25 Novembro 2014
Responsáveis pela saúde de 50 milhões de brasileiros, as operadoras de saúde dão sinais de que são elas que não andam saudáveis. O aumento crescente de custos pode tornar o sistema de saúde suplementar insolvente. E foi esse diagnóstico que fez com que os médicos Drauzio Varella e Mauricio Ceschin, presidente da administradora de benefícios Qualicorp e ex-diretor-presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar, se unissem para escrever o livro A Saúde dos Planos de Saúde, que será lançado nesta segunda-feira, 24. Na publicação, eles defendem novos modelos de gestão, que acabem com a cultura do "todos contra todos" e com o desperdício de recursos, e propõem mudanças como a coparticipação do usuário no custeio e a classificação dos beneficiários conforme grupos de risco. Ao Estado, eles detalham as propostas.
A entrevista é de Catia Luz e Fabiana Cambrocoli, publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 23-11-2014.
Eis a entrevista.
Qual é o cenário da saúde suplementar hoje?
Varella: Para mim, o que sempre chamou a atenção é que estão todos contra todos. Os planos de saúde estão contra os usuários porque os usuários acham que o plano tem obrigação de pagar tudo o que for pedido. Quando o contrato não dá direito a determinado serviço, ele vai à Justiça e ela manda fazer. Já os planos de saúde estão contra os médicos porque eles pedem exames demais e atendem os doentes correndo. Os usuários, por sua vez, estão contra os médicos, que atendem depressa demais e estão contra os planos porque pagam mensalidade e, quando ele vai usar, é glosado ou demora muito para ter o serviço de volta. E os médicos estão contra todo mundo porque acham que são explorados e não dão conta de atender o doente também. Então, com um sistema desses, alguma coisa está errada aí, né? Ou muitas coisas estão erradas.
Do ponto de vista dos médicos, quais são os piores problemas?
Varella: A má remuneração. O médico acha que ganha pouco e quer compensar no volume de pacientes. Como você faz se tem de atender uma pessoa depressa e não quer dar a impressão de que atendeu mal? Você pede exame! Os planos de saúde dizem que os médicos pedem exame demais. E é demais mesmo: 30% dos exames de imagem da Amil os pacientes não vão buscar. E olha o que aconteceu: nos últimos 20 anos, os laboratórios que eram empresas pequenas viraram monstros. Esse é o grande negócio da medicina hoje.
E para o paciente fica a impressão de que o médico é bom porque pediu check-up completo...
Ceschin: Nós deslocamos a segurança do paciente para a tecnologia em vez do atendimento médico e hoje a gente paga o preço disso. Você tem uma superprodução de exames e de procedimentos que virou fonte de receita para o sistema.
O Drauzio Varella falou do ponto de vista médico e do ponto de vista do consumidor. E do ponto de vista de gestão? Qual é a maior sangria?
Ceschin: A gestão que existe no sistema é basicamente discutir tabelas de remuneração, tentando diminuir ao máximo os aumentos de custos e repassar isso para o cliente. E, na hora que você repassa, os reajustes tendem a ser crescentes, porque a utilização é crescente, pela mudança epidemiológica, pelo envelhecimento da população, pelo maior acesso à tecnologia. A tendência dessa equação é não fechar. Não existe uma bala de prata para resolver isso. São várias medidas que vão trazer a solução. Um modelo em que você paga o plano e que vai crescendo por faixa etária, em uma população que vai triplicar o número de idosos nos próximos 20 anos, não é sustentável. Hoje, um hospital eficiente aqui no Brasil não se sustenta. Ele tem de produzir consumo de materiais, medicamentos e equipamentos, para criar margem. A maioria dos hospitais no Brasil ganha dinheiro no almoxarifado. Então, a lógica de remuneração tem de inverter. Nos países desenvolvidos, é feita por pacotes fixos, com valores atrelados a diretrizes clínicas já especificadas. O que eu digo é: o indutor do sistema deveria ser a eficiência, mas é o consumo.
No que as operadoras pecam?
Ceschin: O que vejo é que muitas operadoras continuam olhando isso como uma operação financeira e isso é uma prestação de serviço, que tem de ter foco no cliente. Quem é que no Brasil hoje se sente acolhido pelo seu plano de saúde? Eu tenho de ir até ele, tenho de promover o cuidado, tenho de saber em que estágio ele está, como está cuidando da saúde, tenho de ser pró-ativo.
O senhor acha que o desperdício é o principal fator de pressão do custo dos planos de saúde?
Ceschin: Não. Acho que a ausência de uma política de gestão assistencial é um grande problema. Gestão assistencial é: controle de desperdício, mudança de modelo de remuneração, indicadores de qualidade para você fazer avaliação comparativa e movimentar todo o sistema para buscar melhor qualidade, você corresponsabilizar o consumidor. Nós defendemos que os planos devem custar um pouco menos, 15%, 20% menos, e uma parcela disso o usuário paga um pouquinho toda vez que ele utiliza. Isso traz uma consciência, do usuário e do médico. Porque o médico também, sabendo que o usuário está pagando, só vai pedir o necessário.
Varella: Nunca encontro ninguém que diga que a margem de lucro dos planos é menor do que 50%. Eles acham que é um grande negócio, onde as operadoras ganham muito dinheiro, em uma visão distorcida.
E qual é a média dessa margem?
Ceschin: 2% a 3%. Nesse último trimestre, se você olhar o caderno de informações da ANS, que publica isso, a margem está abaixo de 2%.
Em um setor em que todos estão contra todos, o que pode ser feito pela ANS?
Ceschin: No caso do médico, quando você incorpora novos procedimentos no sistema de saúde, vem atrelado a uma diretriz clínica. É óbvio que vão ter exceções, é óbvio que tem pacientes que fogem da regra, mas é preciso começar a utilizar as diretrizes clínicas que são universais para balizar e comparar a conduta médica.
Institutos de defesa do consumidor dizem que os planos ficam presos a uma regra e negam cobertura porque sabem que a maioria dos beneficiários ou não sabe que tem direito de entrar na Justiça ou não tem recurso para isso.
Ceschin: A gente criou um ciclo vicioso que uma atitude errada gera outra, que gera outra, e assim por diante. Ou a gente quebra esse ciclo, ou não saímos dele. Precisamos repactuar um novo acerto para buscar um novo modelo.
Tem por onde começar? Na Qualicorp, o que senhor está fazendo?
Ceschin: Toda a minha grade de produtos neste ano, por exemplo, estamos montando com coparticipação. Estamos ainda criando base de dados para ter produtos e serviços de gestão de saúde, de prevenção, de promoção, de acompanhamento. Como eu tenho a base de dados das operadoras, a gente consegue identificar os portadores da patologia, os doentes crônicos e acompanhá-los. Você tem de olhar os perfis de risco e atuar antes que eles fiquem doentes.
Varella: Acho que há uma outra questão que pode ser potencializada que é a responsabilidade de cada um sobre a própria saúde. Tem cabimento eu, com 70 anos de idade, correr maratona e pagar a mesma coisa do que um gordo, fumante, que come tudo que dão a ele, que não toma o menor cuidado, que não faz revisões, está certo isso? Você bate o carro dez vezes e o outro não bate nenhuma, eles dão um desconto para o outro. Por que não existe isso na saúde? É uma forma de você cobrar das pessoas que elas sejam responsáveis pela própria saúde.
O que dizer aos consumidores para explicar que esse modelo não é sustentável?
Varella: A primeira coisa é que isso vai quebrar, que esse sistema não vai se manter. A população está ficando mais velha, os novos recursos, as novas tecnologias vão sendo incorporadas à medicina. O custo dos remédios hoje é absurdo. Em oncologia, os novos remédios custam no mínimo R$ 8 mil cada um por mês. Se não fossem os planos, não existia.
Ceschin: É para preservar isso que o modelo precisa mudar. É preciso desatrelar essa visão de que quanto mais procedimentos eu faço melhor é o cuidado que eu recebo. Perceber que isso não agrega valor e desemboca só em aumento de custo desnecessário e todo mundo vai pagar a conta.
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Livro vê 'todos contra todos' em planos de saúde - Instituto Humanitas Unisinos - IHU