06 Agosto 2020
"Como construir a autogestão num contexto de acumulação predominantemente fictícia, na qual os rendimentos do trabalho não têm mais, em grande medida, a forma salarial?", indaga Isadora Guerreiro, em artigo publicada, por PassaPalavras, 03-08-2020.
Nas últimas semanas muitas pessoas têm me perguntado sobre o que acho das cooperativas de entregadores por aplicativo como forma de luta e organização. Meu histórico é relacionado à autogestão na produção de moradia, que remonta à fase de redemocratização e que se transformou ao longo dos últimos 30 anos. Uma das questões a qual me dediquei quando me afastei destes processos foi buscar compreender seus ensinamentos e transformações como dinâmicas históricas às quais eles fazem parte. Desta maneira, aprendi que não há uma resposta objetiva sobre eles – pois eles não são bolhas, como muitas vezes parecem, mas, pelo contrário, estão diretamente relacionados à conformação social na qual estão inseridos. Falar sobre eles é, também, falar sobre esta conformação.
São, antes de tudo, experimentações que, como tais, envolvem momentos de enfrentamento, compreensão das relações sociais mais amplas, correlação de forças, tentativas de transformação de processos, amoldamentos, fracassos, conquistas… ou seja, são formas que, antes de “darem certo” ou “darem errado”, dizem respeito às possibilidades de conhecimento e intervenção na realidade concreta para além de fórmulas prontas (seja pela institucionalidade, seja pela história pregressa ou por outras formações sociais). Por isso é também difícil dar algum diagnóstico prévio ou fazer comparações com outras lutas, que tiveram seu contexto próprio, principalmente no que concerne ao estatuto histórico do trabalho – e que agora se transforma radicalmente. De qualquer maneira, este texto não pode ser considerado um prognóstico, muito menos um manual, mas tão somente uma contribuição ao debate, com muitas limitações.
Depois do #BrequeDosApps começaram a aparecer notícias de cooperativas de entrega por aplicativos seja em outros países, seja por aqui mesmo. Antes de saudar tais experiências de organização da classe com adjetivos positivos ou negativos, é importante entendê-las como um passo, o primeiro, de um longo e árduo processo de experimentação política por meio do trabalho, que é sempre historicamente determinado. Portanto, é importante olhar para elas não a partir da sua face de trabalho abstrato e indefinido, que poderia ser comparável a qualquer outro da tradição industrial, pois se trata de algo muito específico: um serviço, cuja organização das relações de trabalho está vinculada ao que tem se chamado de “uberização”, ligado à circulação financeira, que faz parte de uma dinâmica de consumo própria a um modo específico de vida urbana – no qual, portanto, a cidade é elemento central, não apenas como “chão de fábrica” (numa aproximação simplista). São, portanto, muitas camadas a serem politicamente percorridas, para as quais a formação de cooperativas pode ser um primeiro passo, e precisa ser aprofundado politicamente se não quiser ser rapidamente engolido por um setor marcado pela dinâmica oligopsônica [1].
A fundação de uma cooperativa significa um rompimento com “o” capitalista, mas não necessariamente com o capitalismo. Para tanto, o caminho é muito maior e depende de uma grande escala de organização (que ao mesmo tempo preserve a descentralização), suficiente para se apresentar como alternativa concreta no mercado. Se isso não acontece, a dinâmica da concorrência faz com que, para sobreviver, as cooperativas ou se amoldem às relações de produção capitalistas, ou dependam da proteção do Estado (se amoldando à sua forma). Aquelas que não se adaptam e/ou não criam redes de proteção têm muita dificuldade de sair da situação limite de gestão da miséria, que acaba por inserir relações perversas dentro do processo político e de trabalho, não raro gerando situações de autoexploração, periculosidade no trabalho, hierarquização, burocratização, introjeção da competitividade, entre outros.
O rompimento com “o” capitalista pode estar, no plano imediato, servindo como maneira de construir melhores condições de trabalho e autonomia decisória – com um desejo real de receber melhor sem o intermediário. No caso dos entregadores, romper com as empresas que monopolizam o mercado pode ser importante para se afastar da métrica financeira que determina as relações de trabalho no setor. No entanto, como dito anteriormente, as cooperativas não são bolhas: participam de um setor econômico determinado por regras de concorrência próprias, que regulam indiretamente as relações de trabalho. Com o passar do tempo, se novos passos políticos não são dados, elas tendem a perceber que “o” capitalista é apenas uma personificação de um sistema do qual elas fazem parte.
A maior perversão é a cooperativa se transformar numa empresa igual as demais, com os trabalhadores introjetando a lógica capitalista e fazendo, eles mesmos, o que antes os “patrões” faziam. A experiência pode se transformar numa forma de participar da “festa” com nicho de mercado próprio, cuja imensa fragilidade pode levar a negociações privadas que rondam formas mafiosas de organização.
Para ter um fim diverso, a experiência política não pode, portanto, cessar na fundação de uma cooperativa e dispensa “do” capitalista. Um segundo passo precisa ser a transformação das relações de trabalho a partir das suas condicionantes concretas. No caso dos entregadores por aplicativo, duas discussões precisam ser aprofundadas: a mais imediata, sobre o controle do trabalho realizado pelos algoritmos de um aplicativo; e a segunda, sobre a uberização como forma ampla de rearticulação do mundo do trabalho. De maneira objetiva, é importante, politicamente, não apenas:
Não se propor a estas transformações faz com que, mais uma vez, a formação de cooperativas seja apenas a criação de mais um CNPJ que, inicialmente, pode ser um “patrão do bem”, mas que, num curto período de tempo, volta a se adaptar às mesmas condições anteriores – com o adendo perverso de se dar pela própria mão dos trabalhadores organizados. Podem se transformar em sementes de muitas formas de populismo ou, pior, manutenção de nichos privilegiados de mercado de consumo “do bem”, glamourizando os bicos de sempre por meio da política – que vira etiqueta de marca, valorando um trabalho que não difere, em essência, daqueles que permaneceram vinculados às grandes plataformas.
Para questionar politicamente o trabalho uberizado é necessário, de um lado, o aprofundamento de seu entendimento por todos nós e, de outro, a experimentação de formas alternativas e auto-organizadas de trabalho que levem em conta suas determinações históricas. Não me parece promissor combatê-lo como se combatia os desvios à CLT, pois se trata de uma transformação profunda na forma do trabalho que não se resolve implantando formas antigas de trabalho à força – como se estas fossem boas para o trabalhador e como se a forma de reprodução do capital fosse a mesma que antes.
Quando a reprodução do capital se dava predominantemente por meio dos lucros industriais, o entendimento sobre a geração e captura da mais-valia como tempo não pago aos trabalhadores gerou as lutas sindicais. Nelas, o fundamento do embate estava na diminuição desta parte não paga, o que colocava as lutas salariais no centro das mobilizações – inclusive daquelas direcionadas ao Estado, que poderia proporcionar o tal “salário indireto” por meio de políticas públicas. A autogestão, neste mundo, questionava as diferenças salariais e, até certo ponto, a maneira como a forma salário achatava as diferenças de necessidades entre os trabalhadores.
Como construir a autogestão num contexto de acumulação predominantemente fictícia, na qual os rendimentos do trabalho não têm mais, em grande medida, a forma salarial? Por “forma salário” estou entendendo aqui o preço da força de trabalho, que tinha alguma vinculação de origem com os seus custos de reprodução socialmente determinados – ainda que na América Latina isso nunca tenha acontecido, o mecanismo de baixos salários teve seu papel na implantação capitalista por aqui.
A uberização joga – ou gostaria de jogar – esses conceitos por terra. Eu gostaria aqui de colocar uma hipótese, da qual não tenho certeza (não sou especialista no tema), mas que pode contribuir para o debate em torno da questão, vinda de alguém que estuda formas de rendimento do urbano. Pois me parece difícil caracterizar os rendimentos do trabalho dos “colaboradores” uberizados puramente, ou totalmente, como salário, nestes termos acima expostos.
O contrato estabelecido entre eles e o aplicativo não passa pela precificação do tempo de trabalho [2] e não se relaciona – nem na sua origem – com os custos de reprodução da força de trabalho [3]. Pois não se trata de empresas que almejam o lucro, mas funcionam como centralizadoras e direcionadoras de rendas para o mercado financeiro. Seu modelo de funcionamento me parece ter essa métrica: ao ter que pagar determinados juros aos investidores, uma porcentagem dos seus ganhos é direcionada aos trabalhadores. É uma conta inversa: não importa quais são os custos de reprodução da força de trabalho, nem mesmo os custos diretos com o serviço, mas a porcentagem que pode-se gastar nisso.
Parece-me que os rendimentos do trabalho ligados à uberização, nestes termos, estão muito mais relacionados a uma parte das rendas de propriedade: seja de bens móveis, como carros, motos e bicicletas (nos aplicativos de mobilidade) ou ainda bens imateriais, como produtos educacionais (no caso de professores “on demand”). Não seria exatamente o tempo de trabalho que estaria sendo remunerado (característica da forma salário), mas a possibilidade do serviço ser realizado – o que depende da propriedade de instrumentos de trabalho (moto/bicicleta e celular com internet) e dos meios para realizá-lo (acesso ao aplicativo).
Essa relação se parece muito mais com renda do que com salário. O trabalho, nesses casos, é o mecanismo de valoração da propriedade, é o que a traz à “vida”, à produtividade para o capital – como na Renda da Terra (Seção VI do Livro Terceiro d’O Capital de Karl Marx). Em uma ponta, os “colaboradores”, por meio do seu trabalho, capturam parte da renda proporcionada pela propriedade do instrumento de trabalho; Na outra ponta, os investidores capturam parte da renda proporcionada pela propriedade do meio de trabalho – o aplicativo, que centraliza e canaliza as rendas de muitas propriedades dispersas. Não é à toa que se confundem donos de start-ups e “colaboradores”, ambos como empreendedores. O trabalho – concretamente existente – parece se perder no meio do processo na medida em que não produz mercadorias, nem lucro, mas apenas aciona rendimentos de propriedade, como se fosse uma máquina.
Outra hipótese que é levantada sobre a uberização tenta aproximá-la do que Marx definiu como “salário por peça” (Cap.XIX, Seção VI do Livro Primeiro d’O Capital). Estariam nesta categoria os rendimentos do trabalho associados à venda da mercadoria final (produto ou serviço), chamado popularmente de “pagamento por empreitada” ou “por produção” [4]. Muitas semelhanças aproximariam esse conceito da uberização: a flexibilidade de horário de trabalho, o distanciamento “do” capitalista, que não detém necessariamente a propriedade dos meios de produção (que remete à noção atual de empreendedorismo), a maior liberdade de controle do processo produtivo ou da forma da prestação do serviço etc. Apesar das semelhanças, tenho dúvidas sobre essa aproximação, na medida em que nesta categoria ainda é possível falar de salário [5]: não como vinculação contratual com o dono dos meios de produção, mas como preço ou valor do tempo de trabalho embutido na mercadoria final.
No caso da uberização, me parece que esta vinculação se perde por completo: o preço do seu serviço não tem nenhuma relação com o valor de reprodução da sua força de trabalho, mas com os juros a serem pagos aos investidores do aplicativo. O preço de cada corrida é flutuante, e pode variar ao longo da própria corrida. A “conta” embutida no algoritmo do aplicativo não parece levar em consideração nem mesmo os custos diretos para a prestação do serviço, ou seja, existe a possibilidade de se chegar a um limite dela não ser viável – situação na qual o aplicativo simplesmente se desloca para outro lugar do mundo.
