08 Julho 2016
A crise chegou. Foi arrasadora. Os jornais se encheram de gente que perdeu tudo: o lar, o trabalho, a família. É impossível encontrar felicidade em situações assim e em tantos dramas que povoam a mídia todo dia. Mas há uma tendência em alta que defende abandonar um ritmo exaustivo de trabalho para desfrutar do lazer acima do dinheiro e das coisas materiais. Não tem nada a ver com ficar na miséria. Faz parte do chamado decrescimento, uma corrente que abrange uma mudança total de paradigma político, econômico e social. Não se trata de tornar-se um asceta: os teóricos defendem uma prosperidade sustentável e um melhor uso de nosso tempo no qual o consumo não seja o elemento primordial. O objetivo é alcançar a felicidade em harmonia com o ambiente.
A reportagem é de Alberto G. Palomo, publicada por El País, 07-07-2016.
Não é nada novo. Apesar de agora haver histórias de superação e autodescoberta baseadas na máxima do “dejar todo y largarse, ¡qué maravilla!” , cantada por Silvio Rodríguez, as teorias sobre as vantagens de abandonar o supérfluo existem há muito tempo. Antes, inclusive, que o pensador francês Serge Latouche as popularizasse com a publicação do artigo La Décroissance no início do século XX. Vêm desde o famoso livro/manual Walden, de Henry David Thoreau, que dizia em 1854 coisas como estas:
“A maioria dos homens está tão preocupada com os cuidados fáticos e as tarefas rudes mas supérfluas da vida que não consegue colher seus melhores frutos. Na realidade, o homem trabalhador e esforçado carece de tempo livre para desenvolver uma vida cotidiana íntegra e pessoal, sequer pode manter as relações mais viris com outros homens, pois seu trabalho se depreciaria no mercado. Não tem tempo de ser outra coisa além de uma máquina”.
A partir deste testemunho, a editora Errata Naturae acaba de recuperar o original de A country year, uma mistura de diário pessoal e ensaio publicado por Sue Hubbell na década de setenta do século passado. A escritora norte-americana (Michigan, 1935) deixou seu emprego de bibliotecária para se dedicar à apicultura nas montanhas do Missouri. Assim, afirma, teria menos dinheiro, mas mais tempo livre e menos pesos com os quais se preocupar. Sua renda menor, além disso, representaria menos impostos levados por “um governo que amparava a injustificada guerra do Vietnã”.
O que aconteceu? “Na verdade, não larguei tudo”, esclarece previamente Hubbell por e-mail, “mas levei comigo um conjunto de competências e habilidades para confiar em mim mesma e amar o lugar. Mas suponho que abandonar um emprego e tudo o mais me faz entrar, de certa forma, na categoria de pessoa em risco”. Sua passagem pela natureza a ensinou a “observar como sobreviviam os animais a cada momento e afiar sua compreensão do meio ambiente”, mas sobretudo lhe fez gozar de grandes momentos de felicidade que ela detalha no livro em descrições da paisagem ou em passagens cotidianas. “Nunca me interessei por dispositivos tecnológicos e não sei como se pode ser vítima desse afã por consumir tanto”, acrescenta diante da pergunta sobre se vale a pena adquirir objetos materiais. “O maior problema não é esse, mas que muitos seres humanos ainda demonstram intolerância em relação ao outro; são violentos, cruéis e tentam prejudicar os que estão em volta”, afirma.
Prosperidade versus crescimento
Julio García Camarero concorda com ela. O engenheiro técnico florestal passou mais de mil páginas teorizando sobre o dano do crescimento disparatado, gerador da “crise terminal”. No ano passado publicou um livro que qualificava o decrescimento de “infeliz”. “Há dois decrescimentos opostos e, para que não haja ambiguidade, é preciso dar-lhes um sobrenome. Um é o infeliz, de 99% da população, ligado ao crescimento de uma oligarquia, o outro 1% da população, e que provém do desemprego, dos cortes para a maioria etc. Há outro, muito diferente, que consiste em consumir menos, em um desenvolvimento mais humano. Esse é o feliz”, pondera.
“Há quem confunda progresso com crescimento, tanto em termos pessoais como materiais. Gosto de falar de prosperidade, que se ajusta mais ao verdadeiro progresso e não inclui a acumulação de bens e a criação de pseudonecessidades”, acrescenta. “O decrescimento feliz passa por abastecer-se de uma agricultura ecológica, despojar-se da escravidão e alcançar qualidade de vida com o lazer e as relações de amizade”, conclui quem, aos 80 anos, investe sua aposentadoria em assistir assembleias de bairro, colaborar com hortas urbanas ou visitar filhos e netos em carros compartilhados.
Seus postulados, se olharmos para trás, se adivinham nas linhas do famoso Direito à preguiça, de Paul Lafargue, que — a partir de seu ativismo marcante 8— assevera: “Uma estranha loucura se apoderou das classes trabalhadoras dos países dominados pela civilização capitalista. Esta loucura traz como resultado as misérias individuais e sociais que, há séculos, torturam a triste humanidade. Esta loucura é o amor ao trabalho, a paixão moribunda por ele, levada ao esgotamento das forças vitais do indivíduo e de seus filhos. Entorpecidos por seu vício, os trabalhadores não conseguiram se elevar à compreensão do fato de que, para que haja trabalho para todos, era necessário racioná-lo como a água em um barco à deriva”.
Seus defensores consideram o decrescimento algo imprescindível para o bem-estar do planeta. É o que propõe o veterinário e doutor em Administração de Empresas Gustavo Duch em seu livro Lo que hay que tragar (Los livros del lince, 2010): “De alguma forma que me escapa, há um pensamento dominante que relaciona diretamente crescimento econômico (mais produção, mais consumo) com desenvolvimento, com prosperidade e até chegam a considerá-lo um remédio contra as desigualdades. O decrescimento não é uma proposta que podemos ou não adotar, é uma situação que cedo ou tarde chegará e que devemos assumir. A crise econômica generalizada poderia ser interpretada como um primeiro sinal do colapso ou, ao contrário, se agimos de acordo, poderia se tornar um ponto de inflexão, em um momento de reflexão obrigatória e em uma oportunidade histórica para antecipar-se e evitar que o decrescimento acabe constituindo-se em um fardo pesado. Partindo dessas premissas, as medidas frente à crise não se concentrariam no aumento da produtividade — receita aplicada pela maioria dos governos — mas em analisar os modos de produção e hábitos de consumo”.
Mais tempo é mais riqueza
Trata-se de pensar em um crescimento sustentável que não seja medido exclusivamente por índices econômicos e que nos ajude a viver com tranquilidade, sem angústias, e reforçando os gostos de cada um, definitivamente. Nada a ver com as frases positivas de gurus que perderam tudo e se reencontraram graças à pobreza. “Sequer os milionários conseguem comprar dias de mais de 24 horas.
Nesse sentido, o tempo é muito democrático, porque entre um e outro amanhecer todos dispomos da mesma quantidade de horas, do mesmo capital de tempo. E, como todas as economias, a do tempo é uma economia política”, analisa María Ángeles Durán, pesquisadora do Centro de Ciências Humanas e Sociais do CSIC, em seu estudo El valor del tiempo.
Trata-se portanto de possuir bens relacionais, como relembra em Menos es más (Los libros del lince, 2009) o divulgador francês Nicolas Ridoux. “O lugar essencial de nossas vidas está ocupado pelo consumo. O tempo acumulado em nossas decisões de compra, a gestão das mesmas e de suas consequências, é considerável, em detrimento do tempo dedicado a uma verdadeira plenitude. O decrescimento, pela humildade e a sobriedade que representa, poderia oferecer soluções, ao mesmo tempo coletivas e individuais, aos grandes desafios de nossa época, assim como alegria de viver”, sentencia.
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Se desfazer de tudo não torna você mais feliz, e sim mais pobre. O decrescimento positivo existe. E não tem nada a ver com ficar sem casa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU