13 Agosto 2018
O economista Carlos Ocké-Reis explica – com números – como o Estado financia o setor privado na saúde.
A entrevista é de Raquel Torres, publicada por Outra Saúde, 06-08-2018.
Engana-se quem pensa que os planos de saúde são mantidos apenas com os pagamentos dos beneficiários. Sabe aquele valor que as pessoas pagam na mensalidade e que, no fim do ano, deduzem do cálculo do Imposto de Renda? Em 2015 esse montante foi de mais de R$ 8 bilhões. Somando com as deduções das consultas avulsas e procedimentos diversos, com os abatimentos concedidos a empregadores, com as desonerações fiscais a indústria farmacêutica e os hospitais filantrópicos, o valor dos subsídios do Estado ao setor privado na saúde chegou a R$ 32,5 bilhões, só naquele ano.
Ou seja: foram R$ 32,5 bilhões que o Estado deixou de arrecadar, que poderiam ter sido investidos no SUS mas que ajudaram a financiar o setor privado. Para ter uma ideia do quanto isso é significativo, basta lembrar que o orçamento total do Ministério da Saúde naquele ano foi de cerca de R$ 100 bilhões.
Esses valores foram mapeados em um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), e Carlos Ocké-Reis, que é um dos pesquisadores envolvidos, conversou conosco no 12° Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, no Rio, no fim do mês.
Ocké estuda há anos o mercado da saúde suplementar. Além de economista do Ipea, ele é presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde e, nesta entrevista, falou também dos efeitos da Emenda 95, das mudanças na forma de repasse dos recursos federais para estados e municípios e da privatização do SUS pela via da gestão.
O subfinanciamento do SUS é um problema desde a sua origem. Nunca foi solucionado e, agora, temos a cereja do bolo com a Emenda 95. Fale um pouco sobre o cenário atual e sobre as nossas perspectivas.
Infelizmente não é difícil explicar que a introdução da Emenda Constitucional 95 inaugura um momento extremamente perverso do ponto de vista do financiamento da saúde. Se antes a gente vivia um quadro de subfinanciamento crônico do SUS, frente às necessidades da população, depois do golpe e do governo Temer entramos em um período de real sucateamento do SUS. Existe uma diferença muito clara.
Objetivamente, os estudos que já analisaram a situação em 2016 e 2017 identificaram, em termos nominais e reais, a redução de recursos; do mesmo modo, todas as estimativas comparando o modelo de financiamento do SUS antes vigente (pela aplicação da Emenda 29, que garantia a despesa empenhada no ano anterior vezes a variação do PIB) com a Emenda 95 (que congela os investimentos ao patamar de 2017, apenas com a variação da inflação) sinalizaram essa redução de recursos em relação ao PIB e em relação às receitas correntes líquidas. Portanto – inclusive considerando o crescimento populacional – há uma redução do gasto público per capita em saúde.
O gasto federal, embora tenha diminuído sua participação no bolo do gasto público total em saúde, em termos absolutos continua sendo o principal. se há uma redução dos recursos federais, há uma redução dos recursos repassados a estados e municípios que, em função da crise econômica, vêm encontrando constrangimentos em seus orçamentos e na aplicação do mínimo em saúde.
Está claro para a comunidade científica, e está começando a ficar mais claro para os gestores, que essa política de austeridade fiscal piora os indicadores, de fato. Não é uma figura de retórica, infelizmente, como por exemplo a taxa de mortalidade infantil. E isso é muito ruim, porque agrava as condições de saúde e amplia a desigualdade social.
Precisamos de uma política que revogue a Emenda 95 e amplie os recursos financeiros do SUS. E, é claro, sempre preocupada com a qualidade do gasto para termos um incremento ainda maior de recursos para atender as demandas populares da saúde.
A Emenda 95 foi aprovada praticamente no mesmo momento em que se modificou a forma de repasse dos recursos da União para estados e municípios. Gostaria você explicasse essa mudança e de que forma ela se relaciona com a própria EC 95.
Antes os recursos eram repassados por meio de blocos de financiamento, eram seis blocos. Agora houve uma mudança, eles são passados por duas contas, uma de custeio e uma de investimento. Na prática não houve uma mudança tão grande,embora possa garantir uma maior liberdade [para estados e municípios]. Mas no fundo este é um movimento de desregulação. Quando se faz uma descentralização que atomiza ainda mais o sistema, você pode estar dando poder, dentro da economia política do setor, para certas corporações profissionais ou para o setor privado na a definição do destino de alocação dos recursos, ou ainda para prefeitura em detrimento da secretaria de saúde, com seu planejamento de saúde.
Há uma realocação dos programas que vão ser priorizados em função dos interesses econômicos que existem dentro e fora do SUS.
Então há um movimento que desregula e que pode, sobretudo, fragilizar uma pedra fundamental na arquitetura institucional do SUS, que é a atenção primária. Não é à toa que você vê, simultaneamente, o surgimento dos planos populares. Você fragiliza o SUS com a Emenda 95 e amplia esse movimento de privatização e, inclusive, de mercantilização,uma vez que o modelo de oferta é privado. Você deixa de atender o paciente na promoção e na prevenção, retira recursos da atenção primária, vai haver um agravamento das condições de saúde do usuário, ele vai ser mais atendido no setor privado, e os gastos vão se ampliar. Você tem uma realocação dos recursos mas não necessariamente com uma política de austeridade você tem uma racionalidade do ponto de vista dos gastos, isso é uma falácia. Há uma realocação dos programas que vão ser priorizados em função dos interesses econômicos que existem dentro e fora do SUS.
Todo mundo conhece os planos de saúde, mas nem todo mundo se dá conta do quanto eles dependem do Estado, e você estuda essa relação. Pode falar um pouco sobre ela?
No Ipea fizemos um estudo com a Receita Federal, ou seja, analisando dados oficiais e, há alguns anos, estamos trabalhando com esses dados e analisando os subsídios à demanda e à oferta de planos de saúde. No caso da demanda, é o direito que pessoas físicas e jurídicas têm de abater seus gastos com saúde no que vai pagar de imposto. E, no caso da oferta, os incentivos à indústria farmacêutica e os hospitais filantrópicos.
Em 2015, por exemplo, só a rubrica que o Estado deixou de arrecadar com planos de saúde girou em torno de R$ 12,5 bilhões [considerando os abatimentos de pessoas físicas e jurídicas]. Agora comparemos com o Programa Mais Médicos. No ano passado, foi apresentado no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) a destinação de R$ 3,2 bilhões para o Mais Médicos, programa cujos impactos positivos sobre as condições de saúde da população são evidentes.
Lembrando, em 2015, os subsídios aos planos totalizaram 12,5 bilhões. Esse setor é historicamente patrocinado pelo Estado. A rigor, esse mercado foi criado em certa medida, com esses incentivos governamentais, pelo Estado. Mesmo hoje, apesar da hegemonia do capital financeiro, apesar do movimento concentração e centralização que existe nesse mercado – o que ajuda, de certa maneira, a contra-arrestar uma tendência de custos e preços crescentes , essa é a razão do subsídio – esses subsídios são muito importantes para o setor, sobretudo porque os planos repassam suas ineficiências para o consumidor.
Isso explica, inclusive, a taxa abusiva do aumento de preços, junto com a captura da ANS pelo poder econômico, o que, é claro, influencia o desenho da política regulatória. Objetivamente, as operadoras de planos repassam suas ineficiências para os preços. Como os planos empresariais e coletivos representam 80% do mercado, o setor quer a desregulação dos planos individuais, quer aumentar de maneira abusiva o reajuste nos planos individuais. Eles não querem trabalhar em um mercado que seja regulado, porque a regulação é, no fundo, regulação da taxa de lucro.
São recursos que deixam de ser repassados para o SUS. E são usados pelo setor privado, são fundamentais para sua reprodução econômica, para sua lucratividade.
É muito importante que as pessoas compreendam essa questão dos subsídios. São recursos que deixam de ser repassados para o SUS, que poderiam ser usados de maneira mais eficiente e, com certeza, mais equitativa pelo SUS. E são usados pelo setor privado, são fundamentais para sua reprodução econômica, para sua lucratividade. Sem nenhuma contrapartida para os consumidores.
Esses subsídios em nenhum momento fazem parte da política de reajuste fiscal. Sob o ponto de vista programático, temos que ter clareza que esses subsídios não são pequenos e tendem a crescer, porque a Emenda 95 regula a despesa primária, congela o gasto direto. Mas o gasto indireto não. As desonerações não, porque elas são menos suscetíveis a disputas no Congresso Nacional. Então é importante as pessoas começarem a politizar essa discussão. Se fizermos uma comparação, vemos que em 2015 os subsídios representaram um terço dos gastos totais do Ministério em políticas de saúde. Esses gastos totais giraram em torno de R$ 100 bilhões, e os subsídios somaram R$ 32,5 bilhões. Um completo absurdo.
Você fala em captura da ANS. Como esse processo acontece, e como esse tipo de captura poderia ser evitado?
Depois do golpe há esse movimento de desregulação que é acompanhado de entronização, elevação cada vez maior do poder econômico sobre o desenho das políticas públicas. É, curiosamente, o neoliberalismo dando razão a uma concepção marxista de Estado como comitê da burguesia. Ou seja, não há nem mais dentro do aparelho do Estado uma condensação das relações de classe ou das relações sociais onde você pudesse ter um Estado com uma capacidade regulatória substantiva sobre o mercado. Você tem, pelo contrário, um mercado cuja regulação é um verdadeiro laissez-faire regulatório, que, a rigor, visa a garantir a sustentabilidade do mercado. Está completamente de cabeça para baixo.
Uma forma de mudar isso é mudando o Congresso, que a população vote em candidatos comprometidos de fato com a melhoria do SUS e com a regulação do mercado. E que a gente possa estar politicamente organizando e mobilizando a sociedade em defesa do interesse público, e não dos grandes grupos econômicos da área da saúde, porque significa rigorosamente a busca do lucro em detrimento da melhoria da qualidade de vida e das condição de saúde e de vida da população, em especial da população economicamente ativa, que em alguma medida é coberta pelo mercado de planos.
Podemos dizer então que a relação entre o Estado e os planos é uma das faces da privatização do SUS. Outra questão é a privatização pela gestão. Pode falar um pouco sobre a atuação das Organizações Sociais nisso?
O movimento das OS eu gostaria de dividir em dois aspectos. O primeiro, mais geral, é o aspecto da reforma do Estado de 1995. Apesar da Constituição de 1988, foi feita uma reforma administrativa em 1995 que criou os pilares de uma reforma liberal do Estado. Os governos petistas não apresentaram uma contraposição a isso. Há uma lacuna, do ponto de vista teórico e estratégico do campo democrático, popular e socialista, em torno do projeto de Estado que vem a atender as demandas populares no que se refere à dinâmica da sua burocracia, à dinâmica dos seus trabalhadores, à dinâmica dessas orientações de funcionamento da máquina pública. Isso está em aberto.
Outra questão é o movimento de mercantilização do SUS. À medida que o mercado se fortalece, simultaneamente ao movimento de privatização há um movimento de mercantilização do SUS. Que pode aparecer via copagamentos no SUS; pode aparecer quando o setor filantrópico – e nem estou falando da dupla porta de entrada no setor filantrópico – acaba adotando uma estratégia gerencial do mercado, favorecendo um conjunto de procedimentos para ter maior rentabilidade, sem nenhum compromisso com as condições de saúde daquela população; e pode acontecer com a hibridização da gestão. Quando, apesar do financiamento público, a hegemonia da organização dos serviços está se dando na prática pelo mercado, sobretudo quando o mercado está cobrindo a população economicamente ativa, isso significa que esse terceiro setor não vai ser polarizado pelo interesse público, mas pela lógica privada.
De que adianta revogar a Emenda 95 se quem vai definir para onde os recursos vão ser alocados nos municípios forem as OS, sem nenhum compromisso em atender as demandas populares na área da saúde?
Eu particularmente não tenho uma concepção estatizadora da sociedade civil numa perspectiva de construção do socialismo, gostaria de abrir este diálogo com os internautas. Acho que, uma vez que o planejamento democrático predomine sobre o mercado, podem-se admitir cooperativas, autogestão. O problema é que com a hegemonia do neoliberalismo, com mãos de ferro, esse o terceiro setor vai gravitar em torno da lógica de mercado, e vai comer o SUS por dentro. Ou seja, em outras palavras, para deixar claro, o que adianta revogar a Emenda 95 se quem vai definir para onde os recursos vão ser alocados nos municípios forem as OS, sem nenhum compromisso em atender as demandas populares na área da saúde? É um completo contrassenso.
Uma vez que esta agenda ainda está bloqueada no campo democrático popular popular e socialista, é necessário que a gente crie mediações institucionais, mecanismos regulatórios, mecanismos institucionais, para regular esse setor. Nesse processo de acúmulo de forças, pensar em uma reforma estrutural da administração pública que atenda aos interesses da população, e não de interesses de grupos privados.
Poderíamos, em outro momento histórico, em outra correlação de forças, admitir o cooperativismo, a autogestão. Mas com a hegemonia do mercado na organização dos serviços de saúde, isso significa mercantilização, não significa a democratização das relações de propriedade numa perspectiva de transição para o socialismo. Longe disso.
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“Os planos de saúde são historicamente patrocinados pelo Estado”. Entrevista com Carlos Ocké-Reis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU