14 Junho 2018
"O decrescimento não é uma opção, é uma tendência inexorável da economia global. A degradação ambiental produzida pela atividade econômica está próxima de atingir pontos de ruptura na biosfera e no clima inadministráveis pela atual farmacopeia das políticas econômicas. Um decrescimento administrado é a única forma de evitar o caos socioeconômico do decrescimento forçado que essas rupturas ambientais em breve imporão à humanidade", escreve Luiz Marques, professor livre-docente do Departamento de História do IFCH /Unicamp, coordenador da coleção Palavra da Arte, dedicada às fontes da historiografia artística, e participa com outros colegas do coletivo Crisálida, Crises SocioAmbientais Labor Interdisciplinar Debate & Atualização (crisalida.eco.br), em artigo publicado por Jornal da Unicamp e republicado por EcoDebate, 13-06-2018.
Trata-se do primeiro de uma série de seis artigos sobre as crises socioambientais contemporâneas e suas possíveis soluções ou mitigações numa perspectiva de decrescimento administrado.
Este primeiro artigo introduz e assenta as premissas desta perspectiva.
Um dado interessante, que apenas confirma o que sabemos, mas não deixa de ser alarmante, é o resultado do Global Risk Report 2018. Na última reunião da cúpula empresarial do planeta em Davos foi realizado um survey com mais de 14 mil grandes empresários e dirigentes de empresas que mostra de modo chocante o desinteresse das corporações pelas crises ambientais, malgrado o recorrente blá-blá-blá da “sustentabilidade”.
Os próximos cinco artigos tratarão das seguintes questões:
1. As mudanças climáticas (aquecimento global, ondas de calor, secas, aridez crescente dos solos, incêndios florestais, acidificação oceânica, elevação do nível do mar).
2. A aniquilação da biodiversidade, com remoção e degradação das florestas e consequente defaunação, impulsionadas pela expansão do agronegócio global e por um sistema alimentar baseado no carnivorismo.
3. A crescente escassez de água doce, limpa e acessível.
4. A intoxicação dos organismos pela poluição industrial do ar, do solo e da água.
5. A desigualdade social extrema e a concentração nas mãos de algumas centenas de corporações, e de indivíduos que as controlam, de um poder econômico exorbitante e tentacular, incompatível com as formas tradicionais de representatividade política.
Essa quinta crise é, ao mesmo tempo, a principal causa das quatro precedentes e o principal obstáculo a toda ação política concertada susceptível de desviar as sociedades contemporâneas de sua atual trajetória.
Este é o primeiro de uma série de seis artigos sobre as crises socioambientais contemporâneas e suas possíveis soluções ou mitigações numa perspectiva de decrescimento administrado. Essa perspectiva afigura-se hoje como a mais consequente, talvez a única efetiva para uma sociedade viável. Eis suas premissas básicas:
– Por maiores e mais rápidos que sejam o avanço tecnológico e o aumento da eficiência econômica, só é possível reduzir em prazos hábeis o impacto humano sobre o meio ambiente com abandono do consumo de combustíveis fósseis. Embora seja obviamente impossível nos libertarmos imediatamente de nossa histórica dependência desses combustíveis, abandoná-los ao ritmo de uma economia de guerra deve ser entendido como a principal prioridade energética das sociedades contemporâneas.
– A segunda condição de possibilidade para reduzir em prazos hábeis o impacto humano sobre o meio ambiente é o abandono do consumo de carne. Abandonar esse consumo, ou ao menos reduzi-lo drasticamente, é algo que pode e deve ser iniciado imediatamente. Há várias razões para tanto. A cadeia industrial da carne impõe um sofrimento atroz, moralmente inaceitável, aos animais, além de perigos tangíveis à saúde humana. Segundo a Organização Mundial da Saúde, há evidência limitada de que carne vermelha é cancerígena (grupo 2A) e evidência suficiente (grupo 1) de que carne processada o seja [I]. Além disso, ao ocupar 80% da área das fazendas (farmland) em escala global [II], o aumento imenso dos rebanhos a partir da segunda metade do século XX e sua concentração em grandes propriedades destrói as florestas, ameaça os modos de vida de seus povos tradicionais, avança sobre as pequenas propriedades agrícolas, verdadeiros fornecedores de alimentos, e dizima por supressão de seu habitat as populações dos demais vertebrados. Segundo o Estado das Florestas do Mundo 2016, da FAO, a pecuária é o principal problema ambiental da América Latina e em especial do Brasil: entre 1990 e 2005, 71% do desmatamento na Argentina, Colômbia, Bolívia, Paraguai, Peru, Venezuela e Brasil deveu-se à expansão dos pastos. No Brasil, essa expansão foi responsável no período por mais de 80% do desmatamento da Amazônia brasileira [III]. A atividade entérica, os resíduos dos rebanhos e todo o sistema de produção e distribuição da carne constituem a maior fonte de emissões antropogênicas de metano. Juntos, desmatamento e emissões entéricas de metano constituem a principal fonte de emissões antropogênicas de gases de efeito estufa (GEE) no Brasil, e a segunda fonte dessas emissões planetárias após a queima de combustíveis fósseis.
– A terceira condição de possibilidade para diminuir o impacto da atividade econômica sobre o meio ambiente é através da extinção do apartheid social que fere de morte a sociedade brasileira. E vice-versa: a única forma de promover uma política socialmente inclusiva no Brasil é através da diminuição do impacto ambiental da atividade econômica. Não há divergência, mas sim um círculo virtuoso e uma sinergia entre o social e o ambiental. Como bem afirma o Instituto Socioambiental (ISA), essas duas palavras se escrevem juntas. Uma perspectiva de esquerda para o Brasil e para o mundo é necessariamente socioambiental. O decrescimento administrado nega, portanto, o crescimento do PIB como um fim em si e como um critério de bom desempenho econômico. Mas entende promover uma vigorosa agenda de investimentos de caráter social, não apenas porque esses são os objetivos que definem um programa de esquerda, mas também porque esses investimentos são os únicos que permitem minimização da interferência antrópica sobre o meio ambiente: generalização da infraestrutura hídrica e sanitária, abandono do uso de lenha, construção de uma infraestrutura e de uma cultura do transporte coletivo elétrico e de qualidade de pessoas e mercadorias em detrimento do transporte privado, fomento da atividade agrícola para a alimentação local e sem agrotóxicos, e, em geral, otimização da relação custo ambiental / benefício social.
– O decrescimento não é uma opção, é uma tendência inexorável da economia global. A degradação ambiental produzida pela atividade econômica está próxima de atingir pontos de ruptura na biosfera e no clima inadministráveis pela atual farmacopeia das políticas econômicas. Um decrescimento administrado é a única forma de evitar o caos socioeconômico do decrescimento forçado que essas rupturas ambientais em breve imporão à humanidade. O esgotamento das possibilidades de crescimento já se deixa pressentir. Na última década, as taxas de crescimento econômico têm sido claramente inferiores em relação ao período pós-guerra, quando a economia global, mesmo após as crises do petróleo, ainda crescia entre 3% e 5% ao ano. No período 2008-2011 o crescimento global foi de cerca de 1,5%, com um momento de crescimento negativo pela primeira vez desde 1945. Entre 2011 e 2017, portanto mesmo após a crise de 2008, as 37 economias da OCDE cresceram em média apenas 1,9% ao ano [IV]. Os poucos países que ainda apresentam taxas elevadas de crescimento, como a China e a Índia, são vítimas de poluição letal, ondas de calor extremo igualmente letais, escassez energética e hídrica crescentes, em síntese, estrangulamentos ambientais que imporão em breve também estrangulamentos econômicos.
– As crises socioambientais são transnacionais e só podem ser enfrentadas eficientemente a partir de uma governança global. O decrescimento administrado requer o fim do princípio da soberania nacional absoluta em prol de uma globalização democrática da governança política. Mas propugna, por outro lado, uma radical descentralização administrativa e uma desglobalização econômica, já que a globalização atual baseia-se no controle da economia por oligopólios corporativos e no transporte de longas distâncias, com intenso consumo de petróleo. Isso significa reconstruir as culturas alimentares locais, baseadas nas economias cooperativas, solidárias e comunitárias.
– Essa redefinição qualitativa dos objetivos do crescimento econômico é impossível numa sociedade na qual investimentos e financiamentos estratégicos em setores fundamentais como energia, alimentação, transporte e em toda a linha de produtos com forte potencial de poluição (fertilizantes industriais, agrotóxicos, polímeros, retardantes de chamas, produtos qualificados como perturbadores endócrinos etc) são decididos por agentes econômicos privados, sem levar em conta a urgência e os interesses vitais da sociedade em combater as atuais crises socioambientais. A perspectiva de um decrescimento administrado é, portanto, essencialmente anticorporativa e, em última instância, anticapitalista.
Kevin Anderson, vice-diretor do Tyndall Centre for Climate Change Research, assim resume a situação do planeta: “Estamos conscientemente enveredando em direção a um futuro fracassado” [V]. O quadro presente e futuro da humanidade é, de fato, sombrio. Pesam sobre ela ameaças mais graves e iminentes que quaisquer outras em todo o arco de sua história e pré-história. Cinco crises tomam de assalto seu presente e se avolumam em seu futuro imediato:
1. As mudanças climáticas;
2. A aniquilação da biodiversidade, com remoção e degradação das florestas e consequente defaunação, impulsionadas pela expansão do agronegócio global e por um sistema alimentar baseado no carnivorismo;
3. A crescente escassez de água doce, limpa e acessível;
4. A intoxicação dos organismos pela poluição industrial do ar, do solo e da água;
5. A desigualdade social extrema e a concentração nas mãos de algumas centenas de corporações, e de indivíduos que as controlam, de um poder econômico exorbitante e tentacular, incompatível com as formas tradicionais de representatividade política.
Essa quinta crise é, ao mesmo tempo, a principal causa das quatro precedentes e o principal obstáculo a toda ação política concertada susceptível de desviar as sociedades contemporâneas de sua atual trajetória.
Cada uma dessas crises, isoladamente, é potencialmente catastrófica para a humanidade e para a biosfera. Mas nosso futuro imediato mostra-se tanto mais sombrio porque essas crises agem em sinergia, vale dizer, interagem, reforçam-se e aceleram-se reciprocamente, aumentando assim exponencialmente a probabilidade em prazos cada vez mais próximos de um colapso socioambiental global, capaz de inviabilizar a sobrevivência de qualquer sociedade organizada e mesmo, no limite, de nossa espécie.
No que se refere às quatro crises propriamente ambientais, elas foram de há muito diagnosticadas pela ciência, que, de há muito também, alerta sobre seu perigo crescente e aponta as vias para ao menos mitigá-las. Por certo, esses alertas suscitaram sobressaltos e é claro que a consciência do perigo vem-se traduzindo em iniciativas diplomáticas e em um fervilhar de ações positivas da sociedade civil, sobretudo em âmbito local. Deve-se, antes de mais nada, reconhecer esses esforços e valorizar seus resultados. É forçoso admitir, entretanto, que essas ações, não tendo atingido escala e nem sequer arranhado o poder da rede corporativa, não diminuíram significativamente, no último quarto de século, o ímpeto de nenhum dos cinco processos de degradação ambiental em pauta.
Em 1992, por ocasião da ECO-92, a Union of Concerned Scientists do MIT lançou sua “Advertência dos Cientistas do Mundo à Humanidade”, redigido por Henry W. Kendall e assinado por 1700 cientistas, incluindo a maioria dos laureados com o Prêmio Nobel em diversos campos das ciências. Esse manifesto afirmava [VI]:
“Os seres humanos e o mundo natural estão em rota de colisão. As atividades humanas infligem danos, frequentemente irreversíveis, ao meio ambiente e a recursos naturais críticos. Se não forem revistas, muitas das nossas práticas atuais colocam em sério risco o futuro que desejamos para a sociedade humana e para os reinos das plantas e dos animais, e pode alterar de tal modo a biosfera (the living world) que esta se tornará incapaz de sustentar a vida nos moldes em que a conhecemos”.
