05 Dezembro 2018
Ex-ministro da Saúde no governo Lula (2007-2010), José Gomes Temporão analisa os desafios que o futuro governo enfrentará na Saúde, a partir de 1º de janeiro de 2019. Ele se diz preocupado com a plataforma do governo eleito, pela ausência de uma proposta política clara para o setor da saúde, “algo integrado, aprofundado e de qualidade” e avalia que o que foi apresentado durante a campanha de Jair Bolsonaro (PSL) “é contraditório”.
Na entrevista exclusiva ao Saúde Popular, o médico sanitarista, professor aposentado e pesquisador do Centro de Estudos Estratégicos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), disse que a Saúde Mental, Direitos Reprodutivos e Saúde da Mulher, assim como a Política de Prevenção e Tratamento ao HIV/Aids sofrerão sérios riscos. Consultor da Unitaid – organismo internacional para expansão do acesso aos diagnósticos e tratamentos já conhecidos para o controle do HIV/Aids, da Tuberculose e da Malária em várias partes do mundo – Temporão propõe um pacote de propostas para superar a falta de médicos no País, mas adianta: “saúde não se faz somente com médicos”.
A entrevista é de Cecília Figueiredo, publicada por Brasil de Fato, 01-12-2018.
Saúde Popular: Na condição de médico sanitarista, pesquisador e que esteve por quatro anos no Ministério da Saúde, o que, na sua opinião, um novo ministro da saúde deve receber como principais desafios a partir de 1º de janeiro de 2019?
Nos últimos 30 anos, o país avançou muito quando se observa os principais indicadores de mortalidade infantil, expectativa de vida ao nascer, mortalidade por doença crônica… Em uma série de indicadores houve melhoria expressiva em aumento de cobertura e acesso. E parte importante dessas conquistas teve a ver com o SUS, a política de saúde, mas também com uma série de outras políticas sociais: aumento real de salário-mínimo, o benefício de prestação continuada (BPC) para idosos, políticas no campo habitacional, no emprego. Se você olhar desse ponto de vista, do conjunto de políticas econômicas e sociais, que têm um impacto no que chamamos de determinação social da saúde, eu diria que o próximo ministro da Saúde vai enfrentar uma situação difícil. Nós já temos nos últimos dois anos, durante o governo Temer, uma série de indicadores que mostram que a austeridade na saúde mata.
Já tivemos aumento da mortalidade infantil, a mortalidade de crianças por diarreia, que já tinha desaparecido do país, a cobertura de vacinas que caiu.
O grande desafio para mim é a sustentabilidade econômica do sistema de saúde. Sem a revogação da Emenda Constitucional 95 e sem a retomada de um crescimento real do gasto de saúde, as perspectivas são dramáticas. Temos hoje alguns fenômenos importantes que impactam diretamente a saúde brasileira. É o caso da transição demográfica, o Brasil está envelhecendo de maneira muito rápida, e também da transição epidemiológica. Então, se você tem, de um lado, um conjunto de fenômenos demográficos, epidemiológicos, tecnológicos que pressiona o aumento dos gastos e, do outro, a resposta do Estado é o corte de gastos, evidente que vamos ter um problema grave de tempo de espera, de falta de acesso, de falta de recursos, insumos, e a impossibilidade de incorporar novas tecnologias.
Quais os programas que devem sofrer mais restrições, que correm mais riscos no futuro governo?
Três áreas correm sérios riscos, todas as três com impacto importante na saúde pública.
A primeira é a Saúde Mental. Existe todo um conservadorismo que vem tentando se contrapor ao que foi a abordagem da reforma psiquiátrica brasileira, do movimento antimanicomial, que foi exatamente levar para a comunidade o tratamento do sofrimento mental e das doenças relacionadas ao consumo de álcool e outras drogas, os centros de atenção psicossocial, as residências terapêuticas, o Programa de Volta para Casa, uma série de medidas de grande sucesso que temo que sejam fragilizadas por essa visão conservadora.
A segunda é justamente os direitos sexuais e reprodutivos. De modo mais abrangente, corremos o risco de redução do acesso a métodos contraceptivos e de crescimento das doenças sexualmente transmissíveis na medida em que há uma visão em setores mais radicais ligados ao presidente eleito que negam o espaço da educação sexual fora da família, nas escolas, nas comunidades, na vida social.
O Brasil é um sucesso mundial porque nosso programa [de tratamento] de Aids foi construído a três mãos: universidades, movimentos LGBT e governo; com forte conteúdo de informação e educação e informação.
