Estética e política não existem uma sem a outra e, nesta relação, a literatura, em particular, tem a capacidade de fazer a “crítica social como nenhuma outra esfera de circulação de discursos consegue fazer”, afirma Kelvin Falcão Klein, professor da Escola de Letras da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO à IHU On-Line. Segundo ele, “a literatura não serve para representar o mundo como um espelho, mas para apresentar versões possíveis do mundo, potencialidades do mundo que residem em camadas mais profundas (ou às vezes à vista de todos)”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Klein menciona algumas obras literárias importantes para pensar o Brasil, um país que “nunca amadureceu como nação e como democracia” e sempre foi visto como uma “promessa” de futuro. Entre elas, ele menciona a obra do escritor Franz Kafka, porque “é sempre sobre algo que nunca se realiza, nunca termina, nunca se concretiza, mas que instaura um ambiente de tensão, pesadelo e violência (por vezes direta, por vezes indireta, simbólica)”. A produção literária de Toni Morrison, que apresenta uma reflexão sobre o racismo” também “é importante para compreender o Brasil, país racista que recalca continuamente o próprio racismo” e a obra de “Joseph Conrad, na medida em que é uma reflexão sobre o colonialismo e seus efeitos perversos, é importante para compreender o Brasil, ponta de lança na vanguarda do retrocesso”, assinala.
Entre os escritores brasileiros, Kelvin Klein sugere a leitura e o estudo de Os Sertões, do escritor e jornalista carioca Euclides da Cunha. “O massacre de Canudos instaurou esse paradigma de violência sob o qual vivemos até hoje e Euclides tanto relatou sua dinâmica e seus eventos quanto inventou uma nova forma (híbrida, tensa) de relacionar realidade e ficção, estética e política, linguagem e materialidade”, ressalta.
Kelvin Klein (Foto: Arquivo Pessoal)
Kelvin Falcão Klein é graduado em Comunicação Social pela Escola de Comunicação e Artes do Centro Universitário da Cidade do Rio de Janeiro, mestre em Letras - Literatura Comparada, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e doutor em Teoria Literária pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Atualmente leciona na UNIRIO.
IHU On-Line - Como o conceito de estética se coaduna com o campo da política?
Kelvin Falcão Klein - Uma coisa não existe sem a outra, especialmente se entendermos (de forma ampla e generosa) a estética como aquilo que nos toca, afeta, que nos faz sentir e nos coloca em movimento. Todo movimento acontece no espaço e, geralmente, toda afecção gera o desejo de falar, de comentar, de narrar (é nesse ponto decisivo em que a estética se liga à literatura). Se o movimento requer espaço e se a narração requer uma audiência ou, ao menos, um interlocutor, chegamos ao reino da política: a polis, a cidade e a comunidade. Quando gosto de alguma coisa, estou no campo da estética. Quando gosto de alguma coisa e tenho o desejo de comentar, narrar, expor a alguém meu entusiasmo e convencer essa pessoa da relevância daquilo que gosto, estou no campo em que a estética se sobrepõe à política.
IHU On-Line - Qual a “estética da política” de nosso tempo?
Kelvin Falcão Klein - São inúmeras, incontáveis, e acredito que só possam ser pensadas e avaliadas caso a caso. A estética (digamos assim, ainda de forma ampla e generosa) está em contínua expansão, não descansa, se adapta a todas as correntes, a todas as reivindicações, sempre em metamorfose. A política, por sua vez, não é tão maleável. A política rege a vida na polis simultaneamente a partir de dois registros, o mental e o material, aquele das ideias e das ideologias e aquele dos bens, dos recursos e da disponibilidade dos materiais. Acredito que em “nosso tempo” essa discrepância entre a maleabilidade da estética e a resistência da política (intensificada pelo neofascismo da direita no poder) está ainda mais pronunciada. Cabe à estética, portanto, fazer aquilo que faz de melhor e que tem feito há séculos, ou seja, esgarçar os limites mentais e materiais da vida em sociedade e em comunidade, forçar o aceitável, expandir os limites do “normal”. Foi o que fizeram, tanto no mental quanto no material, [Marcel] Duchamp com o ready-made e [Hélio] Oiticica com o parangolé, por exemplo.
“Roda de bicicleta" (1913), de Marcel Duchamp
IHU On-Line - As produções literárias, especialmente de romances, revelam costumes e pensamentos da época em que são concebidos. Em que medida a literatura também pode ser tomada como fonte para se compreender as transformações do conceito de política na sociedade?
Kelvin Falcão Klein - Existe, sem dúvida, uma conexão direta entre a literatura e a sociedade, os costumes, o período histórico no qual se insere a obra literária e assim por diante. O monumento a ser lido e relido a respeito do assunto é Mimesis, de Erich Auerbach – e outros livros mais modestos, como Represálias selvagens, de Peter Gay (sobre as relações entre “realidade” e “ficção” em Dickens, Flaubert e Thomas Mann).
Existe também a possibilidade de pensar a literatura atuando subterraneamente na política e na sociedade, ou seja, a partir daquilo que é tão óbvio que não precisa ser mencionado diretamente. Jorge Luis Borges, em sua conferência-ensaio “O escritor argentino e a tradição”, fala que a ausência de camelos no Corão é a prova da origem árabe de Maomé e da essência árabe do livro sagrado. É naquilo que falta que se reconhece, para Borges, a mais íntima relação de um texto com seu contexto, ou ainda, da estética com a política. Essa postura me parece um antídoto para o gesto muito recorrente (automático, padronizado) de ver a literatura como espelho da realidade, como um saber menor, acessório. Essa concepção é um atalho mental que impede a leitura dos textos e alimenta a cultura da mediocridade na qual estamos inseridos.
IHU On-Line - De que forma uma modulação histórico-gramatológica na literatura contemporânea pode nos revelar territórios e pertencimentos? E como esses movimentos fazem avançar o pensamento pós-colonial?
Kelvin Falcão Klein - A ideia de uma “modulação histórico-gramatológica”, que venho buscando e testando nas minhas pesquisas dos últimos anos, envolve uma consideração simultânea com relação ao texto e ao contexto. Ou seja, uma observação da dinâmica existente entre as heterogeneidades e desníveis que operam tanto no nível retórico (o texto e seu jogo de metáforas e remissões internas) quanto no nível geopolítico (a consideração bastante específica de que a literatura intervém sobre corpos físicos e políticos, determinando e, ao mesmo tempo, questionando identidades e pertencimentos das mais variadas naturezas). A ideia de “gramatologia” vem de Jacques Derrida (De la grammatologie, 1967) e, em linhas gerais, diz respeito a uma teoria da linguagem que busca esvaziar a centralidade essencialista da voz (como emanação de uma figura de autoridade), contrapondo a isso a noção de “escritura”.
Essa “modulação” se dá muitas vezes quando uma obra literária reconfigura um gênero ou uma forma padrão em resposta a um trauma histórico, digamos. Para exemplificar essa ideia e avançar sobre o tema da teoria pós-colonial, poderíamos pensar em um livro da escritora Isabela Figueiredo, Cadernos de memórias coloniais, sobre suas memórias de criança em Moçambique. O título já indica a heterogeneidade retórica do projeto, a mescla de “caderno” e “memória”, ou seja, algo que não se decide e que permanece até o fim fazendo uso dessa instabilidade para dar conta tanto de uma renovação literária das formas quanto de uma reflexão política, social, pós-colonial. Durante a leitura, você acompanha a reconfiguração do campo político a partir do investimento imaginativo da autora na forma e no estilo e, ao mesmo tempo, acompanha a artesania do trabalho da linguagem a partir do eco desse trabalho na evocação das tensões políticas, raciais e sexuais da passagem do colonial para o pós-colonial. É nesse ponto que se dá a modulação entre história e gramatologia, quando um gesto formal é indissociável do horizonte político que o informa e o limita e contra o qual se lança.
IHU On-Line - Que disputas políticas podemos identificar nas produções da literatura de nosso tempo? E o que significam essas disputas?
Kelvin Falcão Klein - Recentemente li o romance Sobre os ossos dos mortos, da escritora polonesa Olga Tokarczuk (que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura de 2018), que pode ser visto como um bom exemplo dessas “disputas políticas” na produção literária. Retornando à ideia da política como vida em comunidade (vida na polis compartilhada), o romance de Tokarczuk mostra uma série de conflitos em torno daquilo que é aceitável na convivência dos indivíduos uns com os outros e com o ambiente que os cerca. A ação se passa em uma cidade no interior da Polônia coberta de neve e cheia de animais silvestres. A narradora, uma professora aposentada de inglês, é vegetariana e enfrenta há anos o grupo (politicamente forte) dos caçadores. Aí está uma disputa pela vida dos animais que é também uma disputa acerca daquilo que é permitido ou não na vida em comunidade.
Outro livro recente que pensa a disputa política como algo inerente à vida subjetiva (e às relações interpessoais) é Argonautas, de Maggie Nelson, um livro breve, mas extremamente denso e experimental. A partir de obras como as de Susan Sontag, Roland Barthes e Ludwig Wittgenstein, Nelson liga sua experiência pessoal a uma análise detida da conexão (teórica, conceitual, existencial) entre temas como sexualidade, gênero, identidade e educação. Por que certas pessoas (tacanhas, limitadas, violentas) não conseguem aceitar a diferença, a possibilidade de distintas pessoas defenderem distintas visões de mundo? Essa é uma disputa política permanente, cada dia mais em voga em uma sociedade acelerada – é o que encontramos nas obras de artistas como Ben Lerner, Claudia Rankine, Avital Ronell.
IHU On-Line - Como conceber o espaço da literatura na crítica social? E em que medida as produções de nosso tempo fazem essa crítica?
Kelvin Falcão Klein - A literatura não serve para representar o mundo como um espelho, mas para apresentar versões possíveis do mundo, potencialidades do mundo que residem em camadas mais profundas (ou às vezes à vista de todos). A crítica social na obra de um escritor como Bernardo Kucinski, por exemplo, está em seu resgate da ditadura militar e a construção de uma situação – imaginativa, ficcional – que mostra até que ponto ainda vivemos sob o signo dessas violências, e que a passagem do tempo não é suficiente para a elaboração dos traumas (é necessário um trabalho continuado de resgate e narração).
Em meu último livro, Wilcock, ficção e arquivo (lançado em 2018 pela editora Papéis Selvagens), penso o caso do escritor Juan Rodolfo Wilcock, nascido na Argentina e falecido na Itália. Ele escreve a primeira metade de sua obra em espanhol e a segunda em italiano. Quando chega na Itália (no final da década de 1950), ainda um pouco atordoado, começa a ler obsessivamente os jornais, selecionando, recortando e guardando aquilo que encontrava de mais bizarro, pitoresco ou assustador. No início da década de 1960, ele publica um livro (Fatos inquietantes) composto de breves capítulos, nos quais reconta muitas dessas notícias vistas no jornal. Ele repete, em um tom ironicamente neutro, aquilo que passou anos recolhendo na imprensa – ou seja, ele desautomatiza o hábito de ler jornais, de se informar, fazendo tudo isso em uma língua estrangeira que ele vai aos poucos dominando. Ele capta na imprensa as ideias feitas, os padrões, os assuntos da moda, o sensacionalismo, as pequenas coisas que no cotidiano formam a tal “opinião pública”, que sustentam o tecido ideológico social. O efeito do livro de Wilcock é impressionante justamente porque ele rompe esse automatismo do cotidiano – algo que passa desapercebido porque está diluído no dia a dia se torna flagrante quando é disposto de forma cumulativa em um livro.
A literatura faz essa crítica social como nenhuma outra esfera de circulação de discursos consegue fazer. Ou seja, perceber o que está automatizado no cotidiano e interromper esse processo – é o que fazem escritores contemporâneos brasileiros como André Sant’Anna, Ricardo Lísias e Bernardo Carvalho (especialmente no romance Reprodução).
IHU On-Line - Quais obras literárias considera importante para se compreender o Brasil?
Kelvin Falcão Klein - O Brasil nunca amadureceu como nação e como democracia, sempre se posicionou (e foi posicionado por outros países) como algo da ordem da promessa, do que está por vir, como uma estratégia de postergação, de projeção (sustentando uma posição subalterna no presente com a promessa de que algo acontecerá no futuro, um futuro que, como a linha do horizonte, se afasta no mesmo ritmo em que você se aproxima). Uma frase de Roberto Bolaño, escritor chileno, indica algo nesse sentido (e toda sua obra o faz): “A América Latina foi o manicômio da Europa, assim como os EUA foram sua fábrica. A fábrica está agora em poder dos capatazes, e loucos fugidos são sua mão de obra”.
A obra de Franz Kafka me parece importante para pensar o Brasil: é sempre sobre algo que nunca se realiza, nunca termina, nunca se concretiza, mas que instaura um ambiente de tensão, pesadelo e violência (por vezes direta, por vezes indireta, simbólica). Toda a obra de Toni Morrison, na medida em que é uma reflexão sobre o racismo, é importante para compreender o Brasil, país racista que recalca continuamente o próprio racismo. Toda a obra de Joseph Conrad, na medida em que é uma reflexão sobre o colonialismo e seus efeitos perversos, é importante para compreender o Brasil, ponta de lança na vanguarda do retrocesso. Toda a obra de Balzac, na medida em que é uma reflexão sobre as relações entre imprensa, religião e sociedade, é importante para compreender o Brasil, cuja maioria da população é estupidificada diariamente pela televisão e pelo discurso preconceituoso das igrejas.
IHU On-Line - Como realidade e ficção se articulam na escrita do passado ou da História? E na escrita do presente?
Kelvin Falcão Klein - O “passado como de fato foi” não existe, assim como não existe uma abordagem única do passado que resolveria, de uma vez por todas, a compreensão daquilo que aconteceu (o real é o impossível de dizer, segundo Jacques Lacan). É preciso ter uma concepção mais criativa tanto do tempo como da história, pensá-los não de forma sucessiva e acumulativa, mas operando dentro de uma relação mais complexa, feita de camadas heterogêneas e simultâneas. Uma das fontes dessa vertente de concepção histórica na literatura contemporânea é W. G. Sebald (escritor alemão que, infelizmente, faleceu em 2001, no auge de sua produção). Em um romance intitulado Austerlitz, Sebald escreve: “Não me parece, disse Austerlitz, que compreendamos as leis que governam o retorno do passado, mas sinto cada vez mais como se o tempo não existisse em absoluto, somente diversos espaços que se imbricam segundo uma estereometria superior, entre os quais os vivos e os mortos podem ir de lá para cá como bem quiserem e, quanto mais penso nisso, mais me parece que nós, que ainda vivemos, somos seres irreais aos olhos dos mortos e visíveis somente de vez em quando, em determinadas condições de luz e atmosfera”.
Relacionar realidade e ficção é um trabalho árduo que envolve uma consideração fenomenológica dos eventos e uma análise continuada de seus efeitos textuais e narrativos (ou seja, perceber como os eventos foram registrados ao longo do tempo – e para isso só temos a linguagem, escrita, visual, sonora). Sebald, em seus ensaios sobre literatura austríaca (especialmente no livro A descrição da infelicidade), fala da literatura como uma “patografia dos tempos”, ou seja, o registro escrito do pathos que atravessa as épocas (afetos, desconfortos e conflitos). Imaginar uma ficção que confronta os traumas de uma época (a guerra, a ditadura, o fascismo, a violência) é também imaginar uma forma de vida possível (Como resistir? Como continuar? Como transmitir o entusiasmo?), para além do “real” e do “histórico”, e é precisamente essa vida possível que repercute ao longo do tempo, fazendo com que textos do passado permaneçam não só legíveis, mas atuantes no presente.
IHU On-Line - Qual o papel do crítico literário? Quais os maiores desafios, o que levar em conta, para fazer essa crítica em nosso tempo?
Kelvin Falcão Klein - O crítico literário deveria ser uma espécie de sismógrafo da língua, ou seja, alguém que dá a devida atenção às transformações e abalos na linguagem. Não apenas em seu idioma, entendendo a linguagem de forma mecânica (você fala, eu entendo), e sim a língua literária em toda sua complexidade – uma junção de arrojo estético, formal e estilístico. Essa tarefa se dá necessariamente no contemporâneo e é justamente nisso que está o problema. Quem consegue se manter atualizado? Quem consegue se manter atualizado e dedicar o tempo necessário à leitura, às várias leituras simultâneas, pesando e refletindo sobre cada aspecto, cada ressonância histórica possível nos textos? Como se pode encontrar a tranquilidade necessária para a leitura diante da precarização do trabalho, da desigualdade econômica, da decomposição da democracia e ascensão de grupos de extrema direita, da militarização dos afetos, da vigilância global e da redução das liberdades individuais e da degradação total do ambiente natural?
Talvez o papel desse tipo de crítico no mundo atual seja o de mostrar que toda essa violência (política, social, econômica) é indissociável do ato de ler, do ato de ser afetado pela leitura e do ato de comentar, narrar, expor a alguém a excitação da leitura. Talvez a tarefa do crítico seja a de criar modos de circulação (circuitos, caminhos, derivas) do entusiasmo em tempos de barbárie e estupidez.
Por outro lado, a crítica literária também olha para o passado, criando estratégias de releitura de textos já conhecidos e por vezes “congelados” em certos consensos (ou o inverso, olhar para o passado buscando textos negligenciados pelos consensos). É o que faz Anne Carson no seu breve e incrível livro O método Albertine, no qual ela revisita Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, pela ótica de uma única personagem – Albertine Simonet. Outra vertente possível da crítica literária é aquela que, no movimento de buscar o passado e reler as obras já conhecidas, passa também por uma jornada de autodescoberta, digamos. A releitura se articula com uma prospecção subjetiva, ligando os textos aos afetos do crítico, suas manias, obsessões, seus momentos de júbilo e angústia – um exemplo luminoso dessa categoria é Janelas irreais: um diário de releituras, de Felipe Charbel.
IHU On-Line - Quais os eventos das transformações de maio de 68 na literatura? E que outros movimentos políticos trouxeram transformações ao campo literário?
Kelvin Falcão Klein - É muito difícil dar conta dessa questão: maio de 68 foi um evento que se espalhou em muitas direções, tomando muitas formas, atingindo artistas às vezes de forma direta, às vezes de forma sutil – como é o caso de Roberto Bolaño, por exemplo, um autor que leio e pesquiso há anos. Existe um sentimento de camaradagem, de desafio ao contexto político hegemônico, um senso de não-pertencimento em toda a obra de Bolaño e que me parece uma espécie de herança do maio de 68. Gosto de pensar nas repercussões desse evento para além de Paris, para além da Europa – pensar a presença tardia do maio de 68 na literatura latino-americana, por exemplo, não só com Bolaño, mas com vários outros nomes que armam suas ficções em torno à vida precária dos artistas nas cidades, à margem das grandes realizações (arquitetônicas, políticas, midiáticas), como Tununa Mercado, Sylvia Molloy, Ricardo Piglia, entre outros (embora haja também toda uma literatura sobre as promessas vazias de maio de 68 e as reverberações depressivas desse evento – a obra de Michel Houellebecq é representativa dessa vertente, especialmente sua obra-prima Partículas elementares).
Recuando um pouco no tempo, é preciso resgatar um livro que até hoje não foi plenamente absorvido, seja pela literatura brasileira, seja pela literatura mundial: Os sertões, de Euclides da Cunha, motivado por um movimento político e transformador do campo literário. O massacre de Canudos instaurou esse paradigma de violência sob o qual vivemos até hoje e Euclides tanto relatou sua dinâmica e seus eventos quanto inventou uma nova forma (híbrida, tensa) de relacionar realidade e ficção, estética e política, linguagem e materialidade.