17 Dezembro 2020
"A absoluta falta de atenção ao bem comum é o claro testemunho do individualismo largamente difundido na nossa sociedade e, portanto, da afirmação, mesmo em condições de particular desconforto coletivo como o atual, de comportamentos autorreferenciais e egoístas", escreve Giannino Piana, teólogo italiano, ex-professor das universidades de Urbino e de Turim, na Itália, e ex-presidente da Associação Italiana dos Teólogos Moralistas, em artigo publicado por Rocca, n. 24, 15-12-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A notícia da iminente chegada das vacinas, que trouxe uma lufada de otimismo em uma época escura (em muitos aspectos dramática) como a que estamos vivendo, não deixa de levantar uma série de questões éticas importantes.
Duas delas merecem atenção particular: a questão da distribuição do medicamento e a da obrigatoriedade (ou não) de se submeter ao tratamento.
Na primeira, está em jogo a equidade social como expressão concreta da justiça; na segunda, a relação entre liberdade individual e bem comum em um âmbito de relevância particular, o da saúde pública.
A abordagem correta às duas questões não pode ignorar a consideração de que estamos hoje, graças ao fenômeno da globalização, em uma situação de estrita interdependência em nível mundial, e de que isso nos obriga a exercer uma forma de responsabilidade alargada e a avaliar os nossos comportamentos com base nas consequências positivas e/ou negativas que se refletem em toda a família humana.
A interconexão existente entre setor e setor da convivência, entre nação e nação, entre ecossistema e ecossistema, nos torna conscientes do cuidado que devemos ter com a humanidade inteira e com o ambiente natural, com a certeza, confirmada de modo transparente também pela pandemia em curso, de que ninguém se salva sozinho.
A distribuição das vacinas assume, nesse contexto, um significado particular. Trata-se de pôr à prova a vontade de superar as desigualdades diante de um problema de particular gravidade que põe em causa a saúde (e a vida) de todos. Os primeiros dados de que dispomos não parecem registar a existência dessa vontade. Os sinais que surgiram até agora não são reconfortantes. Não só não existe uma medida de política internacional que garanta uma justa distribuição da vacina, oferecendo a todos a possibilidade de acesso; mas também se verificou que os países ricos que representam 13% da população mundial já se apossaram de mais de dois bilhões de doses das potenciais vacinas contra a Covid-19 em uma corrida desordenada que a prestigiosa revista Nature não hesitou em definir como “uma escalada desigual até as vacinas”.
Por isso, os governos da Índia e da África do Sul enviaram, no dia 2 de outubro passado, para a Organização Mundial do Comércio (OMC), uma proposta conjunta, com o pedido de uma revogação das patentes e de outros direitos de propriedade individual em relação a vacinas, diagnósticos, equipamentos de proteção individual e outras tecnologias médicas durante toda a duração da pandemia, considerando que a manutenção de tais dispositivos é uma das principais barreiras de acesso aos medicamentos por parte das populações mais pobres.
A revogação temporária das obrigações contidas no acordo Trips referente à proteção de tais produtos – revogação prevista, aliás, pelo mesmo acordo em circunstâncias particulares – permitiria que os centros de pesquisa compartilhassem o conhecimento científico, acelerassem colaborações para o desenvolvimento de novos produtos voltados para o combate o vírus, além de reduzirem o preço dos produtos; de fato, não se deve esquecer que a sua insuficiente disponibilidade e o seu custo excessivo são uma ameaça para todos, pois acabam prolongando a pandemia.
A iniciativa da Índia e da África do Sul obteve o apoio de muitos Estados-membros da OMC, de organizações internacionais, de economistas como Joseph Stiglitz, além da Santa Sé, que deu o seu pleno consentimento à iniciativa. Quem se opôs a ela foi (e continua sendo) o bloco dos países industrializados que financiaram a pesquisa sem impor qualquer condição sobre os preços, a transparência dos estudos clínicos e a transferência das tecnologias, subestimando, portanto, o fato de que os direitos de propriedade intelectual, que em condições normais são um incentivo à inovação, nesta circunstância dramática, permitindo que as empresas farmacêuticas fixem com exclusividade as condições de mercado para os seus produtos, se tornem a causa de pesados desequilíbrios.
É a Itália? O ministro da Saúde, Speranza, não deixou de reconhecer em várias circunstâncias que a vacina é um “bem público” e de esperar que se alcance um “acesso justo”. No entanto, na realidade, o governo italiano ainda não aderiu à proposta da Índia e da África do Sul, e não parece ter se empenhado particularmente na Europa em vencer as hostilidades da Comissão.
Por isso, Nicoletta Dentico, responsável do programa de saúde global da Society for International Development (Sid), e Silvio Garattini, fundador e presidente do Instituto de Pesquisas Farmacológicas “Mario Negri”, se fizeram promotores de um apelo “Vacina, bem comum”, assinado por uma longa lista de pessoas e dirigido ao governo italiano, no qual se pede que se “garanta o acesso universal à vacina e outros remédios que possam deter o vírus sarsCoV-2” e se solicita que a Itália “se esforce com convicção dentro da União Europeia, em conjunto com outros países europeus, para que a hostilidade da Comissão à iniciativa da Índia e da África do Sul seja imediatamente revista e para que se acolha a exceção temporária, em relação à Covid-19, ao regime ordinário do Acordo Trips”.
A gravidade da situação está diante dos olhos de todos. A longa corrida às vacinas corre o risco de deixar de fora, desde a partida, os últimos do planeta. Trata-se de um ato de injustiça intolerável, que confirmaria – infelizmente – a situação de pesada desigualdade existente no mundo e a agravaria ainda mais, pelo fato de que, nessa circunstância, está em jogo o bem da saúde (e da vida), isto é, um bem público de primordial importância e um direito fundamental de cada pessoa, independentemente da sua condição pessoal e social.
A segunda questão de peso ético relevante diz respeito à obrigação ou não de tomar a vacina. Se nos referirmos ao indivíduo, não há dúvida de que subsiste um dever moral inderrogável de nos submetermos a ela. Está em jogo a saúde (e a vida) própria e alheia, que não pode ser posta em risco superficialmente, pois representa um direito primário que não pode ser revogado. Estamos diante de um ato de justiça social para com a família humana, no qual se exprime o exercício daquela fraternidade universal solicitada pelo Papa Francisco na recente encíclica Fratelli tutti; fraternidade que afunda as suas raízes na absoluta dignidade de cada pessoa humana e que, por isso, exige a implementação de uma forma de solidariedade, que é uma das modalidades pelas quais se dá realização concreta à virtude da caridade.
A esse respeito, é impressionante que, de acordo com os resultados de uma série de pesquisas realizadas por diversas agências renomadas, um alto percentual de italianos, 25% (um quarto de toda a população), não pretende se vacinar, citando como motivo da recusa preconceitos, medos e desconfiança na ciência. O que, além de manifestar a presença de uma atitude obscurantista generalizada ou de uma desconfiança preconcebida, é um sinal tangível de uma falta de senso cívico e, mais ainda, de uma relevante ausência de eticidade.
A absoluta falta de atenção ao bem comum é o claro testemunho do individualismo largamente difundido na nossa sociedade e, portanto, da afirmação, mesmo em condições de particular desconforto coletivo como o atual, de comportamentos autorreferenciais e egoístas.
Surge, então, a pergunta: não é necessário impor a obrigação da vacinação a todos? A resposta não é simples. De fato, neste caso, estamos diante de um dilema que não é fácil de resolver. De um lado, há o valor da saúde, que é “direito do indivíduo e interesse da coletividade” – como afirma a Constituição italiana (art. 32) –; um bem primário, portanto, a ser salvaguardado para si e para os outros.
Por outro lado, há o valor da liberdade, que deve ser rigorosamente tutelado, porque representa um direito fundamental da pessoa, claramente evidenciado, aliás, também pelo artigo da Constituição citado.
Qual dos dois valores deve prevalecer nesta conjuntura? Pessoalmente, acho que o da liberdade, até para evitar desvios perigosos decorrentes de outras (excessivas) ampliações do campo das restrições.
A pandemia, dado o inevitável estado de emergência a que nos obrigou, já contribuiu largamente para limitar a liberdade pessoal, tanto graças à imposição de alguns comportamentos individuais – obrigação da máscara e distanciamento social (má expressão: não seria melhor falar de distanciamento físico?) – quanto por meio do escanteamento de algumas garantias democráticas: basta pensar na multiplicação dos decretos da presidência do Conselho e na consequente desautorização do Parlamento, especialmente na primeira fase. Uma obrigação a mais em um âmbito delicado como o da saúde, além de violar o princípio da autodeterminação sancionado pela Constituição, representaria um pesado revés para a própria vida democrática.
Tudo isso, evidentemente, deixa intacto o dever moral de cada um, que já foi mencionado, e não exclui (não pode excluir) que certas categorias de pessoas sejam obrigatoriamente submetidas à vacinação, tais como o pessoal da saúde, os professores, os lojistas, os trabalhadores de restaurantes etc., que, estando mais expostas por causa da sua atividade ao contato cotidiano junto à população, representam um fator de risco principalmente para os mais frágeis.
Entre as vacinas que estão sobre a mesa e que poderão entrar em circulação em breve, além das estadunidenses da Pfizer e Moderna, há aquela produzida pela AstraZeneca e pela Universidade de Oxford em colaboração com o Instituto IRBM de Pomezia (Roma), portanto também graças à pesquisa desenvolvida na Itália. Esta última vacina tem uma eficácia entre 62% e 90% (embora se exija mais um tempo de experimentação) e dois pontos de força sobre as outras – o fato de poder ser armazenada em uma geladeira normal e o baixo custo (cerca de três euros, uma fração dos dois concorrentes mencionados, que custarão entre 20 e 25 euros) –, mas merece sobretudo ser indicada pelo compromisso assumido desde o início de vender “para sempre” aos países pobres ao preço de custo.
O diretor-executivo da empresa de Cambridge, Pascal Soriot, declarou: “Manteremos a promessa de uma vacina sem fins lucrativos, justa e acessível em escala global”. A confirmação da verdade dessa afirmação é o fato de que, ao contrário da Pfizer e da Moderna, a AstraZeneca já faz parte da Cowax, a rede de distribuição justa do medicamento contra a Covid-19 entre países ricos e pobres; e que dois bilhões de doses dessa vacina já foram reservadas para 92 nações de baixa e média renda. Uma notícia de grande importância, que é um sinal, ainda que limitado, de esperança.
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Vacinas para todos: e também para mim? Artigo de Giannino Piana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU