07 Julho 2020
"Um personagem (Paulo) não isento de detratores ferozes como Nietzsche, que cunharam para ele a definição ofensiva de 'disangelista', isto é, anunciador de más notícias, ao contrário dos "evangelistas". Paulo também não teria ficado feliz em ser classificado por Gramsci como 'o Lenin do cristianismo', enquanto Ernest Renan em seu Saint Paul (1869) o considerou a fonte de todos 'os principais defeitos da teologia cristã..., do sutil Agostinho ao árido Tomás de Aquino, do sombrio calvinista ao rabugento jansenista', ao contrário de Jesus, porto de desembarque e 'de repouso de todas as almas nobres'. O fato é, porém, que se continua a ler e comentar suas Epístolas com diferentes abordagens e resultados", escreve o cardeal Gianfranco Ravasi em artigo publicador por Il Sole 24 Ore, 05-07-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Apóstolo dos gentios. As estudiosas bíblicas Rosanna Virgili, Emanuela Buccioni e Rosalba Manes comentam as epístolas, fazendo com que aflore melhor a autenticidade e o pensamento do santo em todas as suas facetas. Era 1915, no início da Primeira Guerra Mundial, e o agora popular escritor polonês, naturalizado inglês também no nome e sobrenome, Joseph Conrad, publicou um de seus muitos romances, intitulado Victory. Ele se referia explicitamente a um parágrafo, semelhante a uma marcha triunfal, encrustada por São Paulo no cap. 15 de sua primeira epístola aos Coríntios, versículos 51-57. Ao som da trombeta angélica, os mortos ressuscitavam, o corpo tornava-se incorruptível e imortal e, citando o profeta Oseias, o apóstolo lançava seu desafio: “Onde está, ó morte, a sua vitória? Onde está, ó morte, o seu aguilhão? ... Mas graças a Deus, que nos dá a vitória por meio de nosso Senhor Jesus Cristo”.
Na realidade, o romance de Conrad resultava em uma reversão radical da declaração paulina, porque o mundo mergulhava em um caos de sangue, fogo, suicídio e a última palavra era Nothing! Quisemos evocar essa obra pouco conhecida do autor de Coração das Trevas e Lorde Jim, no limiar da solenidade dos apóstolos Pedro e Paulo, que se celebra no dia 6, em um clima que certamente não é muito festivo. De fato, Paulo não é apenas uma presença fundamental no Novo Testamento, mas na própria história e cultura do Ocidente. Apenas para citar um fato, a Reforma de Lutero ocorreu sob a égide do Apóstolo, em particular de sua obra-prima, a Epístola aos Romanos.
E como não estamos longe de 2021, o centenário da morte de Dante, vamos lembrar que para o poeta ele era "O vaso eleito" (Inferno II, 28), ou melhor, "o grande vaso / do Espírito Santo" (Paraíso XXI, p. 127-128), pronto para pegar "uma espada brilhante e afiada" (Purgatório XXIX, 140), a de sua palavra cortante e penetrante. De fato, além da trama de sua biografia missionária traçada pelo discípulo São Lucas nos Atos dos Apóstolos, são as 13 cartas atribuídas a ele que marcam a natureza imponente de sua figura na história do cristianismo. Um corpus epistolar que ocupa 2.003 dos 5.621 versículos de todo o Novo Testamento. Um verdadeiro evangelho de Paulo colocado ao lado daquele de Jesus Cristo, composto pelos quatro evangelistas.
Um Evangelho incessantemente comentado, considerado a estrela polar da teologia cristã, aliás, chama, torrente, exercício de atleta, soldado e navegador, para usar as metáforas que um grande Padre da Igreja como João Crisóstomo lhe havia designado.
Um personagem não isento, no entanto, de detratores ferozes como Nietzsche, que cunharam para ele a definição ofensiva de "disangelista", isto é, anunciador de más notícias, ao contrário dos "evangelistas". Paulo também não teria ficado feliz em ser classificado por Gramsci como "o Lenin do cristianismo", enquanto Ernest Renan em seu Saint Paul (1869) considerou a fonte de todos "os principais defeitos da teologia cristã..., do sutil Agostinho ao árido Tomás de Aquino, do sombrio calvinista ao rabugento jansenista", ao contrário de Jesus, porto de desembarque e "de repouso de todas as almas nobres". O fato é, porém, que se continua a ler e comentar suas Epístolas com diferentes abordagens e resultados, a partir das mesmas origens do cristianismo, como se atesta já no Novo Testamento, onde um autor anônimo, que se reveste da autoridade de São Pedro, observa que "nosso amado irmão Paulo escreveu segundo a sabedoria que foi dada a ele. Falando disto, como em todas as suas epístolas, entre as quais há pontos difíceis de entender, que os não doutos e inconstantes torcem" (2 Pedro 3,15-16). Pois bem, um comentário paulino, bastante original, acaba de ser publicado e merece ser mencionado.
Por trás dele, há uma história. Em 2015, quatro mulheres biblistas decidiram traduzir e comentar juntas os Evangelhos. Duas delas, Rosalba Manes e Rosanna Virgili, optaram por continuar esse experimento dedicando-se agora às Epístolas de Paulo, agregando uma nova colega, Emanuela Buccioni. É óbvio que a base fundamental dessa leitura responde aos cânones exegéticos codificados, às metodologias histórico-críticas e literárias, que não pertencem a "gêneros".
No entanto, é evidente que o sujeito que lê um texto, mesmo no nível da tradução, aporta seu filtro interpretativo, a fineza ou não do seu olhar, um pouco como o que acontece na apresentação de uma partitura musical. E isso aparece no volume citado já a partir da introdução geral que se despoja do aparato um tanto pedante do modelo acadêmico, de seus esquemas e argumentações cujo rigor às vezes beira a rigidez.
Na verdade, no palimpsesto do texto, podemos ver o conhecimento da instrumentação científica clássica e recente, mas o uso é mais criativo e proveitoso, a linguagem é mais fresca e incisiva e a autenticidade do apóstolo emerge melhor em todas as suas facetas. Mesmo naquelas mais complicadas de digerir para uma mulher: esse é o caso de suas declarações consideradas antifeministas, como o véu imposto às fiéis ou o seu silêncio nas assembleias, porque existem os "maridos que entendem, falam e explicam" também para elas. E, mais ainda, a submissão aos maridos, porque "assim como a igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres sejam em tudo sujeitas a seus maridos" (Efésios 5,24).
Na realidade, o tecido contextual dessas e de outras afirmações paulinas é mais complexo, como o era aquele histórico social da época, enquanto o mesmo dado textual pode revelar dobras ocultas de viés diferentes. Podemos ler, então, o comentário sobre essas passagens e a análise final de Virgili sobre "Paulo e as mulheres" (entre outras coisas, de acordo com o atestado pela Epístola aos Romanos, cap. 16, daquela comunidade, o Apóstolo acredita que chamará para saudar pelo nome sete mulheres e apenas cinco homens).
É claro que não se esgota nisso que pode parecer um detalhe a leitura paulina da obra, inclusive porque o horizonte que se desenrola no pensamento do apóstolo é muito mais amplo, sem perder o fio condutor. Não há concessões para a paráfrase ou à acomodação, mesmo que em alguns casos se opte por uma interpretação mais adequada (por exemplo, é o caso do escravo que se torna cristão: ler 1 Coríntios 7,21).
Este não é o lugar para um exame minucioso dos comentários específicos, especialmente quando as passagens paulinas cristalizadas na hermenêutica dos séculos sucessivos devem ser enfrentadas, esquecendo que Paulo muitas vezes propõe um processo dinâmico de pesquisa na imensidão do mistério teológico e cristológico. Entre outras coisas, ele não hesita em se opor a exageros de um misticismo excessivo, como o da glossolalia, isto é, de linguagens carismáticas fluidas e vagas: “Todavia, na igreja prefiro falar cinco palavras compreensíveis para instruir os outros a falar dez mil palavras em língua desconhecida” (1 Coríntios 14,19).
A esse comentário - que recomendamos a todos aqueles que desejam encontrar uma figura de referência importante para o conhecimento do cristianismo - associamos apenas através de uma sinalização um instrumento mais estritamente científico que indiretamente diz respeito a Paulo. Como já foi dito, Lucas, além de seu Evangelho, o mais longo dos quatro, também deixou um retrato da Igreja das origens em sua segunda obra, os Atos dos Apóstolos. Um dos principais especialistas desses escritos, Daniel Marguerat, da Universidade de Lausanne, oferece um mapa muito preciso que segue o caminho de Lucas em suas várias articulações temáticas para chegar ao perfil de "Paulo segundo Lucas", também abordando uma questão que reflete uma comum expectativa não atendida: por que Lucas não contou a morte de Paulo, parando apenas em sua prisão domiciliar em Roma? As respostas hipotéticas, que deixamos ao leitor, são certamente surpreendentes.
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Olhos e corações das mulheres sobre as “Epístolas” de Paulo. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU