15 Abril 2020
“Se a política era ultimamente uma combinação de guerra cultural, gestão de marca pessoal do líder e tecnocracia nos bastidores, hoje, revela sua face mais crua, a do soberano tomando decisões sobre a vida e a morte dos governados”, escreve Ricardo Dudda, jornalista, em artigo publicado por Letras Libres, 12-04-2020. A tradução é do Cepat.
Inicialmente, nós nos perguntávamos como tudo isso pôde começar. Agora, estamos há semanas especulando sobre como terminará e as sequelas que deixará. Não está muito claro. O achatamento da curva de expansão do SARS-Cov-2 (uma situação a que estão se aproximando Itália e Espanha) é apenas uma estratégia para ganhar tempo, mas não acabará com o vírus. Nas últimas semanas, países asiáticos como Coréia do Sul e Cingapura, elogiados por sua disciplina e capacidade de controle da pandemia, estão endurecendo suas medidas de distanciamento social e confinamento. A China começa a retirar suas medidas de confinamento lentamente, mas a vida ainda não voltou à normalidade: as fronteiras continuam fechadas, há limites de lotação, controles de temperatura em locais públicos, o governo colocou guardas de segurança na entrada de residências e escritórios e distribuiu cartões para residentes e trabalhadores.
Não há um itinerário claro de partida. Os epidemiologistas temem excesso de confiança quando se achatar a curva e possíveis novos picos do vírus, caso as medidas forem retiradas muito cedo. Os economistas temem que um congelamento muito longo na economia (é basicamente um coma induzido, como apontou o economista Paul Krugman) nos coloque em crescimentos negativos até 2022 e impeça inclusive que muitas empresas reabram. A crise será mais profunda que a Grande Depressão dos anos 1930. Calcula-se que a Espanha perderá, em 2020, quase 10% do seu PIB (em 2011, o ano mais difícil da crise da dívida europeia, a Grécia, o país que mais sofreu com a crise, teve uma contração de 9,1%).
A crise da COVID-19 é diferente da Grande Recessão de 2007, não apenas por uma questão de magnitude. Os governos estão reagindo mais rapidamente, adotando medidas mais heterodoxas e ampliando muito mais a capacidade do Estado do que durante a crise anterior, que se tentou resolver com “austeridade expansiva” (que consistia em desvalorização interna, redução de gastos e uma questionável confiança que com isso o crescimento retornaria ao seu curso).
Diante do aumento dos poderes do Estado, a esquerda começou a antecipar o fim do neoliberalismo e o início de uma nova era social-democrata, mas cai no erro comum de considerar a social-democracia exclusivamente como sinônimo de Estado grande e gastos públicos elevados (o biógrafo de Keynes, Robert Skidelsky, queixou-se de que se fala da volta do keynesianismo apenas porque volta o Estado e o gasto público: “muitos dos novos convertidos simplesmente associam Keynes aos déficits orçamentários, quando, de fato, a aritmética keynesiana também pode implicar superávits”).
Muitas vezes, o que prognosticamos é simplesmente o que desejamos que ocorra: os marxistas há mais de cem anos têm falado do fim do capitalismo e do conceito de “capitalismo tardio” (hoje mais irônico e cultural do que econômico) só porque sonham com o seu fim. Acontece algo similar com a ideia de que existirá um aprendizado social após a crise. Geralmente, acreditamos que aprenderemos algo, mas esse algo costuma coincidir com o que já pensávamos antes: o aprendizado, nessa perspectiva, é apenas um processo de reafirmação dos preconceitos e uma maneira de fazer um sermão. Quem costuma prever um aprendizado coletivo, o que realmente deseja é que os outros aprendam algo que ele considera que já sabe.
Isso não significa que o mundo não está mudando. Algumas dessas mudanças serão permanentes. Muitos delas já estavam ocorrendo antes da crise e agora se radicalizarão (a “desglobalização”, a rejeição à austeridade, o nacionalismo do bem-estar). Algumas das medidas mais heterodoxas que os governos estão adotando para suportar a crise provocada pela pandemia já eram reivindicadas, há alguns anos, para resolver alguns problemas estruturais do capitalismo ocidental.
O primeiro orçamento de Boris Johnson, após arrasar nas eleições no ano passado, planejado antes da crise, mas influenciado depois por ela, já inaugura uma época de “chauvinismo do bem-estar” e o fim da austeridade dos anos de Cameron. O primeiro-ministro britânico prometeu que, nesta crise, o governo não cometerá o erro de esquecer as pessoas comuns ao resgatar a economia, como, sim, aconteceu em 2008 com o resgate do setor bancário. O Banco da Inglaterra irá emitir dinheiro para financiar diretamente o governo (não apenas através da compra massiva de dívida), algo que rompe completamente com um consenso econômico de décadas.
Nos Estados Unidos, além da injeção massiva de liquidez nos mercados e programas de estímulo, o governo subsidiou diretamente a população com uma renda básica universal de 1.200 dólares. É um remendo insuficiente para resolver a crise social e de saúde do país, com milhões de cidadãos sem seguro de saúde e com uma seguridade social muito débil e excessivamente contributiva e unida ao desemprego, mas não deixa de ser uma medida heterodoxa. O governo canadense fará algo similar e pagará 2.000 dólares, durante quatro meses, aos trabalhadores que perderam seu emprego por causa da pandemia.
Na Espanha, o ex-ministro da economia, Luis de Guindos, e o ex-responsável pela economia do [partido] Cidadãos, Toni Roldán, concordam com economistas mais progressistas no momento de pedir também uma renda básica universal de caráter temporário (no momento, é possível uma renda mínima temporária de 500 euros para rendas inferiores a 200 euros).
A ideia de uma renda básica universal vinha sendo debatida há anos. Na direita, existem aqueles que a apoiam como substituto de um Estado de bem-estar social mais amplo. Na esquerda, há aqueles que querem dissociar a proteção social do emprego e acabar com a fetichização marxista do trabalho. Se você fica sem trabalho, não empobrece. De repente, a crise da COVID-19 proporciona um experimento natural para o uso da renda básica no futuro.
Outras medidas que os governos estão tomando já são conhecidas, mas foram descartadas décadas atrás. Muitos países buscam evitar que as empresas quebrem e até falam de nacionalizações, como na França, onde existe uma longa tradição de estatismo e dirigismo. Em um recente decreto, o governo de Pedro Sánchez protegeu as empresas espanholas de investidores estrangeiros que desejam aproveitar a crise para adquiri-las. Qualquer investidor estrangeiro terá que antes pedir permissão ao governo (antes bastava informar, após a aquisição). É uma tentação que os governos sempre tiveram. Desta vez, a mudança na legislação será permanente e sobreviverá à crise.
O processo de desglobalização que vivemos nos últimos anos, com um crescente protecionismo e guerras tarifárias, é possível que seja acelerado. Os países priorizarão a autossuficiência e a produção nacional (especialmente de equipamentos médicos e matérias-primas básicas) em detrimento ao comércio aberto, atacando assim o núcleo da globalização e a ideia de vantagem comparativa (que implica que os países devem se especializar na produção daqueles produtos em que são comparativamente mais eficientes).
Muitas dessas medidas são temporárias. Em princípio, o novo papel do Estado é excepcional. Mas, como lembra uma reportagem do Economist, “a história nos indica que, após as crises, os Estados não costumam ceder o terreno que conquistaram”. Muitas das grandes mudanças pelas quais o Estado passou (quase sempre isso significou um aumento de seu tamanho), ao longo da história, surgiram como consequência de uma crise.
Como disse o historiador econômico Larry Neal, a Revolução Industrial “ocorreu justamente durante e como consequência das guerras napoleônicas”, do final do século XVIII e início do século XIX. Países como os Estados Unidos e Canadá introduziram impostos sobre a renda, e os expandiram consideravelmente, durante a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, e permaneceram após a contenda.
É possível que, nas próximas crises, seja pedido mais ao Estado, uma vez que ficou demonstrado que pode fazer mais do que parecia. Se empresas e indivíduos foram diretamente resgatados, por que isso não pode ser feito novamente? A ideia de que há medidas que não podem ser pagas perderá legitimidade. Em muitas ocasiões, sim, podem ser pagas, o problema é que serão muito caras.
Essas mudanças econômicas obviamente têm consequências políticas importantes. A intervenção econômica é também intervenção política. Um estado mais “ativista” é também um estado mais discricional. Aqueles que há anos pedem um papel mais ativo para o Estado (a economista Mariana Mazzucato, por exemplo, fala de um “Estado empreendedor” que tome a iniciativa de investidor, em vez de ir para a zaga), muitas vezes, assumem que o Estado intervirá a seu favor ou será governado por tecnocratas bem-intencionados. Novamente, é a associação ingênua entre social-democracia e Estado grande e virtuoso. Um Estado grande e intervencionista nem sempre é um Estado solidário e eficiente. E um Estado grande também pode ser neoliberal, como recordaram economistas como Adam Tooze e Katharina Pistor.
Todas as mudanças que a COVID-19 está provocando não ocorrem em um vazio. Essa crise ocorre em meio a um debate, que já dura alguns anos, sobre o futuro do sistema e formas mais inclusivas de capitalismo. A pandemia provocou um choque entre duas concepções de capitalismo. Por um lado, um capitalismo “tardio” financeirizado, desigual, altamente endividado e globalizado. Por outro, uma ideia de capitalismo dirigista, autárquico, com economia de guerra e uma função do Estado como benfeitor e grande empresa de seguros.
A “economia do Fyre Festival” (conforme o blog financeiro Alphaville chama a tendência do capitalismo contemporâneo para a extração de valor, a especulação e o fake, em referência ao fiasco do festival Fyre) repentinamente torna-se a política econômica da Segunda Guerra Mundial. Em outras palavras: o capitalismo ocidental pós-moderno está enfrentando uma crise moderna.
Mas também está se vendo um choque entre uma concepção moderna da política, quase hobbesiana e schmittiana (“o soberano é quem decide sobre o estado de exceção”), e uma versão pós-moderna. Se a política era ultimamente uma combinação de guerra cultural, gestão de marca pessoal do líder e tecnocracia nos bastidores, hoje, revela sua face mais crua, a do soberano tomando decisões sobre a vida e a morte dos governados.
Quanto mais a excepcionalidade se alongar, mais difícil será voltar atrás. Ao mesmo tempo, se o estado de exceção perdurar, as medidas excepcionais que os Estados estão tomando para salvar o mundo da pandemia deixarão de parecer excepcionais. O intervencionismo, a economia de guerra e o capitalismo de Estado retornarão quando tivermos que enfrentar as crises climáticas que nos aguardam. Então, assim como hoje, as receitas clássicas não servirão, as divisões ideológicas tradicionais não explicarão nada e as fronteiras entre o que consideramos ortodoxo e heterodoxo vão se esfumaçar.
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A pandemia e o futuro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU