30 Janeiro 2020
“Evangelizadores casados, em movimento e na escuta do Espírito Santo, mestres da proximidade e da gratuidade. Testemunhas casadas capazes de ser fermento”. Com essas palavras, o Papa Francisco inaugurou o Ano Judiciário diante dos membros do Tribunal Apostólico da Rota Romana, apresentando o matrimônio de Áquila e Priscila, citado nos Atos dos Apóstolos, como um modelo santo da vida matrimonial.
A reportagem é de Cecilia Sepia, publicada por Religión Digital, 25-01-2019. A tradução é do Cepat.
“É disso que nossas paróquias necessitariam, especialmente nas áreas urbanas, onde o pároco e seus colaboradores clericais nunca terão o tempo e a força para alcançar fiéis que, mesmo que se declarem cristãos, permanecem ausentes da frequência aos sacramentos e privados, ou quase privados, do conhecimento de Cristo”.
Áquila e Priscila, afirma o Papa, “evangelizavam sendo mestres da paixão pelo Senhor e pelo Evangelho”, uma paixão do coração que não se traduz em palavras vazias, mas em gestos concretos de proximidade com os irmãos mais necessitados, de acolhida, cuidado e gratuidade, pedras angulares da Reforma do Processo Matrimonial desejada pelo Pontífice. E é nesse ponto que o Santo Padre interroga os juízes presentes e lhes pergunta se estão próximos do coração do povo, se abrem seus corações à gratuidade ou, ao contrário, se deixam levar pelos interesses econômicos e comerciais: “O julgamento de Deus será muito forte nisso”.
Não deixem os noivos à margem da pastoral cristã, para que não seja uma pastoral de elite que se esquece do povo, mas, ao contrário, sejam pastores que ouvem o rebanho, que estão ao seu lado, que aprendem a língua do povo e são capazes de acompanhá-lo nas noites e em sua solidão, suas preocupações e fracassos. Isto é o que o Papa pede aos pastores, bispos, párocos e até mesmo aos juízes, para que amem, como o apóstolo Paulo, os casais missionários dispostos a chegar a lugares, praças, bairros e cidades onde a luz de Cristo ainda não penetra.
... “Casais cristãos que têm a audácia de sacudir do sono, como Áquila e Priscilla fizeram, capazes de ser agentes, não dizemos de modo autônomo, mas cheios de coragem a ponto de despertar os pastores do sono e da letargia, talvez muito quietos e bloqueados pela filosofia do pequeno círculo dos perfeitos. O Senhor veio buscar os pecadores, não os perfeitos”.
Aos pastores, o Papa também confia a tarefa de iluminar e orientar os santos casais cristãos, de dar-lhes visibilidade, de torná-los sujeitos de uma nova capacidade de viver o matrimônio e de protegê-los para que não caiam na rede das ideologias, que minam a solidez do sacramento.
“Devemos estar atentos para que não caiam no perigo do particularismo, ao escolherem viver em grupos seletivos. Ao contrário, devemos estar abertos à universalidade da salvação. Com efeito, embora se agradeça a Deus a presença da Igreja, dos movimentos e associações que não descuidam da formação dos casais cristãos, por outro lado, deve-se afirmar com vigor que a paróquia é, em si mesma, o lugar eclesial de anúncio e de testemunho, porque é nesse contexto territorial que já vivem os casais cristãos, dignos de ser iluminados, que podem ser testemunhas ativas da beleza e do amor conjugal e familiar”.
O Santo Padre insiste em que o mundo de hoje precisa de matrimônios em movimento, mas idealmente partindo das raízes do cristianismo, onde a Igreja “foi despojada de todo o poder humano, foi pobre, humilde, piedosa, oprimida, heroica” e restaurando a primazia do Espírito Santo, o verdadeiro autor e motor da evangelização, que se não invocado, permanece desconhecido e ausente.
Por isso, o Papa pede concretamente que as paróquias sejam vividas como um “território jurídico-salvífico”, uma casa entre casas, uma família de famílias, uma Igreja pobre para os pobres, uma rede de casais entusiasmados e apaixonados pelo Ressuscitado, como Áquila e Priscila, capazes de uma nova revolução de ternura e amor, nunca satisfeitos, nunca fechados em si mesmos.
“Devemos estar convencidos, e quero dizer seguros, de que na Igreja tais matrimônios já são um dom de Deus e não por nosso mérito, pelo fato de que são fruto da ação do Espírito, que nunca abandona a Igreja. O Espírito espera o ardor dos pastores para que não se apague a luz que esses casais espalham nas periferias do mundo”.
De Áquila e Priscila - conclui o Pontífice – ainda comove o testemunho e certamente não o proselitismo, atrai o seu fermento não isolado que “morre para se tornar massa”, porque a Igreja não é e não pode ser feita de alguns poucos. Portanto, o chamado final de Francisco parte justamente do seguinte:
“Queridos juízes da Rota Romana, a obscuridade da fé ou o deserto da fé que suas decisões, já há vinte anos, denunciaram como possível circunstância causal da nulidade do consentimento, me oferecem, como a meu antecessor Papa Bento XVI, a oportunidade de um sério e urgente convite aos filhos da Igreja, na época em que vivemos, para que sintam que todos e cada um são chamados a entregar ao futuro a beleza da família cristã. A Igreja necessita de casais como Áquila e Priscila, que falem e vivam com a autoridade do Batismo, que não consiste em mandar e se fazer ouvir, mas em ser consequentes, ser testemunhas e por isso companheiros de caminho do Senhor”.
Senhor Decano, reverendos prelados auditores, caros oficiais da Rota Romana, é um prazer me encontrar com vocês hoje, por ocasião da inauguração do novo ano judiciário deste Tribunal. Agradeço calorosamente a Sua Excelência, o Decano, pelas nobres palavras que me dirigiu e as sábias intenções metodológicas que formulou.
Gostaria de fazer uma relação com a catequese dada na Audiência Geral, na quarta-feira, 13 de novembro de 2019, oferecendo-lhes, hoje, uma nova reflexão sobre o papel primordial do matrimônio de Áquila e Priscila como modelos de vida matrimonial.
Com efeito, para seguir Jesus, a Igreja deve trabalhar de acordo com três condições validadas pelo próprio Mestre divino: itinerância, disponibilidade e decisão (cf. o Angelus, 30 de junho de 2019). A Igreja, por sua natureza, está em movimento, não permanece tranquila em sua clausura, está aberta a horizontes mais amplos. A Igreja é enviada a levar o Evangelho às ruas e a chegar às periferias humanas e existenciais. Recorda-nos a união dos recém-casados Áquila e Priscilla.
O Espírito Santo quis colocar ao lado do Apóstolo [Paulo] esse admirável exemplo de matrimônio itinerante. Com efeito, tanto nos Atos dos Apóstolos como na descrição de Paulo, nunca estão quietos, mas sempre em constante movimento. E nos perguntamos por que esse modelo de casal itinerante não teve, na pastoral da Igreja, uma identidade própria como cônjuges evangelizadores durante muitos séculos. É disso que nossas paróquias precisariam, especialmente nas áreas urbanas, onde o pároco e seus colaboradores clericais nunca terão o tempo e a força para alcançar fiéis que, mesmo que se declarem cristãos, permanecem ausentes da frequência aos sacramentos e privados, ou quase privados, do conhecimento de Cristo.
Por isso, surpreende, depois de tantos séculos, a imagem moderna desses santos casados em movimento para que Cristo seja conhecido. Evangelizavam sendo mestres da paixão pelo Senhor e pelo Evangelho, uma paixão do coração que se traduz em gestos concretos de proximidade, de proximidade com os irmãos mais necessitados, de acolhida e de cuidado.
No proêmio da reforma do Processo Matrimonial, insisti nas duas pérolas: proximidade e gratuidade. Isso não deve ser esquecido. São Paulo encontrou nesses recém-casados uma maneira de estar perto dos distantes e os amou vivendo com eles por mais de um ano, em Corinto. Muitas vezes, sinto medo diante do julgamento de Deus que teremos sobre essas duas coisas. Ao julgar, estive perto do coração das pessoas? Ao julgar, abri meu coração à gratuidade ou fui tomado pelos interesses comerciais? O julgamento de Deus será muito forte nisso.
Os casais cristãos devem aprender com Áquila e Priscila a se apaixonar por Cristo e a estar perto de suas famílias, muitas vezes privadas da luz da fé, não por sua culpa subjetiva, mas porque permanecem à margem de nossa pastoral: uma pastoral de elite que se esquece do povo.
