20 Janeiro 2021
O presidente eleito Joe Biden promete aos estadunidenses "curar a alma ferida" da nação, mas o perímetro de cercas que isola o Capitólio na véspera de sua posse fala das dificuldades que ele enfrentará para manter sua palavra. Podem os cinco anos da presidência de Trump ser rotulados como uma "ferida" infligida ao maior país democrático do mundo? Não há uma resposta única, muito menos uma simples, e a crise dos católicos estadunidenses o prova. Segundo presidente católico da história dos EUA depois de John Fitzgerald Kennedy, Biden não conseguiu conquistar muitos estadunidenses que, em nome da fidelidade à doutrina social da Igreja, o veem como um elemento estranho aos valores constitutivos do magistério eclesial, apesar de sua experiência de fé. Isso explica o apoio de alguns movimentos católicos ao presidente em saída, Donald Trump, e também a sua participação no protesto que antecipou o assédio temporário do Capitólio em 6 de janeiro.
A reportagem é de Marco Grieco, publicada por Domani, 19-01-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Dos movimentos pró-life à ala mais liberal, a eleição do Papa Francisco e a presidência de Trump aguçaram uma divergência de sabor cismático que tem suas raízes em uma crise de valores revelada pelas culture wars, os esforços do clero EUA para impedir de atenuar as demandas cristãs. Hoje, essa mesma resistência assume tons cada vez mais acesos. Nos últimos dias, a reflexão do jesuíta James Martin nas colunas da revista America suscitou algumas críticas, quanto à responsabilidade do clero católico de ter fomentado a aversão a Biden: “A difamação pessoal por membros do clero provocou inevitavelmente o falta de respeito por parte dos fiéis, tornando mais fácil para os que estão nos bancos insultar o governo e os líderes civis", disse o jesuíta, referindo-se a uma grande quantidade de tuítes e declarações assinadas por membros do clero estadunidense, como o padre Stephen Imbarrato, que chamou o novo presidente de "um escândalo que caminha e fala".
Não se trata de uma voz isolada: “Biden gosta de falar da sua fé católica. Talvez ele devesse perceber que o aborto é uma questão de direitos humanos”, tuitou o bispo Richard Stika, de Knoxville. Nem mesmo a Conferência Episcopal dos Estados Unidos conseguiu evitar o constrangimento, quando em novembro passado decidiu criar uma comissão para tratar das discordâncias entre a agenda presidencial e o magistério da Igreja. A decisão, apoiada pelo presidente da conferência, José Horacio Gómez, não foi aceita por todos. Crítico, por exemplo, foi Robert McElroy, bispo de San Diego, de quem lembramos as palavras proferidas no Erroneous Autonomy Symposium de 2016 sobre o sentido de nação como "aspiração, trabalho em curso, algo de que a cada geração tentamos estar à altura".
Encontrar uma síntese hoje significa admitir o distanciamento entre Washington e Roma. Caso contrário, não se explicariam as posições anti-Bergoglio do ex-estrategista-chefe de Trump, Steve Bannon, ou a linha do Acton Institut, fundada no impulso da Centesimus annus do Papa João Paulo II, muitas vezes crítico dos princípios reformistas do papa argentino. Num país fundado também em premissas religiosas, a divisão entre as esferas política e pessoal não é automática, a tal ponto que para alguns cidadãos a visão da "atividade política vivida como caridade social" (Papa Bento XVI, Deus caritas est) nem sempre concorda com a leitura ecumênica do Papa Francisco. O empenho católico nos Estados Unidos muito deve à ação do clero local, que no passado confiou na consciência do eleitor individual em nome de valores não negociáveis, como a defesa da vida “da concepção à morte natural”. A condenação de "atos intrinsecamente maus" como o aborto - de acordo com a declaração dos bispos de 2008 sobre a Cidadania fiel - por exemplo, deve ser lida como o desejo de sincronizar a ética da vida com a doutrina social da Igreja na esteira da Sollicitudo rei socialis de João Paulo II.
O acalorado debate no Time que ocorreu em 2004 entre o então arcebispo de St. Louis, Raymond Burke, e o candidato democrata à presidência, John Kerry, sobre questões éticas, corre o risco de se repetir novamente com Biden. Sua procedência democrática, entretanto, não ajuda. Há alguns meses, o partido democrático no Congresso se opôs à inclusão das escolas católicas nos programas de apoio do governo federal: apenas uma intervenção direta dos bispos salvou as escolas à beira da falência por causa da pandemia: segundo a National Catholic association, 35 por cento das instituições católicas se beneficiaram do plano de ajuda federal; outras escolas optaram pelo financiamento coletivo online, enquanto outras esperam por uma segunda rodada de financiamento.
A emergência pandêmica deixou à mostra a fragilidade do enclave católico em uma sociedade cada vez mais inclusiva. Um exemplo disso é a sentença Espinoza v. Montana de junho passado, com a qual a Suprema Corte dos EUA permitiu às escolas católicas o acesso a bolsas de estudo, anteriormente negadas pelas leis do estado de Montana. Ou a ação movida pela Calvary Chapel ao governador de Nevada, Steve Sisolak, por não conceder participação pública a igrejas católicas com base no cálculo da capacidade dos edifícios religiosos, vice-versa aplicada aos cassinos.
Como escreveu o historiador Massimo Faggioli na última edição do Il Regno, “Joe Biden representa um catolicismo em possível via de extinção, (...) personifica aquela era da igreja estadunidense forjada por escolas católicas dirigidas por ordens religiosas; da história da imigração europeia na costa leste, na área dos Grandes Lagos e no Midwest". Se, portanto, o novo presidente quer ser o porta-voz de uma virada política e de valores nos Estados Unidos, ele terá necessariamente que acertar as contas com as questões que permanecem pendentes. Poderia se revelar a única maneira de ganhar a confiança daqueles católicos que ficaram desorientados.
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Todos os obstáculos no caminho de Biden para reunir os católicos estadunidenses - Instituto Humanitas Unisinos - IHU