Creio que tudo isso corre risco e vai ser atacado. A gente pode esperar aumento de sífilis congênita, das doenças sexualmente transmissíveis, porque sexo vai passar a ser um tabu. Ninguém mais vai poder falar de sexo de maneira aberta, franca, que é o que se exige de um programa moderno de saúde pública.
A questão da mulher se coloca como central. O aborto hoje é a terceira causa de morte no Rio de Janeiro, por exemplo; a morte materna é a quarta [causa de morte].
Como o senhor avalia a proposta do futuro ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, de utilizar da Lei do Serviço Militar para obrigar estudantes recém-formados em Medicina a ocupar o lugar dos profissionais cubanos que deixaram o Programa Mais Médicos?
Tenho uma série de críticas a essa visão. Mas, primeiramente, quero destacar que essa parceria das Forças Armadas com a saúde pública existe há muito tempo, mas tem as suas especificidades, a sua própria hierarquia. Ou seja, não me parece que atenda às necessidades do SUS, que é colocar um conjunto de profissionais totalmente integrados à dinâmica da Atenção Primária e inseridos na rede assistencial. Temos que fortalecer, prestigiar e manter a parceria que existe hoje.
Como enfrentar o desafio de fixar médicos em regiões mais remotas? Essa é a questão central que impede de se ter uma saúde de qualidade?
A grande maioria dos médicos brasileiros está concentrada em sete estados, principalmente nas regiões metropolitanas e cidades mais ricas. Esse é um problema que vem de longe. Já nos anos 1970, um sanitarista [Carlos Gentile de Melo] chamava a atenção de que só havia médicos onde havia recursos. Por outro lado, não me parece razoável uma proposta que trate apenas de alocar médicos nesses cerca de 370 municípios de baixo IDH [Índice de Desenvolvimento Humano], de populações indígenas, dispersas ou [que estão] nas periferias dos grandes centros.
Saúde não se faz somente com médicos, se faz com equipes que trabalham de maneira integrada e inseridas numa rede que tem níveis de atenção. É preciso levar um conjunto de profissionais. É absurdo propor uma Carreira de Estado só para médicos, imaginando que levando somente estes profissionais para estas regiões estará resolvendo o problema de saúde. Tem que incluir, no mínimo, médico, enfermeiro, odontólogo [na proposta de carreira], se possível outros profissionais.
Somente a carreira de Estado nesses moldes daria conta ou há outras medidas necessárias?
É um conjunto de cinco propostas. A primeira delas, o Serviço Civil Obrigatório para formandos de várias profissões que tenham estudado em universidades públicas ou privadas financiadas com recursos públicos [como Fies]. Claro, que por se tratar de recém-formados, exige-se um sistema de supervisão, de apoio, mas eu creio que poderia estruturar facilmente, por meio de parcerias e convênios com as universidades.
A segunda proposta é a da criação de uma carreira de Estado multiprofissional, com características e especificidades, que seja atrativa para profissionais que tenham interesse em trabalhar nessas regiões.
A terceira é um certo questionamento a uma revisão das chamadas leis que regulam o exercício de cada uma das profissões. Aí existe um conflito político e uma luta corporativa fazendo com que, por exemplo, enfermeiras numa região cumprindo protocolos de assistência que têm um impacto [positivo] sanitário brutal e não podem porque a Lei do Ato Médico que coloca esse conjunto de atividades como atos privativos do médico.
Por exemplo?
Por exemplo, diagnosticar e tratar pessoas com tuberculose, com malária, com patologias comuns ou outros quadros da atenção primária.
A quarta medida é ampliar a Telemedicina. É muito importante nessas localidades [mais afastadas]. Muitas vezes o médico e os profissionais [da equipe] se sentem inseguros diante de um quadro clínico que eles não têm certeza do diagnóstico ou não dispõem dos recursos tecnológicos necessários para o diagnóstico. O [Programa Nacional] Telessaúde, o apoio remoto de especialistas que podem estar em qualquer lugar do território nacional e em tempo real, via internet, dar apoio a essas equipes. Estou falando de recursos que já existem. São mais de 800 pontos de Telessaúde operando no SUS.
Por fim, uma questão mais ampla - e que é necessária em qualquer contexto - é um esforço de qualificação da infraestrutura. Esses profissionais têm de dispor de um espaço para atendimento, do mínimo de recursos de diagnóstico, de uma rede a quem possam encaminhar para ser tratados adequadamente.
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“Austeridade fiscal mata”, adverte o ex-ministro José Gomes Temporão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU