“Vivemos num tempo sombrio, em que a vida vale muito pouco e o lucro é tudo”

Foto: Marcelo Camargo/Ag Brasil

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18 Janeiro 2020

Diante de tempos tão belicosos, a luta pela defesa da vida e direitos dos povos tradicionais e do campo se torna ainda mais necessária.

Apenas 15 dias se passaram do ano de 2020 e cinco mortes já ocorreram devido a conflitos agrários na Amazônia. No dia 5 de janeiro dois camponeses quilombolas foram mortos no município de Arari (MA), o conflito entre a comunidade e grileiros que resultou nas mortes já havia sido denunciado pelos trabalhadores anteriormente. Na noite do dia 6 e manhã do dia 7, três indígenas do povo Miranha foram mortos no município de Coari (AM), devido a desavenças entre indígenas e não indígenas.

O aumento da violência e mortes por conflitos não é novidade, o ano de 2019, segundo dados preliminares da Comissão Pastoral da Terra (CPT), foi o maior com número de mortes nos últimos anos. Em relação a lideranças indígenas foram 7 mortes em 2019, contra 2 mortes em 2018. “Atualmente, vivemos o que podemos considerar o fim de um processo de construção democrática e entramos numa era de horrores contra os povos do campo e seus direitos”, conta Paulo Moreira, coordenador da CPT.

Em entrevista ao site Amazônia.org.br, Paulo fala sobre a atuação da CPT no campo, sobre a atual política no país e sobre a grande impunidade de crimes existente no Brasil.

A entrevista é de Nicole Matos, publicada por Amazônia.org, 16-01-2020.

Eis a entrevista.

A violência é muito utilizada contra indígenas, camponeses e pessoas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), como vocês atuam para ajudar essas pessoas a reivindicar os direitos delas?

A CPT atua junto às comunidades do campo, principalmente às que estão sofrendo violências. Uma clara e óbvia constatação é que os povos do campo, na sua diversidade, são quem têm garantido a preservação da nossa natureza, da biodiversidade, das águas e de suas riquezas culturais e religiosas.

O momento atual é de extrema violência contra os trabalhadores do campo e da cidade, com uma intencional e sistemática destruição de direitos elementares, como produção de alimentos, trabalho e salário digno. Como diz um grito do MST, “se o campo não planta, a cidade não janta”, ou seja, cidade e campo são totalmente interligados e impactados.

Por isso, o desmatamento na Amazônia ou no Cerrado afeta diretamente a vida de toda a população e as previsões são catastróficas, baseado na degradação que estamos presenciando. Ouvir os povos do campo, buscar ajudar no fortalecimento de seus modos de vida e de sua organização é prioridade para nós da CPT. Queremos somar à toda luta pela vida e dignidade, contra a cultura das armas e da violência, contra o poder excludente do mercado e de um estado submisso às suas regras.

Segundo o último Conflitos no Campo Brasil divulgado pela CPT o número de indígenas mortos em 2019 foi o maior dos últimos anos, o que influenciou esse aumento de mortes?

Historicamente, os indígenas sofrem no Brasil o peso da morte introduzida pela colonização e a exclusão decorrente de todo esse processo. Há séculos lutam pelos direitos que lhes foram arrancados. O Brasil carrega uma dívida impagável a esses povos e o mínimo que podemos fazer é reconhecer os seus territórios e modos de vida, aliás, exemplo de fraternidade e cuidado com a natureza. A grande maioria de floresta preservada que temos até hoje se deve, também, aos povos indígenas, nossos “guardiões da floresta”.

Atualmente, vivemos o que podemos considerar o fim de um processo de construção democrática e entramos numa era de horrores contra os povos do campo e seus direitos. O atual presidente da República, por diversas vezes, já se pronunciou contrário à demarcação e regularização dos territórios, o que tem sido um combustível muito eficaz para o acirramento da violência, assassinatos e invasões nas diversas regiões do Brasil. Esse governo assumiu a (ir)responsabilidade de ser considerado mundialmente como a maior ameaça à continuidade da vida das populações nativas e tradicionais no Brasil. E não demonstram nenhum escrúpulo nisso, o que é de grande perigo para todo povo brasileiro.

Tem sido consenso entre especialistas que a impunidade é um fator que contribui para o aumento da violência. Por que muitos dos crimes cometidos contra lideranças e povos tradicionais ficam impunes?

Lamentavelmente a impunidade é estrutural em nosso país, considerado o que mais concentra terra no mundo, fruto da desigualdade e injustiça que perpetua. A grilagem, apossamento criminoso de terras, muitas delas públicas, é o modus operandi de centenas de fazendeiros que usam de todo aparato violento necessário para expulsar famílias e se apropriarem de suas terras.

Em muitos casos, isso é facilitado por agentes públicos, o que fortalece as práticas criminosas e fragiliza ainda mais as famílias, uma violência que acontece em vários âmbitos. Quando latifundiários articulam seus crimes contra lideranças e comunidades, possivelmente essa prática vem amparada por uma rede de pessoas ou instâncias que lucram com o crime.

Atualmente, os conflitos ganham contornos muito perigosos, porque são fortalecidos por políticas diretamente ligadas ao incentivo à violência, como a liberação de porte de armas, de qualquer calibre, em toda extensão de uma fazenda, medida que privilegia as fábricas de armas e a prática já comum de contratação de pistoleiros. Outra medida perigosa e violenta é a liberação, desde o início do governo do presidente Jair Bolsonaro, de 502 novos rótulos de agrotóxicos.

O que a política do atual governo influência no histórico desses crimes?

O atual governo já definiu e está implantando sua política para o campo, que é de apoio absoluto à propriedade privada e ao modelo de produção baseado no agronegócio e na exploração até o limite dos bens naturais, como querem o mercado e seus empresários.

Essa política exclui qualquer possibilidade de respeito aos direitos dos povos do campo, por isso o desmantelamento de diversos órgãos, como Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e de diversos programas sociais importantes para a vida no campo, como Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera).

Toda essa manobra aliada aos discursos de ódio que tem pautado a agenda do presidente e seu grupo tem alimentado o preconceito e, consequentemente, as violências contra os povos. Podemos constatar que a partir de 2019, principalmente, a violência tem se pulverizado e ganhado mais crueldade, como foi o caso dos assassinatos dos indígenas Guajajara, no estado do Maranhão. Dezenas de despejos, acompanhado com muita violência aconteceram em 2019, o que demonstra a força do latifúndio no atual governo.

O que faz seres humanos chegar ao ponto de tirar a vida de alguém apenas para caçar, grilar, extrair madeiras e minerais em TIs?

O preconceito contra indígenas, negros e pobres é histórico no Brasil, fruto de um processo colonizador e desumanizador. As elites sempre se empenharam muito por manter as estruturas de perpetuação dessa divisão de classes e violência contra grupos e povos considerados inferiores.

O mercado, o lucro, o poder corrompem muito facilmente as mentes e, por isso, pessoas e grupos não exitam em fazer qualquer coisa para aumentarem suas contas bancárias e suas riquezas usurpadas. A impunidade estrutural garante que quem cometeu os crimes não serão investigados pela justiça ou, no caso dos conflitos no campo, fazendeiros que contratam jagunços para aterrorizarem a vida de famílias que buscam lutar por um pedaço de terra poderão continuar suas vidas normalmente.

Vivemos num tempo sombrio, em que a vida vale muito pouco e o lucro é tudo, é preciso superar, erradicar esse sistema capitalista, baseado na concentração. Por ele, governos têm implantando políticas ecocidas e governado apenas pelo dito “desenvolvimento” excludente e devastador.

Como será a atuação da CPT no ano de 2020 diante do aumento de conflitos e escalada de violências? Quais são as estratégias usadas para lidar com essa situação?

Nossa missão é ser presença solidária juntos aos povos do campo, buscando contribuir nas suas organizações e protagonismos. Acreditamos que não há solução para os problemas que enfrentamos sem a participação direta da sociedade que está sofrendo toda essa exclusão e violência.

Os povos indígenas e quilombolas enfrentam e resistem a séculos a perseguição dos latifundiários, políticos e empresários. As comunidades são as reais detentoras da sabedoria e das estratégias para lidar com os inimigos do povo e destruidores da natureza.

Esses povos querem e precisam da terra para viver e construir cultura, vida, religião, festa, sabedoria, muita produção e economia familiar. Por isso, tanta perseguição de empresários, madeireiros, mineradoras e do próprio estado, porque a vida desse povo é uma afronta à ânsia de dinheiro, poder e destruição que submetem a vida das pessoas e da natureza. Comungamos com os povos nativos que estão gritando ao mundo, “sangue indígena: nenhuma gota a mais”. Juntamo-nos aos povos e suas esperanças de uma outra forma de fazer política, de uma forma de lidar com a vida das pessoas e da natureza.

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