19 Julho 2019
Marco Politi escreveu um precioso livro com seu recente “La solitudine di Francesco” (A Solidão de Francisco, em tradução livre, Laterza). Ele descreve a Igreja Católica de hoje, partindo do ponto de vista mais importante, o papel do Papa na concretude da ação de Francisco. O livro contém uma documentação muito rica com entrevistas diretas, fatos e documentos. Apresenta uma tese de fundo, a das grandes dificuldades do Papa e de sua consequente solidão, mas a análise não é forçada, descreve os nuances, a complexidade das situações, a geopolítica bem como as realidades dentro da grande "máquina" espiritual, organizacional e clerical do universo católico.
O comentário é de Vittorio Bellavite, coordenador do Noi siamo Chiesa Italia, em artigo publicado no sítio do movimento, 16-07-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
"La solitudine di Francesco"
Marco Politi
Editora Laterza.
Talvez o que falte seja a busca daqueles que apoiam Bergoglio dentro da Igreja, porque já sabíamos dos muitos não-crentes ou da cultura laica que o apreciam, inclusive bastante. É verdade que nem sempre é o consenso que fala mais alto, mas existe; são os grupos básicos engajados no âmbito social, aqueles que vivem uma espiritualidade mais livre, os cristãos em uma condição de minoria, especialmente os "últimos", o povo de Deus fora do circuito clerical, talvez com suas devoções antigas e assim por diante. São muitos. O consenso a Bergoglio existe, usa pouco a mídia social, não está muito acostumado a se organizar, não fala alto, não tem interesses de cargos ou poder de qualquer tipo a defender. Seria oportuno ter a capacidade de ter informações mais gerais, fora da situação italiana.
O livro abre com emocionantes diálogos de Francisco com algumas crianças numa paróquia romana. É um "outro" Deus aquele de que fala Bergoglio, um Deus que ama a todos, crentes e não crentes, cristãos e muçulmanos, que perdoa e compreende, é um Deus que procura as pessoas e não as abandona, que requer um coração capaz de admiração, pouco importa se somos pecadores com fracassos na vida. É o Deus da misericórdia, não aquele das cercas, da prevalência da casuística nas normas morais, do relativismo, é um Deus universal superior aos recintos confessionais, "fiel, solidário, que nunca abandona seus filhos". Politi acerta ao iniciar com o leitmotiv do magistério de Francisco, que é apresentar uma outra face de Deus.
Então doze capítulos descrevem a situação geral. Aparece objetivamente em evidente deterioração, nesta segunda fase do pontificado. Politi parece-me mais realista que pessimista. Na Itália, a nova fase política recente está explicitamente longe de qualquer sensibilidade bergogliana, o mesmo para a linha que prevalecia em 2016 com o advento de Trump em contraste direto com as mensagens de diálogo do papa. É suficiente pensar, entre as tantas situações em piora, a ruptura na Palestina e o relançamento do rearmamento nuclear. Na Europa está se testemunhando o surgimento do soberanismo, dominante no Oriente (com amplo consentimento católico como na Polônia), mas em crescimento em todos os lugares e o prevalecimento na América Latina de regimes com práticas anticristãs. E depois tudo o mais, as desigualdades que aumentam, as migrações, as ofensas ao meio ambiente, etc.
Então 2018 chega, que Politi define como o 11 de setembro de Bergoglio. No centro, a gravíssima questão da pedofilia do clero; parecia que a questão, com atrasos e incertezas, fosse seriamente abordada sem precisar estar sempre no centro de tudo. Não foi assim. Primeiro o doloroso caso do Chile, depois as informações da Pensilvânia e finalmente da Igreja alemã, enquanto vinha o ataque frontal de Mons. Viganò com o pedido de demissão. De fato, tudo ainda está em alto mar. A comissão ad hoc montada por Bergoglio com amplos poderes foi basicamente boicotada pela Cúria e o papa não conseguiu sustentá-la suficientemente. Francisco, por um lado, convida o povo de Deus à mobilização (final de agosto), pelo outro, convoca o encontro internacional de fevereiro no mais alto nível possível, depois dá instruções em maio, mas enquanto isso, a consciência de que essa questão está presente em todos os lugares já se espalhou e que as práticas de acobertamento dos padres pedófilos têm sido a norma há décadas.
As intervenções sobre a estrutura da Cúria que poderiam ser mais eficazes são as de descentralização, quando ele confia aos bispos declarações de nulidade de casamentos, maiores competências em matéria de tradução das Escrituras, e aos confessores via livre controlada para os divorciados recasados aproximarem-se da Eucaristia, depois de dois difíceis sínodos sobre a família. Muitas outras questões vêm à tona, a última destas a das mulheres na Igreja, que Bergoglio enfrenta com reticência e congelando a hipótese do diaconato feminino. Após o início do pontificado de grande impacto, na base e também entre muitos não-crentes, no momento da consolidação tudo se torna difícil e desacelera, o clero é muitas vezes desorientado e, acima de tudo, as forças poderosas dentro da Igreja e fora estão se organizando pensando em um Conclave que não poderá estar muito longe no tempo. Não há mais hesitações, os textos contrários se intensificam, o uso das mídias sociais, a agressividade das intervenções, inconcebíveis no passado. Cardeais e outros saíram a campo.
Müller, depois de ser demitido como prefeito do ex-Santo Ofício, tornou-se o porta-voz da linha contrária, enquanto muitos seguem passivamente, resmungando baixinho. Dom Bettazzi disse: "Francisco agrada às pessoas, menos ao clero e menos ainda aos bispos". São muitos aqueles que continuam como antes, o peso de 35 anos de rigorosa seleção nas nomeações episcopais, sob a insígnia da ortodoxia e sujeição à estrutura vertical, acaba sendo sentido. Como o livro já estava no prelo, Politi não fala sobre o ataque mais duro contra Bergoglio. Foi o das "Notas" de Ratzinger em meados de abril. O papa emérito não abre explicitamente a ofensiva contra Bergoglio, mas seu texto é o momento da mais autêntica contradição com o novo curso. Todas as resistências a Francisco olham para ele. Ratzinger escreve o que pensa desde sempre, depois de sua "conversão" em 1968, mas, precisamente isso testemunha a diversidade radical das duas linhas.
O jogo está aberto e, dito isto, Politi tira conclusões e diz: "Bergoglio está sozinho". Essa observação seria comum "em conversas particulares no mundo eclesial romano e não romano". Mas Politi não diz que ele é um perdedor. Na minha opinião o jogo está aberto. Politi, que tende ao pessimismo (como aqueles que são bergoglianos como ele) também é rico em descrever muito mais do pontificado. Vale a pena lembrar horizontes mais gerais de sua ação, porque servem para entender melhor onde estamos e como é mais oportuno se mover para aqueles que acreditam que estão em uma fase muito particular da história da Igreja.
Francisco é um homem determinado, usufrui de boa saúde, tem uma atividade incansável, mas, acima de tudo, se segura firme psicologicamente e, com base em uma grande fé, contra as agressões. Ele quer continuar e diz: "Eu sempre conservo a paz interior que adquiri na época do Conclave, é um dom do Espírito que veio a mim desde o início do pontificado e que sinto até hoje". "É um jesuíta!", exclama Politi.
Suas escolhas estratégicas permanecem e são aquelas que descrevem seu novo curso. Parece-me que se possa dizer, sem errar, que as ações que dependem diretamente dele e que não precisam fazer acertos com nomeações, cargos, estruturas, prudências para a unidade da Igreja, etc., sejam aquelas que dão o sinal. As intervenções contra o "sistema" de domínio no mundo do Poder, os discursos aos movimentos populares, o posicionamento no lado dos últimos e das periferias, a admirável "Laudato Si", a sua separação do "Ocidente", a denúncia direta dos vícios da cúria e do clericalismo são os pontos firmes de seu testemunho do Evangelho. São aqueles que mais criam contraste mesmo que de maneira menos direta (na Igreja é mais cômodo levantar questões doutrinais do que negar as realidades do plano inclinado da situação do mundo que Francisco coloca sob os olhos de todos.)
O outro aspecto profético de sua ação é a que diz respeito o relacionamento com outras Igrejas cristãs, com o Islã e a China. Desse ponto de vista, suas intervenções em relação às igrejas evangélicas já marcaram um ponto de não retorno: no caso da Ortodoxia, as tentativas não podem ir além daquele pouco que a realidade permite. Com o Islã, a linha foi a mais aberta possível, contribuindo para um reconhecimento explícito de seus valores espirituais e combatendo as demonizações espalhadas em tantas áreas fundamentalistas. Em todo caso, o conjunto da posição internacional do papado permanece o outro fato novo; existe uma clara diferença em relação ao passado, quando tudo passava sob a lente do anticomunismo, do relativismo, da teologia da libertação para ser contrastada.
Além dos problemas de gestão da Igreja, Francisco é um ponto de referência mundial, acima das partes, "voz de quem não tem voz", é uma riqueza para toda a humanidade. Resta argumentar sobre os "processos a serem postos em movimento" que Francisco propõe para que a Igreja se levante e enfrente da melhor forma possível as muitas dificuldades de todos os tipos e para que o caminho sinodal não seja uma simples "voz" da comunicação do Vaticano.
O percurso foi iniciado com a reforma do sínodo dos bispos de outubro passado, os sínodos realizados apresentaram resultados alternados, quase sempre não serviram a nada, na Alemanha está começando o caminho de um sínodo alemão, na Itália fala-se a respeito, por enquanto nada muito concreto. Francisco está apostando sobre este caminho que poderia permitir que as Igrejas locais fossem mais "livres". O próximo sínodo pan-amazônico de outubro é a grande aposta. O documento preparatório sobre meio ambiente, os ministérios e a violência contra as populações indígenas indicou um caminho de grande perspectiva que não deverá ser dificultado pela cúria e que o papa deveria ter a coragem de endossar.
O livro termina com uma conversa com Hans Küng. Ele apoia o Papa Francisco, não sabe até onde pode ir sem quebrar a Igreja, considera que o atual episcopado católico não seria apto a celebrar um novo Concílio reformador porque o corpo episcopal ainda é todo emanação de Wojtyla e de Ratzinger. Idêntica era a posição do card. Martini, porque "nós voltaríamos atrás, em vez de seguir em frente". Provavelmente por essa consciência, os movimentos reformistas como We Are Church - Nós Somos Igreja nunca assumiram a bandeira de um Vaticano III.
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Mas Francisco está sozinho, como diz Marco Politi? Um valioso livro de análise do pontificado. De qualquer forma, Francisco deu início a um novo curso na Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU