Segundo a pesquisadora, como motoristas e entregadores, os trabalhadores do cuidado exercem suas funções a baixas remunerações e sem nenhuma proteção. E pior: profissionais ainda sofrem com duríssima discriminação
Não é de hoje que se discute que o trabalho via plataformas está muito mais para precarização de atividades laborais do que para liberdade profissional e empreendedorismo. Fato é que essas lógicas têm se estendido para as mais diferentes atividades profissionais. “O que percebemos é que não há um movimento único e por isso é importante analisarmos todos os setores. Em cada setor, essas plataformas entram de uma forma diferente e tem consequências diferentes”, aponta Ana Claudia Moreira Cardoso, socióloga que tem se dedicado a pesquisas sobre o tema. Para ela, é tudo parte de um processo de externalização, onde as empresas externalizam custos e mantêm o controle sob o trabalho das pessoas.
Como marca Ana Claudia, em entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU via videochamada de WhatsApp, embora seja um movimento amplo e que deve ser olhado em totalidade, as consequências sobre os profissionais são muito diferentes. No caso dos profissionais das atividades de cuidado (que compreendem desde profissionais como babás, cuidadores de idosos e doentes até arrumadeiras, porteiros, motoristas, faxineiros e jardineiros), há uma marca discriminatória muito grande. “Não é à toa que as plataformas de cuidado, apesar de terem mais trabalhadores, têm uma visibilidade menor do que plataformas de entrega e de transporte, que é onde a gente tem o trabalho na rua e feito por homens. É o público, o visível. No caso das plataformas de cuidado, é um trabalho, como sempre, realizado dentro do domicílio e por mulheres”, explica Ana Claudia.
Além disso, essas plataformas que recrutam esses profissionais têm outras particularidades. Elas, por exemplo, expõem as fotos dos profissionais. Para Ana Claudia, isso, de imediato, num país como o Brasil, faz com que sejam recrutadas pessoas dentro de um perfil, ou seja, brancas, magras, jovens etc. E veja que nos transportes por aplicativo se consegue ver a foto do motorista somente depois que ele aceita a corrida. Isso tudo além das discriminações que as mulheres sofrem em geral em qualquer atividade por aplicativos. “As mulheres falam que elas recebem menos corridas e corridas menos interessantes. E é isso mesmo, os algoritmos vão mandar demanda para aquelas pessoas que estão mais tempo disponíveis. E não é o caso das mulheres, pois além do trabalho chamado de ‘produtível’, elas são responsáveis pelo trabalho reprodutivo”, completa.
Ainda há toda a questão de desproteção em casos de acidentes e problemas com o cliente contratante da profissional do cuidado, pois a plataforma se exime de qualquer problema. Sem falar na perda da humanidade na relação entre quem contrata e quem realiza a atividade de cuidado. “Acabou. Esquece. Se vai pelo preço mais barato ou, entrando na nossa questão de discriminação, vai buscar aquele modelinho padrão. É tudo uma ilusão”, dispara a pesquisadora. Temos assim um quadro que é a discriminação na precarização. “Quando escrevemos sobre o tema, tentamos trazer a questão de tal forma que o cliente perceba o que está acontecendo. Ele não só está ajudando a precarizar o trabalho do outro, como amanhã seu próprio trabalho pode ser plataformizado, assim como também não está entendendo que é ele que está assumindo os riscos”, completa.
Ana Claudia (Foto: Arquivo pessoal)
Ana Claudia Moreira Cardoso é pesquisadora da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF e do GT (Grupo de Trabalho) Trabalho Digital da Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista – REMIR. Possui doutorado em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP e pela Universidade Paris 8 e mestrado em Ciência Política pela USP. Realizou pós-doutorado em Sociologia na Universidade de Brasília - UnB e no Centre de recherches sociologiques et politiques de Paris.
Ana Claudia coordena a elaboração de artigos a respeito do processo de plataformização do trabalho nos mais diferentes setores da economia, que são escritos por pesquisadores(as) e dirigentes sindicais, em parceria com a Faculdade do Dieese e a Remir. Toda quinta-feira, no site Outras Palavras, um setor é analisado. O artigo sobre a uberização no trabalho de cuidados, que é a base desta entrevista e republicado pelo IHU, foi escrito juntamente com Maria Julia Tavares Pereira.
IHU – Como a senhora compreende esse espraiamento das lógicas da uberização no mundo do trabalho?
Ana Claudia Moreira Cardoso – Na verdade, isso é um processo de externalização e que é importante entendermos. Esse processo de externalização começa nos anos de 1970 e, a cada momento, vai se realizando a partir de um movimento diferente. Basta pensarmos nos processos de terceirização, PJ [constituição de ‘pessoa jurídica’, quando trabalhadores adotam essa tipificação legal como se eles próprios fossem uma empresa autônoma], MEI [Micro-empreendedor individual, uma outra classificação para trabalhadores que se tornam ‘empresas’], o próprio home office que já existia antes e que não surge só com a pandemia e a plataforma. Ou seja, são formas que o capital está encontrando para externalizar.
Assim, externaliza a produção, custos, gastos e, também, externaliza responsabilidade. E, contudo, mantém o controle. Até porque a tecnologia, cada vez mais, possibilita manter o controle e, inclusive, aumentá-lo. Então, externalizo responsabilidades, custo, gasto e mantenho o controle de todo o processo e dos trabalhadores. Quando olhamos o processo de plataformização temos que pensar nisso, pois está dentro de uma lógica de precarização do trabalho muito mais ampla. Até por isso não gosto de usar o termo uberização como sinônimo de precarização, porque acredito que a uberização é uma das formas de precarização do trabalho que acontece via plataformas digitais.
IHU – O que diferencia movimentos de precarização como a terceirização, a PJ e agora a uberização, além da questão da tecnologia?
Ana Claudia Moreira Cardoso – Temos sempre um movimento conjunto. Aliás, Marx já falava isso: toda mudança na estrutura significa uma mudança na ideologia. É porque a ideologia tem que justificar para a sociedade que aquela mudança que está acontecendo é a única possível e a melhor para todo mundo. Assim, temos movimentos que são paralelos. Temos o neoliberalismo, com toda a sua cartilha ideológica de que cada um agora é autossuficiente, que pode fazer tudo e que não precisa do Estado, não precisa do sindicato, não precisa de ninguém. Ao mesmo tempo que temos esse movimento que está destruindo a legislação trabalhista, criando formas de contratação instáveis etc., de outro lado temos a tecnologia. E, num outro movimento, ainda, você tem o modo de produção flexível.
Então, são esses movimentos que se encontram e possibilitam ao capital fazer esse processo de externalização. Se tínhamos um processo de externalização que ainda era minimamente legislado, que é o caso da terceirização, em que sabemos que é uma precarização – vários estudos mostram que há jornada maior, menos direitos, remuneração menor, uma rotatividade maior –, pelo menos, minimamente, ainda estava dentro de um quadro legal. Quando começa com PJ, MEI e as plataformas, se vai, inclusive, rompendo com essa única segurança que se tinha.
É um rompimento mesmo, por isso acho que essa é a grande diferença. A mesma coisa se aplica ao home office. É uma forma de externalizar? Claro que é. E já vinha acontecendo antes da pandemia, mas, minimamente, você tem um vínculo. Inclusive fora do Brasil existem legislações muito boas nessa questão do home office, como na União Europeia, justamente para garantir os mesmos direitos.
Então, o capital vai tentando, fazendo testes para detectar onde ele consegue precarizar um pouco mais e onde a sociedade aceita, assim como onde ele não consegue. A mesma coisa na questão das plataformas. Está havendo resistência, sobretudo fora do Brasil, mas agora até no Brasil também. Mas, apesar das resistências, ele vai se engendrando e amanhã não se pode saber o que surgirá. Por isso, também, digo que temos de tomar cuidado para não chamar tudo de uberização, porque não é. Senão, perdemos a capacidade de diferenciar.
A uberização é isso: um processo de precarização a partir de plataformas digitais. O que eles fizeram? Percebemos que eles entram nos setores que já eram mais precários. Por exemplo, setor de cuidados, de entrega, de transporte individual, porque é mais fácil entrar por aqueles setores que já estão (e aqui reforços as aspas) “na franja”. Isso porque não tem legislação, a sociedade já aceita, acha natural que seja assim, os próprios trabalhadores já estão habituados a estar no mercado de trabalho de forma precária. É por aí que as plataformas entram.