Em 2017, fazendo o balanço dos 25 anos transcorridos desde a ECO-92 e desde o lançamento desse manifesto, William J. Ripple, Christopher Wolf, Mauro Galetti, Thomas M Newsome, Mohammed Alamgir, Eileen Crist, Mahmoud I. Mahmoud e William F. Laurance lançaram um manifesto, co-assinado por 15.364 cientistas e intelectuais de 184 países, intitulado “Advertência dos Cientistas do Mundo à Humanidade. Um Segundo Aviso”. Esse “Segundo Aviso”, publicado em dezembro de 2017 na revista BioScience, adverte mais uma vez [VII]:
“Desde 1992, com exceção da estabilização da camada de ozônio estratosférico, a humanidade fracassou em fazer progressos suficientes na resolução geral desses desafios ambientais anunciados, sendo que a maioria deles está piorando de forma alarmante. Especialmente perturbadora é a trajetória atual das mudanças climáticas potencialmente catastróficas, devidas ao aumento dos gases de efeito estufa (GEE) emitidos pela queima de combustíveis fósseis, desmatamento e produção agropecuária – particularmente do gado ruminante para consumo de carne. Além disso, desencadeamos um evento de extinção em massa, o sexto em cerca de 540 milhões de anos, no âmbito do qual muitas formas de vida atuais podem ser aniquiladas ou, ao menos, condenadas à extinção até o final deste século”.
A Figura 1 mostra os nove gráficos apresentados por esse “Segundo Aviso” que quantificam essa piora generalizada.
Figura 1. Tendências ambientais identificadas na advertência dos cientistas para a humanidade de 1992, identificadas ao longo do tempo. Os anos antes e depois desse alerta de 1992 são mostrados como linhas cinza e preta, respectivamente. A Figura 1a mostra as emissões de gases fonte de halogênios, que causam depleção do ozônio estratosférico, pressupondo-se uma taxa de emissão natural constante de 0,11 Mt CFC-11-equivalente por ano. No painel (c), as capturas marinhas têm caído desde meados da década de 1990, mas, ao mesmo tempo, o esforço de pesca vem subindo. O índice de abundância de vertebrados em (f) foi ajustado por viés taxonômico e geográfico, mas incorpora relativamente poucos dados de países em desenvolvimento, onde há o menor número de estudos; entre 1970 e 2012, os vertebrados diminuíram 58%, com declínio das populações de água doce, marinha e terrestre de 81%, 36% e 35%, respectivamente. Em (h) mostram-se médias de cinco anos. Em (i), o gado ruminante refere-se à criação de gado bovino, ovino, caprino e bufalino. Observe-se que os eixos y não começam em zero, e é importante atentar para o intervalo entre os dados ao interpretar cada gráfico. A variação percentual, desde 1992, para as variáveis em cada painel, inclui (a) -68,1%, (b) -26,1%, (c) -6,4%, (d) +75,3%, (e) -2,8%, (f ) -28,9%, (g) +62,1%, (h) +167,6%, (i) humanos: +35,5%; gado ruminante +20,5%. Fonte: William J. Ripple et al., “World Scientists’ Warning to Humanity: A Second Notice”. BioScience, 67, 12, 13/XI/2017, pp. 1026-1028.
Como se vê, os Acordos internacionais e as ações mitigatórias nesses 25 anos (1992 – 2017) não foram capazes de atingir praticamente nenhum dos objetivos ambientais propostos: reduzir as concentrações atmosféricas de gases de efeito estufa (GEE), diminuir o desmatamento, reverter o declínio da biodiversidade, aliviar a escassez dos recursos hídricos e amenizar a poluição. Isso se explica pelo fato de que essas ações locais e esses Acordos internacionais não foram e não são de natureza a atacar as causas, a envergadura e a dinâmica dessas crises globais. A realidade é que todos os índices fundamentais planetários de mensuração das quatro crises ambientais acima elencadas continuam a evoluir em sentido negativo. Pior: num ritmo cada vez mais rápido. Tão mais rápido, que um número crescente de análises situam a ultrapassagem de pontos críticos nos equilíbrios do clima, das florestas tropicais e da disponibilidade hídrica já no próximo decênio. Essas ultrapassagens colocarão nosso país e outras muitas regiões do planeta não já numa zona de risco crescente, como afirma o Stockholm Resilience Centre [VIII], mas numa zona de irreversibilidade na trajetória em curso de colapso socioambiental.
Muitos – de fato, a maioria esmagadora – ainda duvidam que essas crises representem um perigo mortal para nossas sociedades e talvez para nossa espécie. Entre eles há, obviamente, os representantes das corporações que não se importam com essas crises ou mesmo fomentam a dúvida e o descrédito da ciência porque seus lucros dependem da manutenção do status quo [IX]. Em 2017, o Global Risk Report 2018 de Davos entrevistou 14.375 executivos de 148 economias e reteve 12.775 respostas de 133 economias. Esse survey, intitulado “Os riscos globais mais preocupantes para os negócios” (Global Risk of Highest Concern for Doing Business [X]) classifica os riscos em cinco categorias: a. econômico (8 riscos); b. geopolítico (5 riscos); c. ambiental (5 riscos); d. social (6 riscos); e. tecnológico (5 riscos). Entre os 29 riscos propostos, pertencentes a essas cinco categorias, os entrevistados de Davos deviam selecionar os cinco riscos globais mais preocupantes para os negócios em seu país nos próximos 10 anos. Os resultados mostram claramente o descaso desses líderes corporativos pelas crises ambientais. O primeiro risco ambiental selecionado por eles (eventos meteorológicos extremos) aparece apenas em 18º lugar, já que somente 12,9% deles incluíram-no entre os cinco mais preocupantes. O risco mudanças climáticas aparece em 21º lugar, já que apenas 11,4% dos dirigentes de empresas o incluíram entre os cinco riscos mais preocupantes, e o risco de um colapso da biodiversidade aparece em 26º lugar, apontado por apenas 6,6% dos entrevistados entre os cinco riscos mais preocupantes. Os dados são claros: para os que controlam as alavancas da economia mundial, as crises ambientais permanecem entre as últimas de suas preocupações, malgrado sua verborragia sobre a “sustentabilidade”. A Figura 2 oferece uma visão circunstanciada desse desinteresse corporativo pelas crises ambientais.
Figura 2 – 29 Riscos globais mais preocupantes para os negócios e porcentagem dos entrevistados que incluem cada um desses 29 itens entre os cinco riscos mais preocupantes Fonte: Executive Opinion Survey 2017. World Economic Forum, Davos
Esses resultados, espero, liquidam definitivamente a ilusão, ainda nutrida por muitos, de que a rede corporativa venha a ser parte das soluções exigidas pelas crises ambientais de nosso tempo. Nela reside o problema, não a solução.
Ocorre que a maioria das pessoas negam a ciência ou dela duvidam, digamos, “em boa fé”, ou seja, não por defenderem interesses econômicos. Essa maioria duvida apenas porque tem dificuldade de entender, após milênios de relativa estabilidade climática, que a nova época histórico-geológica iniciada em meados do século XX, o Antropoceno, nos introduz numa zona de desestabilização climática, já provavelmente irreversível, do sistema Terra. Como bem afirma Owen Gaffney, do Stockholm Resilience Centre, “as sociedades industriais receberam da enganosa estabilidade do Holoceno, os últimos 11.700 anos, um falso senso de segurança. Agora, ejetamos a Terra de seu envelope interglacial e estamos adentrando território não mapeado” [XI]. Com efeito, como mostra a Figura 3, o último degelo com o qual se abre a época do Holoceno (11.700 AP – 1950 circa), não apenas elevou a temperatura média superficial do planeta entre 3,5 oC e 4 oC até meados do século XX, mas a manteve numa faixa de variação bastante estreita: 0,5 oC para baixo e para cima em relação à média do período. Essa relativa estabilidade climática criou a chamada zona de segurança climática que permitiu a agricultura e o florescimento de toda civilização.
Figura 3 – Evolução da temperatura média superficial do planeta após a deglaciação da última Idade do Gelo (curva verde, 20.000 – 12.000 AP) com variação negativa e positiva máxima de 0,5 oC durante o Holoceno (curva azul, 11.700 AP – 1950 circa). A curva azul é sucedida por uma reta em vermelho que mostra a trajetória de aquecimento global do Antropoceno, com expectativa, mantidas as condições presentes, de um aquecimento catastrófico superior a 3 oC em relação ao período pré-industrial no decorrer do século XXI. Fonte: Shaun A. Marcott et al. “A Reconstruction of Regional and Global Temperature for the Past 11,300 Years”. Science, 339, 8/III/2013.
Hoje já ultrapassamos 1,1 oC em relação ao período pré-industrial e sabemos ser, doravante, uma impossibilidade sociofísica[xii] manter o aquecimento global abaixo do perigoso limiar de mais 2 oC. O maior desafio político de nossos dias é não ultrapassar o nível catastrófico de um aquecimento médio global superior a 3 oC.
Mas esse desafio não inquieta sobremaneira outra “família” de negacionistas da ciência. É a família dos que não negam o perigo, mas, igualmente iludidos por esse “falso senso de segurança” de que fala Owen Gaffney, escolhem acreditar que ele não é iminente e que é, portanto, possível superá-lo, regulando habilmente o mercado com boas políticas econômicas, tais como fim dos subsídios aos combustíveis fósseis, impostos sobre as emissões de carbono (carbon tax), recompensas às empresas ambientalmente “virtuosas” etc. Em seu entender não seria necessário, nem benéfico e nem mesmo possível (dado não haver, para eles, alternativa ao capitalismo global), operar mudanças estruturais na economia global, a começar pelo abandono dos princípios básicos que regem o comportamento dos “mercados”: a acumulação de capital, a globalização da economia e o crescimento constante do consumo de energia e de bens (apropriados sobretudo pelos 10% mais ricos da humanidade). Acreditam eles que, corrigidas suas “distorções”, mercados bem geridos por economistas ambientalistas se tornariam capazes: a. de promover saltos sucessivos de eficiência energética, com simultânea diminuição da pressão humana sobre o meio ambiente (decoupling) e b. uma rápida transição da matriz fóssil para energias renováveis e de baixo carbono, condição primeira de possibilidade de qualquer afrontamento das ameaças em pauta.
Essas e outras tentativas de negar ou relativizar a gravidade extrema e o perigo iminente das crises ambientais atuais são frontalmente contraditas pela simples observação desarmada dos fatos, pelos números e pelos enunciados básicos do consenso científico internacional. Basta um exame rápido das evidências disponíveis sobre a evolução histórica e as projeções para os próximos decênios das crises acima evocadas para percebermos o infundado dessas tentativas.
Diante da inadiável necessidade de mudanças estruturais na economia global, toda tentativa de protelar uma reação política à altura do que a gravidade extrema de nossa situação impõe constitui-se imediatamente como parte do problema.
Próximo artigo da série: 1. Mudanças climáticas
Referências:
[I] Cf. “Q&A on the carcinogenicity of the consumption of red meat and processed meat”. OMS, outubro de 2015..
[II] Cf. J. Poore, T. Nemecek, “Reducing food’s environmental impacts through producers and consumers”. Science, 1/VI/2018.
[III] Cf. “Pecuária é responsável por mais de 80% do desmatamento no Brasil”. Amazônia. Notícia e Informação, 6/IX/2016.
[IV] Veja-se OECD. Stat https://stats.oecd.org/index.aspx?queryid=60703.
[V] “We are knowingly meandering into a failed future”. Citado por Terry Macalister, “Complacency threatens climate change action”. Climate News Network, 6/IV/2017.
[VI] Cf. <http://www.ucsusa.org/about/1992-world-scientists.html>.
[VII] Veja-se a respeito, L. Marques, “Por uma Universidade implicada na agenda de nosso tempo”. Jornal da Unicamp, 14/VIII/2017.
[VIII] Cf. W. Steffen et al., “Planetary boundaries: Guiding human development on a changing planet”. Science, 15/I/2015.
[IX] Veja-se a respeito Erik M. Conway & Naomi Oreskes, Merchants of doubt. How a Handful of Scientists Obscured the Truth on Issues from Tobacco Smoke to Global Warming. Nova York, 2010.
[XI] Cf. O. Gaffney, “Anthropocene now”. New Scientist, 22/IV/2017, pp. 24-25.
[XII] Cf. L. Marques, “Tarde demais para 3 oC?” Jornal da Unicamp, 21/XI/2017.
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Decrescimento. Uma perspectiva de esquerda sobre as crises socioambientais, parte 1/6 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU