01 Dezembro 2020
“A credibilidade da Igreja é atingida quando a definição de ‘vida’ está reduzida a apenas um assunto”, escreve Nuala Kenny, religiosa da Caridade em Halifax, Canadá, e pediatra, em artigo publicado por La Croix International, 30-11-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Como estadunidense, eu segui as últimas eleições com muita dor e ansiedade por muitas razões.
Primeiramente, em razão das destrutivas e irreconciliáveis divisões teológica e política polarizadas, que eram muito evidentes. Meu lamento era intensificado porque essas divisões foram inflamadas pelas lideranças da Igreja.
Minha raiva estava aumentando porque uma compreensão corrompida de ser “pró-vida” tornou-se o centro do caos.
Eu estava totalmente consternada pelo julgamento que Donald Trump era o candidato “pró-vida” e Joe Biden, um homem de fé, católico praticante com um longo testemunho de prática do ensino social católico, não era “pró-vida”.
O julgamento foi baseado em apenas um assunto: o aborto mais que o compromisso com uma ética consistente completa e integrada da rede da vida:
“Tudo que se opõe à vida, como seja toda a espécie de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário [...] tudo que ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e jovens; e também as condições degradantes de trabalho; em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis. Todas estas coisas e outras semelhantes são infamantes [...] e ofendem gravemente a honra devida ao Criador” (Gaudium et Spes).
Papa Francisco expressou sua preocupação sobre o julgamento de um tema único nessas palavras:
“A defesa do inocente nascituro, por exemplo, deve ser clara, firme e apaixonada, porque neste caso está em jogo a dignidade da vida humana, sempre sagrada, e exige-o o amor por toda a pessoa, independentemente do seu desenvolvimento. Mas igualmente sagrada é a vida dos pobres que já nasceram e se debatem na miséria, no abandono, na exclusão, no tráfico de pessoas, na eutanásia encoberta de doentes e idosos privados de cuidados, nas novas formas de escravatura, e em todas as formas de descarte” (Gaudete et Exsultate, 101).
Eu entrei para as irmãs da Caridade de Halifax, Nova Escócia, Canadá, em 1962, sou naturalizada canadense e tenho dupla nacionalidade.
Meu ministério incluiu na maior parte desses quarenta anos o cuidado pediátrico com vítimas de abusos físicos e sexuais e seriamente doentes e pacientes em estado terminal e lecionei ética médica com foco no cuidado da morte, e políticas públicas de saúde.
Toda a minha vida foi dedicada a ensinar e praticar “pró-vida”, guiada pelas palavras e testemunho de Jesus, o ensino moral da Igreja e os princípios do ensino social católico: a dignidade da pessoa humana, solidariedade, subsidiaridade, compromisso com o bem comum e opção preferencial pelos pobres. Eu tenho aprendido o quão difícil é isso em uma sociedade plural e secular.
Na maior parte dos quarenta anos, eu trabalhei na cura da crise dos abusos sexuais cometidos pelo clero na Igreja, desde a minha participação como pediatra na Comissão Arquidiocesana de Investigação de Abuso Sexual Clerical em St. John’s, Newfoundland, Canadá.
Há horríveis consequências psicológicas, físicas e espirituais às crianças sexualmente abusadas, na maioria por toda a vida.
Eu fiquei perplexa que, em uma Igreja com forte comprometimento com fetos, o abuso sexual das crianças e jovens que já nasceram não é considerado um assunto “pró-vida”.
A credibilidade da Igreja tem sido profundamente danificada.
Tenho uma longa história de educar os católicos na tradição de uma “boa morte” e no trabalho político multissetorial nacional para saúde mental acessível e efetiva, e cuidados paliativos para todos.
Eu ajudei a Conferência Canadense de Bispos Católicos a derrotar as repetidas tentativas legislativas de legalizar a morte medicamente assistida.
Desde uma decisão de fevereiro de 2015 da Suprema Corte do Canadá, que descriminalizou a morte por assistência médica para uma ampla gama de condições médicas “graves”, tenho trabalhado incansavelmente para educar os católicos a respeito dessa medicalização do sofrimento e para proteger os mais vulneráveis de seu abuso, especialmente os pobres, deficientes, deficientes mentais e idosos.
Como eticista, trabalhei justamente pela política de saúde.
Do ponto de vista católico, isso requer um compromisso com a solidariedade e o bem comum e o reconhecimento da assistência à saúde como um elemento do bem comum, não um bem de mercado.
Tenho trabalhado em nível nacional para a expansão do sistema de saúde universal, contra sua restrição, e a promoção da saúde pública. A solidariedade exige cuidado com o meio ambiente e resistência a políticas econômicas injustas.
Donald Trump falha notavelmente em todas as questões pró-vida, exceto a legalização do aborto. Ele também promove ativamente a divisão.
Em toda a gama de questões da vida, Joe Biden pratica o pró-vida. Ele se opõe pessoalmente ao aborto, mas é o presidente de todos e reconhece a separação entre Igreja e Estado. O aborto é legal.
Em vez da celebração de um presidente eleito católico que entende a Igreja como um sacramento da unidade e se comprometeu a curar as divisões manifestadas na eleição, o arcebispo Gomez, presidente da Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos e membro do Opus Dei, impôs uma comissão para julgar Biden sobre o aborto para que ele “não confunda os católicos sobre o ensino da Igreja”.
Muitos negariam a Comunhão a políticos como Biden sob o Cânon 915, que afirma que a Comunhão não deve ser dada àqueles “que obstinadamente persistem em pecado grave manifesto”.
Mas se você nega o sacramento àqueles que respeitam o aborto legal, então você também deve negá-lo àqueles que apoiam a pena de morte e políticas econômicas injustas que privilegiam os ricos, prejudicam os pobres e mais degradação ambiental.
O Cânon 18 diz que as sanções da Igreja devem ser interpretadas estritamente e o Cânon 912 argumenta que as pessoas batizadas têm direito à Eucaristia. O papa Francisco diz que a Eucaristia “não é um prêmio para os perfeitos, mas um poderoso remédio e alimento para os fracos”.
O cardeal Wilton Gregory, de Washington, disse que não negará a comunhão a Biden. Ele espera um diálogo respeitoso enquanto trabalham juntos, mas também para levantar questões de interesse da Igreja.
O papa Francisco escreve em sua última encíclica Fratelli Tutti (191):
“Comprometamo-nos a viver e ensinar o valor do respeito, o amor capaz de aceitar as várias diferenças, a prioridade da dignidade de todo o ser humano sobre quaisquer ideias, sentimentos, atividades e até pecados que possa ter”.
A menos que haja uma reflexão mais séria sobre o que significa ser pró-vida hoje, nenhum católico poderá entrar na política em nosso mundo secular.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O que significa ser pró-vida em um mundo secular - Instituto Humanitas Unisinos - IHU