22 Outubro 2017
Em seus escritos Michel Foucault abandonou o conceito de guerra e passou a se concentrar nas terminologias governamentalidade e biopolítica. Contudo, observa o sociólogo e filósofo italiano Maurizio Lazzarato, precisamos repensar o espaço da guerra em nosso tempo. A biopolítica é uma nova forma de entender o poder que era tido como repressão. O poder não reprime apenas, mas estimula, solicita e produz. Essa novidade apontada por Foucault é notável, mas se nos contentarmos com esse aspecto, somente, fica muito limitada a realidade do poder. E por quê? Porque não se leva em conta o aspecto da micropolítica. Se tomarmos a história do capitalismo se torna impossível separar a promoção da vida e a promoção da sua destruição. Lembremos, ainda, que o pensamento de Foucault é centrado na Europa e, apesar de apresentar percepções magníficas, possui inúmeros limites. “Ele fala duas ou três vezes da colonização, apenas, e de forma bastante breve. A colonização é a forma de organizar a destruição.”
As afirmações foram feitas por Lazzarato no contexto de sua conferência A era do homem endividado, em 17-09-2017, na programação do IX Colóquio Internacional IHU – A Biopolítica como teorema da Bioética. O evento é uma realização do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Assista à conferência na íntegra.
Na verdade, o poder soberano nunca desapareceu. A história de que passamos de uma sociedade da guerra para outra da governamentalidade não é verdadeira. Isso está errado, assegura. Um estágio de desenvolvimento não apaga o outro; o poder soberano se mantem firme e forte. Se o Estado tem o poder sobre a vida, também possui o poder de destruí-la. “Necropolítica e biopolítica são inseparáveis”.
Desde que o neoliberalismo se consolidou, foi imposta como palavra de ordem a divisão de raças, classes e sexos, que ressurgem de forma violenta. Estamos caminhando para situações nas quais isso se exacerba e se transforma em guerra. No centro está o problema de moeda, a política da dívida, conforme estudos empreendidos por Lazzarato há anos, sistematicamente.
A partir de 2008, e na verdade desde a queda do muro de Berlim, precisamos admitir que há uma proliferação de muros. Essas divisões são acentuadas pelo neoliberalismo. Em 2018 a posição contra os refugiados será decisiva para os políticos que quiserem se eleger, levando em consideração o isolamento crescente dos países, basta lembrarmos do fenômeno Trump, do Brexit e do movimento separatista da Catalunha, na Espanha, para citarmos apenas alguns exemplos. “Não podemos permanecer fixados a uma visão daquilo que Foucault diz sobre a biopolítica. Não há só aumento da vida, mas a morte continua existindo. O poder capitalista organiza a reprodução da vida, mas vai fazê-lo em função da reprodução do poder. O capital não tem problema algum em utilizar a tanatopolítica”, provoca Lazzarato.
Foucault é o único teórico que nos anos 1960 e 1970 analisa a questão da guerra. Porém, como se sabe, no pensamento de 1968 essa temática foi “expulsa”, e não encontramos nenhum tratamento aprofundado do tema, exceto em Mil Platôs, de Deleuze e Guattari. Não se pode pensar o capitalismo sem pensar na guerra, pois esta é um de seus avatares, sobretudo se analisarmos do ponto de vista dos colonizados, das mulheres, que sempre foram submetidos à opressão em suas mais diversas formas.
Entre 1971 e 1976 Foucault pensa as relações sociais através da guerra, mas de forma “subterrânea”. Ele se reporta a um pensamento não dialético, pois Hegel quis dialetizar até mesmo a guerra. Foucault tira a guerra dessa dimensão e pensa a relação de guerra como uma “não relação”, portanto a relação entre dominantes e dominados. Mas Lazzarato insiste: “Ele nunca analisou a história da colonização propriamente dita. Como outros pensadores europeus, Foucault tem uma deformação em sua obra porque aborda apenas o seu continente, e não consegue confessar o fracasso no programa de pensar as relações sociais.” Então, o conceito de biopolítica é o resultado de um fracasso político causado pela impossibilidade de superar a guerra na situação contemporânea.
Em sua conferência, Maurizio Lazzarato acentuou que a governamentalidade que vivenciamos é aquela da guerra sob diferentes formas. A relação de poder, para Foucault, é de tipo governante-governado. Os confrontos estratégicos opõem adversários, enquanto os conflitos de outro tipo abrangem governantes-governados. Foucault explica como as duas coisas se encadeiam, e a dívida é isso: relações estratégicas e de poder, ao mesmo tempo, e no capitalismo neoliberal toda a política funciona dessa forma. Por essa razão, retomar a biopolítica sem a necropolítica não é possível. Uma relação de confronto e guerra encontra o seu termo, o seu fim e a vitória de um dos adversários.
A dívida foi inventada a partir das vitórias políticas conquistadas. Há uma suspensão dos confrontos porque a política da dívida faz conduzir de forma estável o comportamento dos outros. Há uma substituição desses confrontos por uma relação de governantes-governados. A governamentalidade é uma continuação da guerra por outros meios.
Uma vez que os dispositivos de poder garantem continuidade, previsibilidade e racionalidade para conduzir comportamentos, sempre podem acontecer processos inversos que transformam governados em adversários. Confrontos estratégicos podem ressurgir no tempo do capital, bem como o recrudescimento da guerra ocorre por toda parte. “Pode haver um movimento inverso que transforme governados em adversários. Relações estratégicas passam para essa relação governante-governado, e aqui se formam outros conflitos, como aparece no discurso do sujeito livre de Foucault”.
Na colonização sempre houve adversários, nunca governantes-governados, detalhes não levados em conta por Foucault, pontua Lazzarato. Somente com a descolonização é que foi imposto o conceito de governados, e se deixou de lado o outro como inimigo político. É uma governamentalidade dentro da liberdade. A liberdade assumida se torna outra, e Foucault não tematizou esse assunto dos confrontos estratégicos da guerra. “Somos ‘livres’ para consumir o que nos é proposto. Somos ‘livres’ para votar entre Sanders e Trump. Mas que tipo de liberdade é essa?”
Lazzarato propõe que a biopolítica precisa ser analisada a partir da perspectiva do nexo com a dívida, uma vez que o capital impõe uma “não relação” através da moeda. Por que o capital faz essa reversão de estratégias? A moeda se autovaloriza sem passar pela produção, e a financeirização conduziu a catástrofes como a Primeira Guerra e o nazismo, na Segunda Guerra Mundial.
Os 30 Anos Gloriosos tentaram bloquear a financeirização, uma eutanásia de quem vivia do parasitismo da renda. Não era uma questão econômica, mas política, que deveria ser neutralizada. A causa dessa quebra era a Revolução Russa, e esse foi o único momento em que os capitalistas tiveram medo de verdade. O Welfare State é um produto da Revolução Russa e seu perigo. Uma vez desaparecido, esse capitalismo financeiro mudou e integrou completamente a produção e reprodução do capital.
Tudo é feito em função dos credores e o que aconteceu foi que os capitalistas deslocaram o conflito e o modo de pensar da relação capital-trabalho para credor-devedor, o que ocorre a partir de 1971. “Esse foi o ano em que há a declaração da conversibilidade do ouro-dólar. Passa a ser rompida a relação entre ouro e moeda. Esse deslocamento é complicado porque até então havia relação capital-trabalho. Depois as relações passaram a operar na lógica credor-devedor. A empresa passa a ser reconfigurada para que o valor se desloque para o credor. A percepção social é reconfigurada. Até a contabilidade das empresas mudou por essa razão”.
A finança não é algo externo, mas interno à produção, e esta sempre se deu em função da primazia dada ao credor. A questão da dívida não pode ser separada da guerra e da tanatopolítica. O que os bancos fizeram foi modificar as formas de guerra. O modo contemporâneo da guerra é a financeirização – a dívida é uma nova forma de governamentalidade, poder característico que funciona por desterritorialização. Ao invés de funcionar por fechamento, confinamento na fábrica, hospital e prisão, vai operar por abertura e rompimento desses confinamentos. “É um confinamento temporal e não espacial.” A genealogia da dívida e sua a dupla acepção do termo alemão Schuld como dívida e culpa foi analisada por Nietzsche em A genealogia da moral.
A questão do tempo é central na dívida, pois ao invés de capturar o tempo de trabalho, a temporalidade que se captura é outra, isto é, aquela da sociedade. A relação entre tempo e dívida é conhecida desde a Idade Média: a Igreja Católica condenava a usura, por exemplo. Sabia-se que era proibido emprestar dinheiro com juros. “Hoje o que se percebe é que estamos numa sociedade de agiotas.”
A Igreja Católica tinha uma ideia muito própria de como funcionava a agiotagem. A condenação dessa prática se dava em função de que era tida como uma apropriação do tempo: o que é medido senão o tempo que escoa, aquele que se empresta com juros? O que está vendido entre empréstimo e o momento da devolução? O tempo. Então, o usurário é ladrão do tempo de Deus. O problema é que hoje o tempo pertence ao Capital, e não mais a Deus. Ladrões vendem bens alheios, sem conhecimento do proprietário, e isso é roubo. “Roubam dia e noite o tempo da sociedade. Por isso o Capitalismo teve de destruir essa barreira que havia sido implantada contra o dinheiro, pois este é um movimento infinito, que não conhece limites. O dinheiro investido na usura é infinito, e o neoliberalismo retirou todos limites e prendeu-nos numa sociedade sem limites, onde o dinheiro impõe isso na sua organização. O dinheiro é a forma mais abstrata da relação social.”
A política da dívida acompanha o aumento do racismo e do sexismo. Desde 2008 temos retrocessos ocorrendo paralelamente, como aqueles que vimos surgir na Europa como o Brexit, eleições de conservadores em toda Europa e América do Sul, EUA e um outro nível de confronto que não conseguimos matematizar, talvez porque nosso conceito de biopolítica esteja ligado ao paradigma dos anos 1960 e 1970. Os capitalistas travam de forma muito diferente suas lutas e intensidade, basta observar o que ocorre na África. Para Lazzarato, “estamos em uma nova fase política e conceitos daquelas décadas não são suficientes para entendermos o que se passa.”
A produção capitalista redundou em destruição. A força, a técnica e ciência irão destruir a humanidade se continuarem neste ritmo. É uma reversão completa daquilo que se esperava no século XIX com a crença no progresso, imaginando que este era boa em si mesmo. Esse modelo é implantado após a Primeira Guerra Mundial, e Walter Benjamin diz que todas ilusões mais sadias foram demolidas por esse conflito. As massas proletárias se tornaram fascistas. “A Primeira Guerra Mundial foi uma guerra biopolítica. Se lermos os comentadores da época, eles dizem que tudo sinaliza em direção ao conflito, mas a colonização anterior já era uma biopolítica da guerra.”
Maurizio Lazzarato é sociólogo independente e filósofo italiano que vive em Paris, onde realiza pesquisas sobre trabalho imaterial, ontologia do trabalho, capitalismo cognitivo e movimentos pós-socialistas. É cofundador da revista Multitudes com o filósofo Antonio Negri. Escreve também sobre cinema, vídeo e as novas tecnologias de produção de imagem. Lazzarato participa de ações e reflexões sobre os “intermitentes do espetáculo” no âmbito da CIP-idf (Coordination dês Intermittents et Précaires d’Île-de-France), onde coordena uma importante “pesquisa-ação” sobre o estatuto dos trabalhadores e profissionais do espetáculo e do mundo das artes, além de outros trabalhadores precários. É autor de diversos livros, dos quais destacamos Experimental Politics: Work, Welfare, and Creativity in the Neoliberal Age (Massachusetts: MIT Press, 2017) e La fábrica del hombre endeudado: Ensayo sobre la condición neoliberal (Buenos Aires-Madrid: Amorrortu Editores/2013).
Em português, podem ser lidos os livros Trabalho Imaterial - Formas de Vida e Produção de Subjetividade (Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2004 - Escrito com Antonio Negri), Governo das Desigualdades Crítica da Insegurança Neoliberal (São Carlos: Editora Edufscar, 2012) e As Revoluções do Capitalismo (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, (2006) e Signos, Máquinas, Subjetividades (São Paulo: n-1 edições/Edições Sesc São Paulo, 2014).
A íntegra da conferência de Maurizio Lazzaratto pode ser acessada aqui.
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A era do homem endividado e a financeirização como forma contemporânea de guerra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU