10 Março 2020
"Pânico dos mercados: crise global tende a ser prolongada e profunda. “Classe de Davos” responderá com mais desigualdade e menos democracia. Mas abriu-se espaço para saída oposta – desde que a esquerda esteja disposta a se reinventar", escreve Antonio Martins, jornalista, em artigo publicado por OutrasPalavras, 06-03-2020.
Às vezes, a História, caprichosa, se repete como farsa. Mas em outras ocasiões, oferece aos derrotados uma segunda oportunidade. Em 2008, quando o capitalismo viveu sua maior crise em oito décadas, não houve força (nem principalmente ideias novas) para convertê-la em crítica e transformação. Sem encontrar resistência efetiva, o sistema se recompôs com mais brutalidade. Os banqueiros foram salvos pelos Estados, com montanhas de dinheiro. Assim que esvaziaram os cofres públicos, os super ricos alegaram que havia “desequilíbrios fiscais” e era preciso ceifar… os direitos e o gasto social! Doze anos depois, este arranjo entrou em crise novamente. O coronavírus, como se verá, é apenas a vibração sutil que fez tremer o castelo de cartas do capital financeirizado – tão temível, mas tão frágil. Diante da emergência, os donos do mundo já sinalizaram que querem mais do mesmo: novos sacrifícios das sociedades, impostos sem examinar, debater e muito menos enfrentar as causas dos enormes desequilíbrios. Mas agora, esta “saída” soará como repetição e – ainda mais importante – já há esboço de alternativa.
Há uma semana, Outras Palavras abordou pela primeira vez a relação entre a crise sanitária do coronavírus, os tremores nos mercados financeiros e os riscos de uma grande recessão clássica – com fechamento de empresas, demissões em massa e quebra de bancos. Nesta quarta-feira (4/3), um longo artigo do Financial Times, escrito pelo veterano analista econômico John Plender e reproduzido dois dias depois pelo Valor, expôs em maior detalhe a dramaticidade do problema. É uma espécie de jornalismo de elite e para a elite; informação mantida longe das manchetes e dos noticiários da TV, produzida e publicada para quem controla o poder e o dinheiro. O ponto central da análise é: os mercados financeiros globais estão tão contaminados com dívidas podres quanto há doze anos. A pandemia jogou um grão de areia numa engrenagem que, para se manter viva, precisa girar incessantemente. “Se o vírus continuar a se espalhar, as fragilidades do sistema têm o potencial de desencadear uma nova crise de dívidas”, adverte o texto.
Os dados são eloquentes. A gigantesca pilha das dívidas globais não para de crescer: ela atingiu 253 trilhões de dólares no último trimestre de 2019 e equivale agora a 322% do PIB do planeta. Mas, mais que nos números, o perigo está no processo que levou a este recorde, nas práticas cada vez mais temerárias adotadas pelos bancos em busca de maximizar lucros e em como um pequeno tropeço pode jogar tudo pelos ares.
Plender explica: o sistema financeiro global está encharcado de dinheiro. Depois de salvarem os bancos, entre 2008 e 2009, numa operação que envolveu cerca de 30 trilhões de dólares, os Estados continuaram abastecendo-os com dinheiro farto, numa operação que se tornou conhecida pelo nome hermético de “quantitative easing”, ou “flexibilização quantitativa”. Títulos de dívida pública que só venceriam em anos ou décadas, e estavam em poder dos bancos, são trocados por moeda viva. É o trickle-down, ou “escorrer para baixo” uma maneira grotesca de aquecer as economias paralisadas. Alega-se que, se os muito ricos receberem muito dinheiro, algo acabará pingando em toda a economia. O caráter ultraelitista da lógica está expresso na ilustração abaixo.
A inundação promovida pelos Estados é tanta, prossegue a análise, que os bancos não têm o que fazer com o dinheiro. Como querem ganhar, emprestam-no praticamente em qualquer condição, incorrendo no que se chama de “risco moral” e gerando uma bolha de crédito que pode estourar a qualquer momento. Em 2008, o ponto frágil do sistema era o setor imobiliário. Para permitir que a construção e venda de imóveis continuasse indefinidamente, os bancos ofereceram empréstimos a famílias que não tinham meios para pagá-los e, com a crise, acabaram perdendo suas casas. Agora, o elo débil são as corporações globais.
O gráfico abaixo mostra a evolução do endividamento das empresas norte-americanas. Ele sobe de forma contínua, enquanto porcentagem do PIB (de 15% para 27%), de meados dos anos 1980 até a crise de 2008. Tropeça com a recessão e se reduz a cerca de 20%. Mas rapidamente recupera-se: já ultrapassou os 30%. Os bancos, diz Plander, estão emprestando até para “empresas zumbis”. Enquanto a engenhoca gira, as dívidas renovam-se. Mas e se ela parar? O artigo cita um relatório recente do FMI sobre instabilidade financeira global. Se advir uma recessão, ainda que com apenas metade da potência de 2008, “empresas com dívidas somadas de US$ 19 trilhões [duas vezes o PIB do Brasil] não terão receitas suficientes para pagar o que devem”.
Recessão, ainda não veio. Mas a rápida expansão do coronavírus, com seu potencial de esfriar a economia e paralisar setores muito importantes, causa calafrios. A eclosão de uma pandemia leva as famílias a reduzir gastos – e isso é particularmente grave em tempos de desigualdade crescente. Mesmo nos Estados Unidos, mostra a The Economist, mais de 10% das famílias não teriam hoje como enfrentar uma despesa extra de 400 dólares (R$ 1,8 mil). Diante do risco, cancelam compras. Em muitos países, as aulas estão sendo suspensas, obrigando as mães e pais a permanecer mais tempo em casa. Em dezenas de cidades, o próprio comércio está às moscas. Atividades como a aviação sofrem ainda mais. "Grandes jatos chegam vazios a aeroportos desertos", lamenta o New York Times.
Na época do capitalismo regulado, os governos socorreriam momentaneamente os setores debilitados e a crise se resolveria com o retrocesso natural da doença. Na fase financeirizada, toda solidariedade econômica se evapora. Os mercados avaliam e precificam a cada dia as dívidas. Os especuladores farejam as dificuldades das presas. Companhias em dificuldades são obrigadas a pagar juros crescentes para rolar seus débitos e entram numa espiral que pode facilmente levá-las à inadimplência. E se um grande número de empresas importantes quebrar, a vítima seguinte, na linha de contágio, serão os bancos.
Exuberante como nunca, o capitalismo financeirizado está prestes a expor sua fragilidade também inédita. Apontar o grão de areia como responsável pelos desajustes da engrenagem seria, é claro, insano. Mas como chegamos a este ponto? E como construir, desta vez, uma saída diferente da que se impôs em 2008?
Na política, viver sem horizonte alternativo, engolido pela agenda do adversário, é sempre grave. Mas em momentos agudos, resulta em desastre. Há doze anos, quando uma crise do capitalismo jamais vista desde a Grande Depressão pós-1929 sobreveio, as forças que lutam pela superação do sistema perderam a oportunidade de impor-lhe uma grande derrota. Estavam despreparadas.
Um movimento nascente de crítica ao neoliberalismo, que se expressava por exemplo nos Fóruns Sociais Mundiais, tinha em sua agenda a denúncia do caráter predatório das finanças globais. Mas não soube o que propor, ao conjunto das sociedades, quando em setembro de 2008 o sistema bancário mundial travou e enormes instituições – do banco de investimentos Lehman Brothers à General Motors – começaram a quebrar.
Os defensores do sistema tiveram espaço para liderar a busca de uma saída. A que escolheram moldou o mundo desde então. Resultou num capitalismo muito mais brutal, com vasto ataque aos direitos sociais e à democracia. Terminou abrindo espaço para algo então inexistente ou marginal: os grupos e políticos de ultradireita que hoje governam parte do mundo. A saída conservadora deu-se em duas etapas.
Numa primeira, deflagrada ainda em 2008, montanhas de dinheiro público foram deslocadas para salvar os bancos. O argumento para fazê-lo era sólido: as crises bancárias resultam, de fato, em pânico e devastação. Os depositantes dos bancos perdem suas economias. O travamento do crédito quebra as empresas e provoca demissões em massa – o que por sua vez faz desabar a produção e o consumo, multiplicando as vítimas, numa rápida reação em cadeia. As operações de salvamento foram realizadas com rapidez e espanto – mas sem protestos.
A segunda etapa começou em abril de 2009 e expressou a volta por cima do capital. Construiu-se, na opinião pública, um consenso falso, segundo o qual os Estados estavam quebrados e era necessário “apertar os cintos”. Ocultou-se que a causa das dificuldades fiscais dos governos era precisamente o enorme esforço que haviam feito para salvar os bancos. Atribuiu-se a responsabilidade à suposta “ineficiência” do serviço público e à propensão dos políticos à “gastança”. Foi uma operação ideológica de enormes proporções, que não é possível examinar neste texto.
O que importa, aqui, são seus resultados. Em todo o Ocidente, foram lançadas políticas de “austeridade”. Os tempos variaram: a Europa, onde o Estado de Bem-Estar Social é vasto e generoso, adotou-as ainda em 2009; o Brasil, que era governado pela esquerda e se aproveitava de uma situação internacional mais favorável, só o fez em 2015, no início do segundo mandato de Dilma. Mas o sentido foi sempre o mesmo: reduzir direitos sociais; rebaixar o poder de barganha dos assalariados; criar formas mais selvagens de exploração do trabalho; rebaixar ao máximo os dos Estados com políticas públicas redistributivas.
A atitude da esquerda – tanto a tradicional quanto a “altermundista”, que surgia – foi essencialmente reativa. Diante dos cortes de gastos, eclodiram enormes manifestações em países como Portugal, Espanha, Irlanda, Itália. Em 2011, veio a Primavera Árabe. Movimentos como o dos Indignados, na Espanha, ou o Occupy, nos Estados Unidos, espalharam-se pelo mundo – ramificando mais tarde em explosões como a de 2013, no Brasil. Mas em nenhum caso surgiu uma alternativa capaz de mobilizar as multidões; de avançar além da negação. O desastre mais emblemático ocorreu na Grécia. As políticas de “austeridade” devastaram o país a ponto de quebrar o sistema político e abrir caminho para um partido de esquerda, o Syriza. Ao chegar ao poder, o novo primeiro-ministro, Alexis Tsipras consultou a sociedade, em referendo popular, sobre a manutenção das políticas que sufocavam as maiorias. Venceu o não! A União Europeia aplicou todo seu poder econômico e financeiro para estrangular o país, até fazê-lo capitular. A democracia precisava ser submetida aos diktats dos mercados.
Houve duas consequências principais. A ausência de um horizonte, num ambiente marcado por desigualdade e esvaziamento da democracia, abriu espaço inédito para políticos que defendem o autoritarismo dos “homens fortes”, diante da suposta ineficácia das decisões coletivas. Em 2008, Jair Bolsonaro era um deputado inexpressivo do “baixíssimo clero” no Brasil; Donald Trump, um bilionário de hábitos deploráveis conhecido por apresentar The Apprentice; Rodrigo Duterte, o prefeito de uma cidade média nas Filipinas. No período seguinte, todos eles viveram ascensões meteóricas. As legiões que cultivaram ressentem-se com a piora das condições de vida e o descaso de seus “representantes”; e iludem-se com a ideia de que os problemas do mundo serão resolvidos se cada qual contentar-se com o “lugar que lhe cabe” na ordem social.
Do ponto de vista econômico, a vitória do capital em 2008 inaugurou uma série de triunfos das finanças. Do salvamento dos bancos, passou-se ao “quantitive easing”. As tímidas medidas que, no imediato pós-crise, haviam estabelecido limites para a atividade bancária, foram rapidamente eliminadas. A desigualdade explodiu a ponto de os 500 bilionários mais ricos do planeta auferirem, a cada ano, um aumento de patrimônio equivalente a 545 vezes o orçamento da Organização Mundial de Saúde – a quem caberia enfrentar uma pandemia como a do Coronavírus.
Mas foi precisamente esta ilusão de potência infinita que abriu espaço para a grande lambança de dívidas. Agora, ela ameaça todo sistema.
Como agirão os donos do poder e do dinheiro diante da nova ameaça a seu reinado? Os primeiros sinais sugerem mais do mesmo. Os bancos centrais reduziram as taxas de juros ao longo desta semana. Em todo o mundo, a média é agora 1% ao ano. Fala-se em proteger bancos em dificuldades e comprar ações com dinheiro público, para proteger especuladores em risco. A lógica do trickle-down atinge exuberância máxima. A ultradireita incomoda-se: mais desigualdade pode desencadear revolta popular – o que é fatal para seu projeto. Porém, políticos como Bolsonaro e Trump não têm a menor ideia de como liderar uma saída, diante de uma situação ao mesmo tempo complexa e perigosa.
Do lado da crítica ao capitalismo, e da tentativa de superá-lo, o cenário já não é o mesmo de 2008. A experiência demonstrou que salvar o sistema financeiro com dinheiro público conduz a rebaixar direitos e políticas públicas. E foi se desenvolvendo, ao longo do tempo, uma alternativa concreta às políticas de “resgate”. É embrionária. Conquista multidões e forma maiorias, onde apresentada. Expressa um caminho claramente mais promissor que o apego aos programas dos séculos passados a mera reatividade. Requer, para tornar-se resposta efetiva, mais articulação. A esquerda institucional estará disposta a fazê-lo?
O esboço de novo programa, que está se gestando pouco a pouco, começa com uma proposta nascida muito antes da crise atual: a Renda Básica da Cidadania. Se os Estados podem transferir montanhas de dinheiro aos mercados financeiros, por que não poderiam fazê-lo diretamente aos cidadãos, driblando as perversidades do trickle-down? Numa época em que o desemprego tecnológico é uma ameaça tão evidente, oferecer a cada ser humano, independentemente de trabalho, as condições para uma vida digna, não seria um enorme passo adiante?
Mas embora distribuir dinheiro às pessoas possa ser, nestas condições, um enorme passo adiante, trata-se ainda de uma solução no plano individual. Um avanço muito mais efetivo seria construir sistemas públicos que ultrapassam a própria necessidade da moeda. Num certo sentido, o Comum. Educação, Saúde, Habitação e Transportes expressam hoje parte destacada das necessidades contemporâneas. Foram fortemente mercantilizadas, nas últimas décadas. O capital conhece sua centralidade – por isso quer capturá-las. Porém, por sua própria natureza, fogem à fria lógica do lucro. Um bom serviço médico, ou uma boa escola, não são os que geram mais ganhos aos acionistas, mas os que atendem, com humanidade e sem desperdício, às necessidades das populações. Por isso, estes quatro itens: Saúde, Educação, Transportes e Habitação deveriam ser oferecidos publicamente – em condições de excelência, grátis ou a preços muito módicos. É impossível? Por que, se se pode transferir dezenas de trilhões aos bilionários.
Jeremy Corbyn, que deixará em breve a liderança do Partido Trabalhista britânico, foi o primeiro político relevante internacionalmente a propor a inversão do quantitative easing. Se os Estados podem oferecer tanto dinheiro à aristocracia financeira, perguntou ele em 2017, quanto se propôs a sacudir a burocracia partidária, por que não lançar um social quantitative easing, em favor da Saúde e da Educação públicas. Desde então, a proposta se ampliou.
Em 2019, Alejandria Ocasio-Cortez, parlamentar latina nos Estados Unidos, propôs o Green New Deal, que ao mesmo tempo resgata e dá sentido popular à pauta ambiental. Sim, os Estados precisam deixar a sonolência e agir decisivamente contra o aquecimento global e a devastação da natureza. Mas este movimento não deve resultar em menos ação pública e oferta de ocupações– e, sim, em mais. É preciso um enorme investimento em infraestrutura para, por exemplo, substituir o petróleo por energias solar e eólica; garantir que os trabalhadores das indústrias declinante migrem para as próximas; construir redes ferroviárias em substituição às rodovias; dotar as cidades de redes de transporte público tão eficientes que permitam adotar políticas ativas contra a ditadura do automóvel. Este investimento requererá o esforço de dezenas de milhões de trabalhadores. Por isso, os Estados devem lançar políticas de Emprego Digno Garantido.
Como desdobramento natural do Green New Deal, retomou-se a Teoria Monetária Moderna. Proposta já no início do século XX, ela foi atualizada. Expressa uma negação radical das políticas de “austeridade”. Sustenta que os Estados podem criar moeda nova, a partir de decisões coletivas. Provoca, na verdade, uma nova visão sobre a própria moeda. Esta não é uma mercadoria, mas a expressão de uma relação social baseada essencialmente em confiança. Se as sociedades constroem projetos comuns, então elas podem ser também capazes de usar suas moedas com instrumento para mobilização de recursos em favor destas transformações.
Diz um provérbio árabe que três coisas vão e não voltam: a água que passa, a flecha atirada e a oportunidade perdida. A crise financeira agora aberta contraria e confirma, ao mesmo tempo, o adágio. É como se, em 2008, tivéssemos vivido apenas um ensaio. As políticas adotadas em seguida apenas aprofundaram os desajustes do capitalismo financeirizado. O repique oferece, portanto – para usar metáfora datada – uma espécie de rebobinagem. É como se pudéssemos voltar o filme, para retorná-lo a 2008: à mesma posição em que as políticas atuais foram lançadas, para repensá-las antes que sejam reaplicadas com força redobrada.
Tudo dependerá de duas condições. A esquerda atual saberá reinventar-se? Se não o fizer, surgirão sujeitos sociais e políticos para ocupar o seu lugar?
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Capitalismo em caos! - Instituto Humanitas Unisinos - IHU