Assim, a hipótese de que os rendimentos do trabalho, no caso da uberização, são, na verdade, renda derivada das possibilidades de prestação de serviços ligadas à propriedade dos instrumentos de trabalho, pode ajudar aqui na discussão sobre as lutas no setor, sejam as reivindicativas, sejam as possibilidades de autogestão. Para as lutas reivindicativas, melhores condições de trabalho com melhores rendimentos, no caso, não adviriam de reivindicações próximas ao simples “aumento salarial”, mas da vinculação das taxas pagas aos entregadores com dados da realidade do setor: preço do combustível, manutenção do instrumento de trabalho, preço do tempo de trabalho pré-contratuado – ou seja, pressão para que as determinações das relações de trabalho sejam relevantes na parte da renda que cabe aos trabalhadores. Para as experimentações autogestionárias, valeria a pena investir nas possibilidades de coletivização dos instrumentos de trabalho (motos e bicicletas coletivas) – o que interviria na figuração do empreendedor individual, na capacidade maior de captação de renda, coletivização de custos e problemas de manutenção e possibilidades de ausência remunerada de trabalhadores (saúde, maternidade, férias), cobertos pela força coletiva de trabalho.
Por fim, mas não menos importante, o último passo para se pensar as lutas relacionadas à uberização é a consideração de que, no caso dos aplicativos relacionados à mobilidade, a renda gerada não é apenas da propriedade do instrumento de trabalho, mas do uso da cidade. As rendas derivadas do fluxo urbano podem gerar cidades não apenas desiguais, mas também inviáveis para se viver – seja do ponto de vista do aumento dos custos de reprodução da vida, seja da monopolização dos acessos, ou ainda da combinação entre áreas de difícil acesso e baixa capacidade de consumo.
A autogestão no setor da mobilidade não pode se preocupar “apenas” na sua autossuficiência num mercado marcado pelo oligopsônio, ou na transformação das relações de trabalho internas ao setor, o que já seria bastante… Se ela não tiver em vista a reapropriação do urbano como produção da vida em comum, poderá acabar contribuindo para desigualdades que inviabilizarão não só a sua existência, mas os modos de vida populares. As mudanças nas relações de produção precisam ter como objetivo a reapropriação dos produtos do trabalho pelos trabalhadores – e aqui a mobilidade não se separa do uso da própria cidade.
Por isso, a autogestão na mobilidade é a única forma de inverter prioridades do setor, atendendo quem não é atendido, dando acesso a quem não tinha, proporcionando poder a quem não o detinha. Num momento como esse de pandemia, por exemplo, poderia proporcionar segurança no transporte àqueles que mais precisam (os trabalhadores que usam transporte público), ou ainda proporcionar isolamento maior aos que não conseguem por ter que se deslocar para consumir. A partir desse horizonte alargado, o interesse político pelas cooperativas pode começar a avançar para além das experiências anteriores, numa outra fase das relações de trabalho.
Notas:
[1] Oligopsônio, neste caso, quer dizer que existem poucas empresas de aplicativo que compram o serviço de muitos entregadores, conformando um setor de concorrência protegida, de difícil acesso para novos atores.
[2] “Portanto, inserido em uma relação despótica, o trabalhador trabalha sem saber como, por que e quando receberá o trabalho; sem saber como é definido o valor de seu trabalho. Está submetido a regras onipresentes mas ao mesmo tempo obscuras, cambiantes, não negociáveis. Vive em um exercício de adivinhação permanente, arcando com riscos e custos, sem ter mínimas garantias sobre tempo de trabalho ou remuneração” (ABÍLIO, Ludmila Costhek. Breque no despotismo algorítmico: uberização, trabalho sob demanda e insubordinação. Blog da Boitempo, 30 de julho de 2020, disponível aqui).
[3] O PL 3728/2020, de Tábata Amaral (PDT), propõe fazer esta vinculação, a partir do valor-hora do salário mínimo. Os problemas da proposta foram discutidos por Ludmila Costhek Abílio na referência acima. Por enquanto, a forma de contrato não leva nem isso em consideração.
[4] O filme “Estou me guardando para quando o carnaval chegar”, de Marcelo Gomes (disponível na Netflix), fala sobre o tema de maneira paradigmática.
[5] “O salário por peça nada mais é que uma forma metamorfoseada do salário por tempo, do mesmo modo que o salário por tempo é a forma metamorfoseada do valor ou preço da força de trabalho” (MARX, Karl. O Capital – Livro Primeiro. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p.139).
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Cooperativismo e uberização - Instituto Humanitas Unisinos - IHU