leva, então, a indagar por que em pleno século XXI estamos contemplando um enorme avanço tecnológico, impulsionado pelo universo informacional-digital (que enriquece ilimitadamente as novas personificações do capital), e, paralelamente, um aumento brutal dos níveis de empobrecimento e miserabilidade. As estatísticas colocam o Brasil em destaque, no topo do ranking da desigualdade social, com a miserabilidade esparramando-se na base da pirâmide social e o enriquecimento ampliando-se de forma concentrada no topo. Quais são, então, os reais elementos causais que podem nos ajudar a compreender esse aparente paradoxo?

 

Preliminarmente, é necessário recordar, ainda que de modo breve, o início da década de 1970, quando o capitalismo de base taylorista-fordista, depois de longos ciclos de ascenso e descenso, desembocou em uma crise estrutural de grande profundidade, o que o obrigou a reordenar suas engrenagens na esfera da dominação e nas formas de sua produção. Tanto o welfare state, exclusivo para um restrito e seleto grupo de países do Norte, quanto o binômio taylorismo-fordismo deveriam ser eliminados da “nova ordem mundial capitalista”.

 

Foi assim que se desencadeou um amplo movimento de reestruturação produtiva, permanente e global, comandado pelo capital financeiro, orientado pelo ideário e pela pragmática neoliberais, e impulsionado por um monumental avanço técnico-informacional-digital, com as chamadas tecnologias digitais de informação e comunicação (TDIC) à frente. Esse complexo e totalizante movimento do sistema de metabolismo antissocial do capital desenvolveu-se ao mesmo tempo que o desemprego estrutural se ampliava, fazendo aumentar exponencialmente a força excedente de trabalho, cada vez mais ampla e supérflua, até se tornar, pouco a pouco e cada vez mais, disponível para aceitar qualquer labor, independentemente de suas condições, direitos e regulamentações.

 

A partir dos anos 2008-2009, com o enorme agravamento da crise estrutural, as grandes empresas e os grandes complexos corporativos globais perderam de vez a compostura (se é que um dia tiveram) e avançaram em sua desmedida empresarial, segundo a expressão de Danièle Linhart. Foi então que, lenta e gradualmente, a flexibilização, a informalidade, a terceirização e a intermitência, todas essas “maravilhas” e “modernidades” do ideário empresarial, tornaram-se o leitmotiv corporativo. De exceção passaram, portanto, a ser cada vez mais a regra. O exemplo mais recente, um verdadeiro Frankenstein social, atende pelo nome de trabalho uberizado.

 

Um rápido e emblemático exemplo fala por si só. Foi nesse contexto que deslancharam as chamadas plataformas digitais, que nem sequer apareciam no tabuleiro do capital na primeira década de 2000. Elas cresceram no curso da segunda década, com alta intensidade nos últimos anos, em pleno capitalismo pandêmico ou virótico, conforme exposto no primeiro capítulo.

 

Ágeis e lépidas no manejo do universo maquínico-digital, foram pouco a pouco destronando as grandes corporações tradicionais. Criaram um léxico que hoje se esparrama pelo mundo: platform economy, gig economy, crowdwork, collaborative economy. Isso ocorreu em conjunção com as alquimias “neutrais” dos algoritmos, big data, 5G, internet das coisas, inteligência artificial, indústria 4.0 etc., em um longo período de desemprego e precarização estrutural do trabalho em escala global. A nova receita articula alta tecnologia digital e utilização ilimitada da força de trabalho sobrante, o que vem gerando o que chamei de escravidão digital.

 

É por isso que encontramos cada vez mais um enorme contingente de trabalhadores e trabalhadoras que frequentemente têm jornadas de mais de doze horas por dia, seis ou sete dias por semana, sem direito a descanso semanal, férias ou previdência social, e recebendo salários degradantes.

 

Amazon (e Amazon Mechanical Turk), Uber (e Uber Eats), Lyft, Google, Cabify, 99, Lyft, IFood, Glovo, Deliveroo, Rappi, dentre tantas outras plataformas digitais, souberam muito bem interconectar as tecnologias digitais da informação e comunicação com a enorme massa sobrante de trabalho em escala planetária.

 

Mas foi preciso dar um salto adiante, dar o pulo do gato: urgia transfigurar ainda mais o trabalho assalariado para lhe dar a aparência de não assalariamento. Isso lhes permitiu, em um contexto de crise estrutural e enorme desemprego, absorver esses enormes contingentes sem ter de lhes garantir a legislação social protetora do trabalho, driblada a qualquer preço e custo, como comprovam as fortunas pagas aos escritórios de advocacia empresarial para lhes apresentar caminhos possíveis de burla.

 

Além disso, era preciso avançar na mistificação empresarial. Para tal, montou-se uma monumental onda ideológica, uma verdadeira pregação em defesa do empreendedorismo, nova denominação para mascarar o assalariamento – sempre, é claro, com louros e glórias, com muita sinergia e ilimitada resiliência. Foi com esse passe de mágica que milhares (e mesmo milhões) de assalariado(a)s desempregado(a)s, do dia para a noite, tornaram-se “empresários de si mesmos”, ainda que vivenciem um universo laborativo que mais os aproxima dos “proletários de si próprios”. Foi assim também que se desenvolveu (e não para de se expandir) o trabalho uberizado, também conhecido como trabalho plataformizado, que deslocou para trabalhadores e trabalhadoras praticamente todos os custos do trabalho: são eles e elas que compram ou alugam carros, motos e bicicletas, e arcam com as despesas como mochilas, celulares, alimentação etc.

 

Para concluir, vale ainda uma nota final: não se pense que o trabalho uberizado ou plataformizado está restrito a motoristas e entregadore(a)s. O potencial de expansão é enorme, como pude indicar em O privilégio da servidão. Médicos, enfermeiras, jornalistas, professores, advogados, arquitetos, engenheiros, tradutores, trabalhadoras do care (cuidados), empregadas domésticas, a lista não para de crescer e abrange um leque enorme de atividades desenvolvidas especialmente nos serviços.

 

É por isso que já há, para uma imensidão de atividades, ávidas plataformas digitais oferecendo trabalho. Uma das empresas mais poderosas do mundo hoje, a Amazon, começou vendendo livros. Atualmente, “vende” um espectro enorme de mercadorias utilizando força de trabalho em quase todos os quadrantes do mundo.

 

Que não se pense, então, que desse flagelo estamos livres. Não há nenhuma garantia de que um PhD hoje não possa ser um uberizado amanhã.

 

Se assim é, o desafio mais urgente e ao mesmo tempo mais imediato em nossos dias é exigir direitos em todas as suas formas e modalidades de trabalho, condição mínima para que sejam garantidos ao menos coágulos de dignidade na atividade laborativa.

 

O que já seria um primeiro passo na batalha pela igualdade substantiva, que se torna, então, um imperativo crucial de nosso tempo.

 

 

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