Não é à toa, tem um porquê, elas entram justamente porque é mais fácil. O que já havíamos percebido há muito tempo é que o capital não vai parar por aí, esse é um teste. Fez o teste e deu certo? Agora, vai além. O que estamos percebendo é justamente isso, temos um processo de intensificação da precarização naqueles setores que já eram precários e só que, além disso, você tem um processo de precarização naqueles setores que ainda não eram precários.
IHU – O que são exatamente as plataformas de cuidado? Que tipo de trabalhadores elas agregam?
Ana Claudia Moreira Cardoso – Dividimos as plataformas de atividades de cuidado pessoal, como a babá, cuidadora de idosos, de doentes, e as plataformas de atividades que não são só domésticos porque uma empresa pode contratar esse trabalhador também. Ao invés de contratar a empresa de limpeza terceirizada, pode contratar via plataforma. Além desses profissionais de limpeza, são motoristas, porteiros etc.
E temos de tomar cuidado porque há, ainda, uma diferença com outro setor que é o da plataforma de saúde. Nas plataformas de cuidados, por exemplo, não estão os técnicos de enfermagem. Esses estão nas plataformas que chamamos do setor de saúde. Por exemplo, temos uma plataforma internacional que é a Brigad. Ela é uma plataforma do setor de turismo e, de repente, no meio da pandemia, descobrimos que ela virou também uma plataforma de saúde. De um lado, ela “oferece” trabalhadores como arrumadeira, barmen, recepcionista e, de outro, oferece médicos, técnicos de saúde.
Essas são plataformas diferentes das plataformas do cuidado pessoal, que daí não são técnicos, enfermeiras, são pessoas que, às vezes, não tem a formação, mas que vão fazer o cuidado de pessoas idosas e doentes. E, como disse antes, o cuidado pode ser da pessoa ou do domicílio.
Percebemos que há diferença entre as plataformas de cuidado pessoal e com domicílio. Por exemplo, muitas plataformas de cuidado com o domicílio que vemos tem um preço fixo. Já nas plataformas de cuidados pessoais percebemos que na maior parte das vezes há uma “negociação” entre o trabalhador e o cliente para definir o preço.
Só que coloco entre aspas porque não há negociação quando as duas partes são extremamente diferentes do ponto de vista do poder. Então, de fato, não há negociação. A gente ainda não conseguiu ter acesso, mas temos visto que as plataformas muitas vezes enviam material para trabalhadores e trabalhadoras “aprenderem a negociar” os valores com os clientes. Só que a gente sabe que essa situação não é real. Sabemos que, na realidade, é o cliente que escolhe e é o cliente que define preço e a plataforma fica com um percentual. Ou seja, tem-se desvantagens sobre todos os pontos de vista.
IHU – Então, dentro desses movimentos de alastramentos dessas lógicas que a senhora coloca, chegamos à questão do cuidado. Como a uberização incide sobre as atividades que denominamos como de cuidado?
Ana Claudia Moreira Cardoso – Essa questão começa antes, como o setor de entrega, nos Estados Unidos e na Europa. É um movimento muito forte que, inclusive, levou vários grupos de mulheres, grupos feministas a chamar atenção para esses fenômenos. Elas observaram que estavam na luta pelo processo de legislar, assim como fizemos aqui, num processo ao longo do governo Lula e Dilma, para legislar o trabalho das empregadas e empregados domésticos. Só que as plataformas estão vindo pelo outro caminho, no sentido de precarizar.
Nesse processo, surgem algumas plataformas internacionais, assim como no Brasil, pois os movimentos no Brasil e no mundo são muito parecidos, sendo só uma questão do tempo em que isso acontece. E, sem dúvida alguma e como aconteceu com outros setores, a questão da pandemia fez o que chamamos do “boom da sociedade digital”. Se antes você tinha alguma resistência, agora, com a pandemia, é obrigado à redução dessas existências. É claro que se aumenta o que a gente chama de desigualdade sociodigital, pois quem não consegue se inserir realmente fica de fora.
As plataformas, nos casos desses setores precários, não transformam o setor. Apenas intensificam aquilo que já existia. Ou seja, já era um trabalho precário.
Há também uma questão muito delicada que é a discriminação. Temos visto isso muito em relação às mulheres, independentemente de serem plataformas de cuidado ou não. Temos, então, uma questão primeiro das mulheres, pois elas se inserem nas diferentes plataformas de trabalho. No caso do transporte individual, por exemplo, as mulheres falam que elas recebem menos corridas e corridas menos interessantes. E é isso mesmo, os algoritmos vão mandar demanda para aquelas pessoas que estão mais tempo disponíveis. E não é o caso das mulheres, pois além do trabalho chamado de “produtível”, elas são responsáveis pelo trabalho reprodutivo. Ou seja, não estão disponíveis o tempo todo e com isso vão receber menos chamados, tanto no caso de entrega como de transporte.
Como sabemos que, no caso das plataformas, é difícil compreender a lógica porque ela muda o tempo todo, quanto mais tempo você está ali, disponível, mais você consegue conhecer os caminhos. Quanto menos tempo se está ali, como no caso das mulheres, mais desvantagem você tem. Uma mulher sai, por exemplo, e quando volta já mudaram as regras. Até ela entender demora muito.
No caso das plataformas de cuidado, temos uma questão mais séria de discriminação. Quando entramos no site da empresa – e é assim que a gente faz a pesquisa, pois ainda não temos dados, temos apenas alguns construídos a partir da Pnad Contínua que apresentamos num primeiro artigo e que foi um trabalho monstruoso para conseguir tirar aqueles dados – para tentar entender como elas funcionam (pois as plataformas não têm um mesmo sistema de gestão, mesmo estando inseridas num mesmo setor) –, tanto de cuidados de pessoas como de ambientes (que é mais o que conhecemos como serviço doméstico), tem sempre a foto da trabalhadora.
E isso, evidentemente, é uma questão muito séria, sobretudo numa sociedade como a brasileira que vai buscar um cuidador ou cuidadora dentro de certos padrões (branquinho, magrinho, jovem etc.). Essa é uma discussão que estamos tentando trazer porque há nesses casos uma questão muito clara de discriminação.
IHU – Ou seja, estamos falando além de discriminação de gênero, indo também para discriminação de classe, etnia etc. É isso?
Ana Claudia Moreira Cardoso – E, também, discriminação por sexualidade. Tem um conjunto de discriminações que se possibilita. Veja que, por exemplo, no caso das plataformas de transporte e de entrega o cliente só vê a foto do trabalhador e da trabalhadora depois que este aceita a corrida ou a entrega. No caso das plataformas de cuidado, não. Ou seja, um dos requisitos quando o cliente ou a cliente vai contratar o serviço é não só olhar a avaliação – e de novo, a avaliação tem relação com o fato de o trabalhador e a trabalhadora estarem sempre disponíveis –, mas tem também essa questão muito séria da discriminação.
IHU – Além dos já conhecidos impactos da uberização sobre o trabalho, a que outros impactos os profissionais da área do cuidado, em específico, estão susceptíveis?
Ana Claudia Moreira Cardoso – Em primeiro lugar, tem essa questão da discriminação. Isso é uma coisa muito séria e temos que dar visibilidade para isso. Não é à toa que as plataformas de cuidado, apesar de terem mais trabalhadores, têm uma visibilidade menor do que plataformas de entrega e de transporte, que é onde a gente tem o trabalho na rua e feito por homens. É o público, o visível. No caso das plataformas de cuidado, é um trabalho, como sempre, realizado dentro do domicílio e por mulheres. Por isso digo que não é à toa que esse trabalho ainda está invisibilizado, apesar de uma quantidade muita grande das mulheres que vivem nesse setor.
Um segundo ponto é a questão da ausência total de diálogo. Quando a gente, por exemplo, entra no site Reclame Aqui – que também é uma forma de fazer a pesquisa – vemos a dificuldade dessas trabalhadoras. Quando as trabalhadoras têm problemas com os clientes, mandam mensagem para a plataforma e esta não responde, não dá nenhum retorno, não tem espaço de diálogo. Ou seja, deixa a trabalhadora sem nenhuma referência. Para quem ela vai recorrer? Quem é o responsável? O cliente? Não, o cliente disse que é a plataforma e a plataforma disse que o responsável é o cliente.
Essas trabalhadoras que ficam totalmente à mercê, têm ainda um rendimento muito baixo, porque as plataformas fazem “promoção” para atrair os clientes. Já vimos coisas como: contrate uma limpeza por R$ 50. Imagine, R$ 50 e a plataforma ainda fica com um percentual. Quanto que ganha a trabalhadora? Tem, também, a questão dos riscos. É novamente a questão de quem se responsabiliza por um risco, sejam num trabalho de cuidado ou de limpeza, como uma queda de escada, ou se foi contaminada por usar um produto tóxico.
Se essas trabalhadoras não aceitarem, depois não serão chamadas para fazer outros serviços e sua avaliação na plataforma vai baixar. Então, tem que aceitar e se tem um rendimento muito baixo. É o que já falamos em outra situação: ter de estar conectada 24 horas por dia. É sempre uma disputa. Quem aceita primeiro o trabalho? Quem aceita o trabalho que for, seja no valor que for, seja na distância que for, tem mais chance de ter uma avaliação menos ruim depois. Além disso, assume o custo, assume o risco, assume a responsabilidade, porque, se eles cometerem algum erro, é óbvio que o cliente sabe que não tem a menor chance de tentar responsabilizar a plataforma e vai responsabilizar o trabalhador. Então, o trabalhador está assumindo um risco de ser processado, sobretudo se pensarmos na questão do cuidado pessoal. Isso é muito delicado.
IHU – Muitas vezes, quem contrata, leva sempre em consideração o valor e não se atenta para todas essas questões. Correto? E a desproteção, embora seja muito para o trabalhador, também ocorre para quem contrata. Não?
Ana Claudia Moreira Cardoso – Exatamente, porque, antes, quando se contratava um cuidador a partir de uma outra empresa, essa organização se responsabilizava. O contrato era firmado a partir da empresa, não era feito diretamente. Ou, o que também era muito comum, se contratava alguém conhecido, por alguma indicação de pessoa próxima e com referências. Hoje, o que o cliente está fazendo é indo pelo valor, e aí não tem como se disputar com as plataformas. Elas têm uma capilaridade monstruosa. As plataformas de cuidados sempre vão apresentar um preço menor.
Mas e o risco? Se uma trabalhadora ou um trabalhador tem algum problema seja com a criança ou com a pessoa doente que está sendo cuidada? Quem se responsabiliza? A plataforma? Não, elas deixam claro que não se responsabilizam pelo resultado do trabalho. Quer dizer, claro, não, pois escrevem isso bem pequenininho e temos que acessar muitos links até chegar nessa informação.
O que estamos tentando mostrar é que esse é um risco muito grande para as trabalhadoras, mas também um risco muito grande para os clientes, sobretudo na área de saúde. Não é um bem que cai, quebra e compra outro. Estamos falando de pessoas. Por isso, consideramos essa uma questão muito séria na área de saúde e de cuidado de pessoas.
IHU – Chama a atenção isso que a senhora coloca, pois, mesmo quando se contratava um profissional de cuidado por indicação, havia algum tipo de afeto envolvido. Agora, a tecnologia também deixa essa relação maquínica, com uma perda de humanidade.
Ana Claudia Moreira Cardoso – É isso, acabou. Esquece. Se vai pelo preço mais barato ou, entrando na nossa questão de discriminação, vai buscar aquele modelinho padrão. É tudo uma ilusão.
E o cliente que contrata via plataforma perde isso de vista. Por isso, quando escrevemos sobre o tema, tentamos trazer a questão de tal forma que o cliente perceba o que está acontecendo. Ele não só está ajudando a precarizar o trabalho do outro, como amanhã seu próprio trabalho pode ser plataformizado, assim como também não está entendendo que é ele que está assumindo os riscos. Quando a plataforma externaliza preço e custo, faz isso tanto para trabalhadores como para clientes. Claro, como sempre, são os trabalhadores que levam a pior.
IHU – Na área da saúde, especialmente no campo de técnicos e auxiliares de enfermagem, há uma série de empresas que se dizem cooperativas de trabalho, mas que, na verdade, querem recrutar profissionais a baixo custo e sem proteção social. Isso ocorrendo, inclusive, na prestação de serviço junta a administrações públicas. Seria essa uma outra face dessa externalização que a senhora refere ou temos aqui um outro problema?
Ana Claudia Moreira Cardoso – Essa questão das falsas cooperativas ocorre faz tempo, desde os anos de 1990, quando começamos a discutir mais essa questão. E elas estão em vários setores. Creio que a discussão mais importante que tivemos foi justamente acerca das falsas e das verdadeiras cooperativas.
As falsas vêm atuando tanto via plataforma como fora dela. O discurso é sempre o mesmo, que não se precisa estar na CLT [Consolidação das Leis do Trabalho] porque são as pessoas que definem, que constroem um tipo de relação, que definem o salário, o tempo de trabalho, as condições etc. Mas, no fundo, não é isso que acontece. É quase que como uma empresa terceirizada, só que pior. E olha que empresa terceirizada tem qualidade tão ruim que não dá nem para dizer se é melhor ou pior. Mas, pelo menos no caso da empresa terceirizada se tem alguns direitos que estão garantidos na Constituição.
Sei que a questão dessas cooperativas está muito forte na área da saúde e vimos que isso surgiu ainda quando fazíamos o debate sobre a terceirização no setor público. Sabíamos que quando se abre [a terceirização], se abre para tudo. Inclusive, para as falsas cooperativas que são uma forma de externalização. E, claro, é também uma forma de precarização, podendo ou não acontecer via plataforma. Mas, com as plataformas, se tem uma capilaridade. E essa é a questão delas, você consegue dar uma capilaridade e consegue chegar nos clientes com muito mais facilidade.
IHU – O que é a falsa cooperativa? Como a identificar?
Ana Claudia Moreira Cardoso – Embora esse não seja meu tema de pesquisa, digo que do ponto de vista legal o documento é o mesmo. Vai trazer as regras, como deve ser o funcionamento, a necessidade de ter uma direção colegiada e tudo mais. Só que a questão é perceber se o que está escrito se realiza ou não. E, na maior parte das vezes, não se realiza porque não ocorre a votação para representantes. Ou seja, deveria ter participação nas decisões, mas acaba não tendo.
IHU – Ou seja, uma cooperativa de trabalho de fato é aquela em que a pessoa tem um envolvimento maior do que sua força de trabalho. Correto?
Ana Claudia Moreira Cardoso – É, tem também a participação na decisão. Essa é a questão, o que diferencia é a participação na decisão. Por isso que há as estruturas de colegiados, a questão da maioria. O ponto é perceber o quanto essa participação na decisão se realiza ou não.
IHU – O setor bancário é, historicamente, a área em que os trabalhadores mais sofrem com as mudanças tecnológicas. Como a uberização tem chegado a esse setor e quais as consequências?
Ana Claudia Moreira Cardoso – Não sei se podemos dizer que esse é um dos setores que mais sofreu com as mudanças tecnológicas, mas é o mais visível. Isso porque o setor industrial também passou por mudanças tecnológicas grandes, mas não é tão visível.
No caso dos bancos, temos caso de inovação forte e um processo de externalização forte. Há um processo de terceirização muito grande e uma externalização de serviços não só para outras empresas como também para os próprios clientes. Os clientes precisam saber tudo como funciona na internet para eles mesmos fazerem as transações. Com esse processo de terceirização e externalização, e a questão toda dos correspondentes bancários – como numa lotérica, onde os trabalhadores não têm nenhuma segurança – sem dúvida tivemos uma redução muito grande de emprego nesse setor e aí é uma maravilha para as plataformas de trabalho, pois elas querem justamente uma multidão de desempregados.
Quando as plataformas entram nos setores mais especializados, elas precisam de desempregados especializados. É uma coisa diferente de outros setores que exigem uma especialização menor. Tanto é que quando olhamos a propaganda de algumas plataformas, vemos que elas dizem que tem ex-bancários, que tem conhecimento de longa data no setor e se pode confiar. É uma maravilha, pois as plataformas têm uma multidão de desempregados formados e ainda usam isso como propaganda. Assim, as plataformas vão entrando em setores antes marcados por formalidade, por CLT, por direitos, por processos de negociações muito fortes como no caso dos bancários.
Esse é um processo que não pode ser considerado generalizado, no caso do setor bancário, mas é um movimento que tende a crescer com muita rapidez. E, de novo, sobretudo nesse contexto pandêmico ou pós-pandêmico em que tivemos esse boom da sociedade digital.
Do ponto de vista dos clientes, como já estavam fazendo uma boa parte do serviço bancário, para eles é natural ter uma plataforma no setor. Sobretudo porque, mais uma vez, as plataformas conseguem reduzir o que os clientes pagam mensalmente aos bancos. E o que percebemos em algumas pesquisas é que muitas dessas plataformas também estão atreladas a bancos. Vemos esses movimentos em vários setores como, por exemplo, grandes hotéis que fazem acordo com a Airbnb.
IHU – Houve um tempo em que se dizia que o Brasil era o país dos bacharéis, especialmente em Direito. Agora, vemos a uberização chegando até ao campo Jurídico. Quais as consequências para os operadores do Direito e para a sociedade que demanda pela Justiça?
Ana Claudia Moreira Cardoso – No caso do setor jurídico, também estamos falando de processo de externalização. Muitas empresas deixam de ter os seus setores jurídicos e passam a externalizar essa questão ou repassam para grandes escritórios de advocacia. E esses grandes escritórios, por sua vez, passam a externalizar não só a partir de plataformas, mas também de vários softwares. Se num primeiro momento foram as tarefas repetitivas que foram realizadas via softwares, agora vemos que isso foi se espalhando para funções administrativas e mesmo jurídicas.
O que as pesquisas têm mostrado é que esse processo de externalização está gerando, como sempre, uma redução do número de postos de trabalho. E percebemos que ocorre o contrário do que vimos no setor bancário. Nos bancos, primeiro você tem uma restruturação que gera uma multidão de desempregados e as plataformas entram e se apropriam dessa multidão. No caso do setor jurídico, as plataformas entram e geram uma redução no número de postos de trabalho. Depois, tem o processo de intensificação porque nas plataformas a lógica vai ser sempre por metas, como na questão da entrega e do transporte individual, e isso gera uma intensificação no ritmo de trabalho.
Gera, também, uma fragmentação do trabalho, porque se antes o advogado tinha um processo e fazia todas as etapas dele, agora, tanto com os softwares quanto com as plataformas, ele vai fazer em pedacinhos. Havendo assim, com isso, um processo de fragmentação do trabalho.
E, ainda, há uma redução salarial, porque a lógica das plataformas, no caso dessas do setor jurídico, também não define valor, e se acaba tendo uma disputa. Ou seja, a questão é: qual é o trabalhador plataformizado que vai aceitar fazer aquele trabalho por uma remuneração menor? E, mais uma vez, as plataformas conseguem driblar toda a legislação existente.
O que percebemos é que não há um movimento único e por isso que é importante analisarmos todos os setores. Em casa setor, essas plataformas entram de uma forma diferente e têm consequências diferentes. Agora, é claro que em todos os casos o que temos é um processo de precarização, o que chamo da precarização uberizada, exatamente para diferenciar de outras formas. Só que só compreendemos a precarização uberizada se analisamos o movimento geral que tem acontecido a partir dessas formas de externalização das responsabilidades, dos custos, dos gastos, sendo que as empresas externalizam tudo isso, mas mantém o controle.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Ana Claudia Moreira Cardoso – O que nos mostra esse espraiamento das plataformas é que não faz o menor sentido você ficar discutindo legislação específica para trabalhadores em plataforma, porque não tem nada de diferente. Imagine ter uma legislação específica para trabalhadores de plataforma de transporte, depois uma legislação específica para o setor de saúde. Não faz sentido. Na realidade, temos é que trazer todos esses trabalhadores para a legislação que já existe, que é a CLT e a Constituição Federal.