Como eu gostaria que esse discurso permanecesse não apenas em uma sinfonia de palavras, mas, sim, que impulsionasse, por um lado, os párocos e bispos a buscar amar, como fez o Apóstolo Paulo, os casais como humildes missionários dispostos a chegar a essas praças e palácios de nossa metrópole, onde a luz do Evangelho e a voz de Jesus não vem e não penetra. E, por outro lado, os casais cristãos que têm a audácia de sacudir do sono, como Áquila e Priscilla fizeram, capazes de ser agentes, não dizemos de forma independente, mas certamente cheios de coragem a ponto de despertar os pastores do sono e da letargia, talvez muito quietos e bloqueados pela filosofia do pequeno círculo dos perfeitos. O Senhor veio buscar os pecadores, não os perfeitos.
São Paulo VI, na encíclica Ecclesiam Suam, observou: “É necessário, ainda, antes de falar, ouvir a voz, mais ainda, o coração do homem. Entendê-lo e, na medida do possível, respeitá-lo e saber para onde merece ir” (n. 90). Escuta o coração do homem.
Trata-se, como recomendei aos bispos italianos, de “escutar o rebanho, [...] estar ao lado do povo, atento em aprender sua língua, aproximar-se de cada um com caridade, acompanhá-lo nas noites de sua solidão, de suas angústias e de seus fracassos” (Discurso à Assembleia Geral da CEI, 19 de maio de 2014).
Devemos estar conscientes de que não são os pastores os que inventam, com sua engenhosidade humana - ainda que de boa fé - os santos casais cristãos. São obra do Espírito Santo, que é o protagonista da missão, sempre, e já estão presentes em nossas comunidades territoriais. A nós, os pastores, corresponde iluminá-los, dar-lhes visibilidade, transformá-los em fontes de nova capacidade para viver o matrimônio cristão; e também guardá-los para que não caiam em ideologias. Esses casais, a quem o Espírito certamente segue animando, devem estar dispostos “a sair de si mesmos, a se abrir aos outros”.
Viver a proximidade, o estilo de vida em comum, que transforma toda relação interpessoal em uma experiência de fraternidade” (Catequese, 16 de outubro de 2019). Pensemos na pastoral do catecumenato pré e pós-matrimonial: são esses casais os que devem fazê-lo e avançar.
Devemos estar atentos para que não caiam no perigo do particularismo, escolhendo viver em grupos seletivos. Pelo contrário, é necessário “se abrir à universalidade da salvação” (ibid.). Com efeito, embora se agradeça a Deus a presença da Igreja, dos movimentos e associações que não descuidam da formação dos casais cristãos, por outro lado, deve-se afirmar com vigor que a paróquia é, em si mesma, o lugar eclesial de anúncio e de testemunho, porque é nesse contexto territorial que já vivem os casais cristãos, dignos de ser iluminados, que podem ser testemunhas ativas da beleza e do amor conjugal e familiar (cf. Exortação Apostólica pós-sinodal Amoris Laetitia, 126-130).
Portanto, a ação apostólica das paróquias na Igreja é iluminada pela presença de casais como os do Novo Testamento, descritos por Paulo e Lucas: nunca quietos, sempre em movimento, certamente com filhos, de acordo com o que a iconografia das igrejas orientais nos transmite. Portanto, que os Pastores se deixem iluminar pelo Espírito também hoje, para que esse anúncio de salvação se torne realidade nos casais que, muitas vezes, estão preparados, mas não são chamados. Estão aí.
Hoje, a Igreja precisa de casais em movimento, em todas as partes do mundo, mas idealmente partindo das raízes da Igreja dos primeiros quatro séculos, isto é, das catacumbas, como fez São Paulo VI no final do Concílio, indo às Catacumbas de Domitila. Naquelas catacumbas, o Santo Pontífice disse: “Aqui, o cristianismo teve suas raízes na pobreza, no ostracismo dos poderes estabelecidos, no sofrimento da perseguição injusta e sangrenta. Aqui, a Igreja foi despojada de todo poder humano, foi pobre, foi humilde, foi piedosa, foi oprimida, foi heroica. Aqui, a primazia do Espírito da qual nos fala o Evangelho, teve sua escuridão, quase misteriosa, mas convida à afirmação, a seu incomparável testemunho, a seu martírio” (Homilia, 12 de setembro de 1965).
Caso não se invoque o Espírito e, portanto, permaneça desconhecido e ausente (cf. Homilia em Santa Marta, 9 de maio de 2016) no contexto de nossas Igrejas particulares, nos veremos privados da força que faz dos casais cristãos a alma e a forma da evangelização. Concretamente: viver a paróquia como esse território jurídico-salvífico, porque é “casa entre as casas”, família de famílias (cf. Homilia em Albano, 21 de setembro de 2019); Igreja – ou seja, paróquia - pobre para os pobres, uma rede de casais entusiasmados e apaixonados em sua fé no Ressuscitado, capazes de uma nova revolução da ternura do amor, como Áquila e Priscila, nunca satisfeitos ou desdobrados sobre si.
Pode-se pensar que esses santos nupciais do Novo Testamento não tinham tempo para se mostrar cansados. Assim, de fato, são descritos por Paulo e Lucas, de quem eram companheiros quase indispensáveis, justamente porque não foram chamados por Paulo, mas suscitados pelo Espírito de Jesus. É aqui onde se fundamenta sua dignidade apostólica como casais cristãos. E é o Espírito quem os levantou. Pensemos no momento em que o missionário chega a um lugar: o Espírito Santo já está esperando por ele. Certamente, deixa um pouco perplexo o fato do longo silêncio, nos séculos passados, sobre essas santas figuras da Igreja primitiva.
Convido e exorto a todos os meus irmãos Bispos e Pastores a destacar esses santos esposos da Igreja Primitiva como companheiros fiéis e luminosos dos Pastores daquele tempo, como apoio, hoje, e como exemplo de como os casais cristãos, jovens e anciãos, podem fazer com que o casamento cristão seja sempre fecundo de filhos em Cristo. Devemos estar convencidos, e quero dizer seguros, de que na Igreja tais casamentos já são um dom de Deus e não por mérito nosso, porque são fruto da ação do Espírito, que nunca abandona a Igreja. O Espírito espera o ardor dos Pastores para que não se apague a luz que esses casais difundem nas periferias do mundo (cf. Gaudium et Spes, 4-10).
Permitam-me, pois, renovar o Espírito para que não se resigne a uma Igreja de alguns poucos, quase como se quisesse permanecer só como um fermento isolado, privado da capacidade dos casais do Novo Testamento para se multiplicar na humildade e na obediência ao Espírito. O Espírito que ilumina e é capaz de tornar salvífica a nossa atividade humana e a nossa própria pobreza, é capaz de tornar salvífica toda a nossa atividade, permanecendo convencido de que a Igreja não cresce por proselitismo, mas, sim, por atração - o testemunho dessas pessoas atrai - e garantindo sempre, e em qualquer caso, a assinatura do testemunho.
De Áquila e Priscila não sabemos se morreram mártires, mas certamente são, para nossos casais de hoje, um sinal de martírio, ao menos espiritual, ou seja, que damos testemunho de. Que somos capazes de ser fermento que entra na farinha, de ser fermento na massa, que morre para se tornar massa (cf. Discurso às Associações de Família Católica na Europa, 1 de junho de 2017). Isso é possível hoje, em todas as partes.
Queridos juízes da Rota Romana, as obscuridades da fé ou o deserto da fé que suas decisões, já há vinte anos, denunciaram como possível circunstância causal da nulidade do consentimento, me oferecem, como a meu antecessor Bento XVI (cf. Carta aos fiéis da Rota Romana, nº 1), a possibilidade de que o consentimento seja revogado (14 Ratio procedendi do Motu proprio Mitis Iudex Dominus Iesus), motivo de um sério e urgente convite aos filhos da Igreja na época em que vivemos, para que todos e cada um se sintam chamados a entregar ao futuro a beleza da família cristã.
A Igreja precisa de casais como Áquila e Priscila, que falem e vivam com a autoridade do Batismo, que “não consiste em mandar e se fazer ouvir, mas em ser consequentes, ser testemunhas e, por isso, companheiros de caminho do Senhor” (Homilia em Santa Marta, 14 de janeiro de 2020).
Agradeço ao Senhor por, ainda hoje, ter dado aos filhos da Igreja a coragem e a luz para voltar aos inícios da fé e redescobrir a paixão do casal Áquila e Priscila, que se reconhecem em cada matrimônio celebrado em Cristo Jesus.
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“Não quero uma pastoral de elite que se esqueça do povo”. O apelo do Papa à Rota Romana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU