18 Julho 2020
O impacto desigual da COVID-19 na população negra não é surpreendente. O racismo que permeia quase todas as facetas da sociedade brasileira aumenta a exposição das pessoas negras ao vírus, escrevem Edna Maria de Araujo, docente permanente do Programa de Pós Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Estadual de Feira de Santana-Bahia e Kia Lilly Caldwell, professora do Departamento de Estudos Africanos, Afro-Americanos e Diáspora da Universidade da Carolina do Norte-EUA, em artigo publicado por Associação Brasileira Coletiva de Saúde - Abrasco, 17-07-2020.
O Brasil e os Estados Unidos têm muito em comum quando se trata do coronavírus. Ambos estão entre os países mais atingidos do mundo, onde centenas morrem diariamente. Seus presidentes, que possuem opiniões semelhantes, têm sido criticados pela forma como lidam com a pandemia. E em ambos os países o vírus está afetando desproporcionalmente os negros, resultado do racismo estrutural que remonta à escravidão.
O Brasil moderno nunca legalizou a discriminação racial como as leis Jim Crow nos Estados Unidos, mas as desigualdades raciais estão profundamente arraigadas. Apesar do persistente mito do Brasil como uma integrada “democracia racial”, a discriminação no emprego e a segregação residencial limitam as oportunidades para a população negra.
Esses e outros fatores se traduzem em menor expectativa de vida, educação e condições de vida para a população negra. Os brasileiros negros vivem, em média, 73 anos – três anos a menos que os brasileiros brancos, de acordo com a Pesquisa Nacional de Domicílios de 2017. Os EUA têm uma diferença de expectativa de vida entre as raças, bem similar.
Como os dados no Brasil não são coletados sistematicamente por raça/cor ou etnia, os impactos do racismo na saúde podem ser difíceis de ser mensurados. O governo federal do Brasil não exigiu a coleta de dados raciais para os casos de COVID-19 até a segunda semana de abril, e somente o fez após pressão de movimentos negros, entidades de classe e associação cientifica. Todavia, os dados que têm sido divulgados não têm qualidade que permita a realização de análises robustas que desvelem as iniquidades raciais em saúde.
Independentemente disso, em abril o Ministério da Saúde já havia apontado altas taxas de mortalidade por COVID-19 entre os negros, uma categoria que inclui pessoas que se identificam como “pretas” e “pardas” no censo demográfico. As autoridades de São Paulo também anunciaram que as taxas de mortalidade entre os pacientes com COVID-19 eram mais altas entre os negros. Dados coletados no mês de maio por pesquisadores independentes para mais de 5.500 municípios mostram que 55% dos pacientes negros, hospitalizados com COVID-19 em estado grave, morreram em comparação com 34% dos pacientes brancos.
Por mais de uma década, ativistas negras (os) e pesquisadores em saúde pública vêm apontando que o racismo institucional cria piores resultados para a saúde da população negra brasileira. A população negra experimenta taxas mais altas de doenças crônicas como diabetes, pressão alta, problemas respiratórios e renais devido à insegurança alimentar, acesso inadequado a medicamentos e prescrições.
O próprio racismo também causa um forte impacto físico sobre os negros. Estudos nos Estados Unidos demonstram que as experiências diárias de racismo e discriminação podem levar a índices perigosamente altos de hormônios do estresse e diminuir a capacidade do corpo de combater doenças, e consequentemente, a infecção pelo coronavírus.
Ao contrário dos EUA, o Brasil possui assistência médica gratuita e universal através do Sistema Único de Saúde (SUS). Mas, infelizmente, a precarização e subfinanciamento desse sistema tem colocado em risco principalmente as populações vulnerabilizadas que mais utilizam o SUS. Atualmente, os leitos de terapia intensiva para atender os casos de coronavírus são escassos nos hospitais públicos de várias cidades. Isto é especialmente prejudicial para os pacientes negros com COVID-19, já que estes dependem mais do sistema público de saúde do que os brasileiros brancos, que geralmente têm seguro de saúde privado por meio de seus empregos.
A desigualdade econômica extrema é outro fator crítico que interfere na saúde geral da população negra. Com os 10% da população mais rica do Brasil concentrando 55% do total da renda do país, o Brasil fica atrás apenas do Catar na desigualdade de renda, de acordo com um relatório de 2019 das Nações Unidas.
Dados nacionais de pesquisas domiciliares mostram que brasileiros pretos e pardos ganham muito menos dinheiro que brasileiros brancos, mesmo com formação educacional equivalente. A diferença salarial racial no Brasil realmente supera a diferença salarial de gênero: as mulheres brancas ganham 74% a mais do que os homens negros.
De um modo geral, quanto maior o salário oferecido por uma empresa, menor a probabilidade de uma pessoa negra conseguir esse emprego. Muitos negros trabalham nos setores informais e de serviços, vendedores ambulantes ou faxineiros. Outros são trabalhadores independentes ou desempregados.
Durante uma pandemia, essa insegurança econômica diminui drasticamente a capacidade dos negros se distanciar socialmente e os torna altamente dependentes de permanecer em seus empregos, apesar da ameaça à saúde. Empregadas domésticas, por exemplo – a maioria delas são mulheres negras – estão se mostrando um grupo de alto risco. Aliás, uma trabalhadora doméstica estava entre as primeiras mortes de COVID-19 no Brasil.
O surto de coronavírus no Brasil se originou em bairros ricos cujos moradores haviam viajado para a Europa, mas a doença agora está se espalhando mais rapidamente para bairros pobres das periferias urbanas, densos e há muito negligenciados pelo Estado.
Pouco mais de 12 milhões de brasileiros, a maioria negros, vivem em assentamentos urbanos anormais, das favelas do Rio de Janeiro às “periferias” de São Paulo. Essas áreas têm acesso inadequado à água e ao saneamento, dificultando o cumprimento das recomendações básicas de higiene, como lavar as mãos com sabão.
Portanto, embora o impacto desigual da COVID-19 na população negra não tenha sido inevitável, ele não é surpreendente. O racismo que permeia quase todas as facetas da sociedade brasileira aumenta a exposição das pessoas negras ao vírus – depois reduz sua capacidade de obter atendimento de qualidade para mitigar os efeitos das formas graves da doença e até mesmo evitar a morte.
Para a produção dessa nota o Grupo Temático Racismo e Saúde da ABRASCO contou com o apoio institucional do Fundo de População das Nações Unidas no Brasil (UNFPA).
Brazil Coronavirus Map and Case Count. Disponível aqui.
The Trump administration’s botched coronavirus response, explained. Disponível aqui.
Brazil: Jair Bolsonaro’s strategy of chaos hinders coronavirus response. Disponível aqui.
Coronavirus Compounds Inequality and Endangers Communities of Color. Disponível aqui.
Brazil's hidden slavery past uncovered at Valongo Wharf. Disponível aqui.
Assassination in Brazil unmasks the deadly racism of a country that would rather ignore it. Disponível aqui.
The Social Determinants of Health: It's Time to Consider the Causes of the Causes. Disponível aqui.
A expectativa de vida no Brasil, por gênero, raça ou cor, e estado. Disponível aqui.
CDC (Centers for Disease Control and Prevention), Life expectancy at birth, at age 65, and at age 75, by sex, race, and Hispanic origin: United States, selected years 1900–2016. Disponível aqui.
A expectativa de vida no Brasil, por gênero, raça ou cor, e estado. Disponível aqui.
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Por que a COVID-19 é mais mortal para a população negra? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU