09 Janeiro 2020
"A crescente influência das mídias sociais na elaboração de narrativas sobre a Igreja Católica faz parte da virtualização, da modificação da realidade e da despersonalização da identidade religiosa na última década".
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos EUA, em artigo publicado em La Croix International, 08-01-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo o teólogo e historiador, "Dois papas" é poderoso porque não captura algo que ocorreu, mas sim algo que ainda está em andamento – um pontificado que foi terminado canonicamente, mas que ainda não entrou realmente para a história".
"Este momento atual de transição – a partir dos anos 2010 que agora terminam e a nova década que acaba de começar –, analisa Massimo Faggioli, pode ser distinguido por um novo imaginário católico da modernidade semelhante aos anos 1920. Há um século, o catolicismo estava lidando com os desafios ideológicos e políticos pós-Primeira Guerra Mundial, com uma transição do dualismo para a dialética". "Estamos entrando nos “Loucos Anos Vinte”, mais uma vez, no século XXI", conclui.
“Nós estamos vivendo em uma era de staccato, não de legato”, escreveu George Gershwin em 1925. “Devemos aceitar isso”, disse ele. O compositor estadunidense, filho de imigrantes russos, falava pela sua época: os anos 1920 e 1930.
Talvez a Igreja Católica, notória por se adaptar bastante tardiamente às revoluções ao longo da história (como as revoluções científica, democrática, sexual e midiática), finalmente tenha chegado à sua própria era de staccato.
É uma era marcada por interrupções cada vez mais perceptíveis em cada transição. Não mais guiada pelo legato, a transição suave e ininterrupta de uma nota para outra, ela agora segue o padrão do staccato, um ritmo interrompido pelo silêncio ou pelo espaço entre as notas.
Na última década, muitos dos laços eclesiais e eclesiásticos do catolicismo se desfizeram. Nos anos 2010, interrupções inegáveis e às vezes até violentas esclareceram várias coisas.
Por exemplo, muitos membros do cristianismo global de hoje, incluindo os católicos, vivem com medo da violência e da perseguição. E a posição da Santa Sé nos assuntos internacionais não pode mais ser assumida como evidente por nenhuma grande potência mundial, como demonstrado pela evolução das relações do papado com os Estados Unidos e a China.
A crise dos abusos sexuais na Igreja Católica é agora de escala global. O envolvimento direto de cardeais e autoridades vaticanas nesses crimes sexuais e em seu encobrimento forçou uma reavaliação do sentido da imunidade papal. Ela estava intacta desde a resolução da “questão romana” entre a queda dos Estados pontifícios em 1870 e a criação do Estado da Cidade do Vaticano em 1929.
A crise dos abusos também se tornou uma parte da luta do cristianismo contra a redefinição massiva, radical e sem precedentes dos papéis de gênero e da sexualidade. Por causa dessa crise, assim como pelos escândalos financeiros envolvendo bispos e cardeais, “a maior vítima da década [até mesmo na Igreja] foi a confiança”.
Isso também se deve ao modo como alguns meios de comunicação relataram e comentaram o pontificado do papa Francisco, mostrando que os problemas da era pós-eclesial e pós-cristã são muito pequenos em comparação com os da era da informação pós-confiança e pós-verdade.
A crescente influência das mídias sociais na elaboração de narrativas sobre a Igreja Católica faz parte da virtualização, da modificação da realidade e da despersonalização da identidade religiosa na última década.
Os anos 2010 também foram a década em que Francisco canonizou três papas que atuaram durante o Concílio Vaticano II (1962-1965) e o período pós-conciliar inicial. Ele declarou formalmente santos João XXIII e João Paulo II em 2014. Depois, reconheceu a santidade de Paulo VI em 2018.
Papas canonizando seus antecessores recentes – de fato, canonizando o próprio papado em si mesmo – remontam ao século XX, algo que nem mesmo “a impossível ironia do Vaticano I” poderia imaginar. E provavelmente é algo do qual a Igreja se afastará, especialmente por causa das revelações contínuas de que papas e cardeais recentes encobriram ou simplesmente descartaram a existência do abuso sexual clerical.
Mas a maior história dos católicos de 2010 ainda não acabou. É a luta contínua da Igreja de Roma para se “reinicializar” institucionalmente cerca de sete anos depois que Bento XVI se tornou o primeiro papa em seis séculos a renunciar voluntariamente ao papado.
O principal precursor desse novo staccato católico é o papa Francisco e a sua própria jornada rumo à eleição como bispo de Roma.
O fluxo interrompido é traçado pelo “noviciado” pré-papal do cardeal Jorge Mario Bergoglio entre 2005 e 2013; o início da transição (ainda inacabada) desencadeada pelo impressionante anúncio de renúncia de Bento em fevereiro de 2013; depois, o conclave, um mês depois, que elegeu Francisco; e, finalmente, a onda de oposição teológica, institucional e política ao seu pontificado, especialmente por parte de certas forças nos EUA.
Não é por acaso que, nesta década, também houve um ressurgimento de filmes ambientados no Vaticano, com foco em papas históricos e semificcionais.
Eles vão de cinebiografias como o da vida anterior de Bergoglio, intitulado “Pode me chamar de Francisco”, a ficções ao estilo Fellini, como o exagerado “The Young Pope”. Eles também incluem outros gêneros, como o documentário comovente de Wim Wenders sobre Francisco, “Um homem de palavra”.
Quem está no auge agora é “Dois papas”, que está exatamente correto ao enquadrar este momento católico entre as confissões mútuas de dois tipos diferentes de catolicismo.
Situado no meio dos conclaves de 2005 e 2013, o filme imagina um conjunto fictício de encontros entre o papa Bento e o cardeal Bergoglio para explicar os eventos históricos reais que ocorreram na Capela Sistina em 2013.
“Dois papas” é poderoso porque não captura algo que ocorreu, mas sim algo que ainda está em andamento – um pontificado que foi terminado canonicamente, mas que ainda não entrou realmente para a história.
A primeira grande mudança dos “Loucos Anos Vinte” da Igreja provavelmente será a reforma da Cúria Romana com a publicação da constituição apostólica Praedicate Evangelium. Essa promete ser a reforma curial mais significativa em pelo menos um século.
Mas o staccato papal vai muito além da Praça de São Pedro. Já está levando a novos modos de se fazer e de ser Igreja que muitos católicos provavelmente nunca imaginaram que fossem possíveis.
Por exemplo, o papa Francisco introduziu o método e a mentalidade da sinodalidade, começando pelas duas assembleias do Sínodo dos Bispos sobre o matrimônio e a família em 2014 e 2015. Esses dois encontros levaram a outras assembleias sinodais – uma sobre os jovens (2018) e a mais recente sobre a região amazônica (2019).
Francisco libertou os ensinamentos da Igreja sobre matrimônio, família e sexualidade de uma camisa de força ideológica e foi além de qualquer um de seus antecessores ao internacionalizar o Colégio dos Cardeais, especialmente em contraste com a re-europeização do catolicismo por Bento XVI.
O papa argentino também reabilitou defensores da teologia da libertação e abriu um novo debate sobre o papel das mulheres na Igreja. Isso foi abordado recentemente no suplemento feminino do jornal do Vaticano, o L’Osservatore Romano, que publicou artigos de teólogas que Roma (e os bispos italianos) consideravam antigamente como personae non gratae.
Este momento atual de transição – a partir dos anos 2010 que agora terminam e a nova década que acaba de começar – pode ser distinguido por um novo imaginário católico da modernidade semelhante aos anos 1920.
Há um século, o catolicismo estava lidando com os desafios ideológicos e políticos pós-Primeira Guerra Mundial, com uma transição do dualismo para a dialética.
“Depois da Grande Guerra, o catolicismo passou a ser imaginado por certas elites culturais e intelectuais não apenas como completamente compatível com a ‘modernidade’, mas, de um modo ainda mais enfático, como a expressão mais verdadeira da ‘modernidade’”, escreveu o jesuíta Stephen Schloesser em seu livro de 2005 intitulado “Jazz Age Catholicism”.
“Suas verdades eternas foram capazes de uma adaptação infinita a circunstâncias em constante mudança”, escreveu o historiador jesuíta estadunidense. “Em uma década que lamentou a dizimação de seus jovens, o catolicismo poderia ser jovem para sempre”, observou.
Estamos entrando nos “Loucos Anos Vinte”, mais uma vez, no século XXI. Como escreveu Gershwin em 1925, “estamos vivendo uma era de staccato, não de legato. Devemos aceitar isso. Mas isso não significa que, a partir dessa expressão muito staccata, algo bonito não possa ter evoluído”.
Até mesmo na vida da Igreja.
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Igreja Católica começa seus próprios “Loucos Anos Vinte”. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU