04 Janeiro 2011
Maurizio Lazzarato, membro fundador da revista Multitudes junto com o filósofo italiano Toni Negri, retoma Deleuze e Guattari para uma abordagem crítica do marxismo clássico, que se constituía em uma ferramenta de transformação. "O que se produz já está vendido – assinala –, porque antes se converteu em objeto de desejo".
A reportagem é de Pedro Lipcovich, publicada no jornal Página/12, 20-12-2010. A tradução é de Anne Ledur.
Eis a entrevista.
Você desenvolveu a noção de que o capitalismo é "produtor de subjetividade". Que diferença haveria entre a subjetividade produzida pelo capitalismo em suas primeiras etapas e a que se produz na atualidade?
Atualmente vigora um capitalismo social e do desejo. Na primeira fase do capitalismo se tratava, acima de tudo, de produzir, e depois vinha o consumo. Hoje é ao contrário: um carro se produz depois de ter sido vendido, quero dizer, depois de ter sido constituído como objeto de desejo. Aqui entra a publicidade, o marketing.
Por que antes isso não era necessário?
Há um século não funcionava assim. Isso começou nos Estados Unidos, e um dos que introduziram essa concepção de marketing foi Edward Bernays, sobrinho de Freud. É sintomático que tenha sido o sobrinho de Freud, o fundador da noção do desejo inconsciente, quem introduziu esta passagem no capitalismo: construir o objeto como valor de desejo. Desejo massivo: é necessário que se mostre na televisão, que seja testado por consumidores. Há um século isso não se concebia, porque os operários não eram consumidores do que produziam. Henry Ford foi quem, a partir do barateamento gerado pela produção em série, propôs: "Meus produtos são comprados por meus operários". Hoje em dia o capitalismo, para funcionar, deve produzir subjetividade, tanto no trabalho quanto no consumo. Em ambos planos a subjetividade mudou.
Em que mudou a subjetividade, da perspectiva do trabalho?
No Ocidente, se pensa no trabalhador como um pequeno empresário. Cada indivíduo assume como tal o risco de sua atividade, é responsável pelo que faz, desde a empregada doméstica até o engenheiro especializado. Cada um deve ser autônomo, como um empresário. Isto é o "capital humano". Na antiga organização do trabalho, se tratava de uma subordinação direta. Hoje, a subordinação se constitui ao redor da autonomia. O indivíduo leva em si mesmo a condição de subordinação. Isto floresce do último neoliberalismo. Ao mesmo tempo em que a economia financeira passa a preponderar, todo o mundo passa a estar sob esta lógica empresarial. Mesmo o desempregado deve prestar contas: como organiza sua jornada, o que faz; se lhe pagam um subsídio, em troca, é necessário que seja ativo, que se faça responsável.
Alguém poderia dizer: "Qual o problema? Está bem que as pessoas sejam responsáveis...".
É que esta responsabilidade é concebida como se o indivíduo fosse culpado de sua situação. Na verdade, o desemprego não é por falta do indivíduo: o sistema produz a greve. Mas faz isso como se fosse sua falta, se diz que não tem vontade de trabalhar, que é preguiçoso, que se aproveita da assistência do Estado. Ele é culpabilizado.
Como se explica a questão da subjetividade do lado do consumidor?
O consumidor é objeto de diferentes dispositivos de poder: a publicidade, o marketing, a televisão impulsionam a construir seus objetos de desejo. O neoliberalismo, ao mesmo tempo em que acrescenta a desigualdade de ingresso entre as classes sociais, cada vez mais empurra as pessoas a consumir, como se o acesso ao consumo fosse possível para todo mundo. Os objetos de desejo, as mercadorias, estão sempre disponíveis... em imagens. Primeiro chegam as imagens; depois, as mercadorias. Outra importante transformação da subjetividade se produziu em relação às finanças, que são outro dispositivo de poder. O funcionamento mundial das finanças, dispositivo central do capitalismo, requer a generalização do crédito. Há um século, o crédito era para as empresas. As pessoas viviam da renda de seu trabalho. Hoje, todos podem ter crédito. Nos Estados Unidos há crédito para consumo, educação. Se alguém quer estudar deve endividar-se, obter um crédito. E isto organiza a subjetividade. Um crédito é uma promessa: eu vou pagar. Em 10, 20 anos, vou pagar este crédito. Como se pode assegurar que o crédito será respeitado todo esse tempo? Em nível legal, mas também em nível subjetivo, se constroem mecanismos para garantir que a promessa se cumpra.
Como seria o dispositivo em nível individual?
O sujeito fica tomado pela dívida. Toda sua vida vai estar condicionada pela dívida. Se você tem uma dívida de 30 anos, as condições e os limites de sua vida vão estar organizados por esse crédito. É o que acontece em nível dos países: quando a Argentina esteve endividada, os indivíduos e a nação estavam obrigados a viver sob as condições definidas pela dívida.
Mas, na Argentina, a dívida pesou de forma diferente sobre os diferentes setores sociais: a muitos prejudicou, mas a alguns, beneficiou. Houve empresários cujas dívidas foram estatizadas.
Sem dúvida. É o que acontece agora. É o que acontece agora na Europa, com a crise financeira. A dívida de bancos privados está ressegurada pela dívida pública, e os que vão pagá-la serão, acima de tudo, os menos ricos. E há quem aproveite a dívida: por definição, aproveita o setor financeiro. Nos Estados Unidos, este ano as empresas tiveram os maiores benefícios.
Então haveria dois tipos de subjetividade – essa subjetividade do devedor, que concerniria a um setor da população, talvez majoritário –, mas há outro setor que teria outra subjetividade...
Certamente. Assim como na indústria estão os empresários e os operários, nas finanças estão os credores e os devedores. E os que comandam são os credores: os que dão crédito e definem as condições. Mas há diferenças entre a oposição patrão-operário e a oposição credor-devedor.
Que diferenças?
De certo ponto de vista é o mesmo: há desigualdade entre patrão e operário, como entre credor e devedor. O problema é que hoje os credores não se definem de uma classe social específica. A condição de credor concerne também à classe média, aos operários. Os fundos de pensão foram privatizados. Para sua velhice, o sujeito adquire um seguro privado. Quanto à subjetividade do devedor, Nietzsche trabalhou a questão da promessa. Diz que o que formou o homem civilizado não é o trabalho, nem o intercâmbio, e sim, a dívida. Porque a dívida constrói um homem que pode prometer, e pode prometer enquanto constrói uma memória: eu vou pagar porque lembro da minha dívida. A dívida, a promessa, estão marcadas no corpo do indivíduo como a libra de carne de O Mercador de Veneza. O que me interessa destacar é que um indivíduo é ao mesmo tempo trabalhador, consumidor e devedor. A mesma pessoa está presa em diferentes relações de poder.
A partir de conceitos de Gilles Deleuze, você assinalou duas formas distintas de sujeição: sujeitamento social e a servidão maquínica. Como se apresentaram na fase atual do capitalismo?
Deleuze e Guattari apresentaram esses conceitos em Mil Platôs, em 1980. Nos anos mais recentes se destaca o fato de que, ao mesmo tempo em que se demanda que sejamos sujeitos responsáveis, indivíduos soberanos, estamos presos em dispositivos maquínicos. Na empresa se demanda ao empregado ser sujeito soberano ao mesmo tempo que uma parte do mecanismo. Na comunicação de massas, a pessoa deve ser sujeito ao mesmo tempo que input-output de uma rede televisiva; o desocupado deve ser responsável de sua situação, e ao mesmo tempo não é mais que uma variável de ajuste na economia. Um está preso em dispositivos heterogêneos, contraditórios. Por um lado, se é um componente de um sistema que nos sobrepassa; por outro, faz como se fôssemos centros de decisões com soberania.
"Como se fôssemos...", você diz. Quer dizer que a verdadeira situação é a outra, a maquínica?
Sim, mas ambas funcionam juntas. Os dois dispositivos são reais. No sistema maquínico, estamos presos enquanto indivíduos. Na empresa, por exemplo, estão todos os componentes de minha subjetividade: minha inteligência, minha atenção, minha capacidade física, intelectual; eu fico descomposto nesses componentes. É um processo de dessubjetivação, mas, ao mesmo tempo, sempre vai haver uma ressubjetivação. Há uma impossibilidade de sair da lógica para a qual eu sou um sujeito com objetos a meu redor. Certamente, na servidão maquínica, nem o homem é sujeito, nem a coisa é objeto; ambos são parte de um agenciamento. Mas o sujeito vai retornar, ou bem em forma individual ou em formas coletivas como o racismo, o fascismo.
Essa servidão maquínica se reverteria em formas de subjetivação?
Sim. O capitalismo funciona através daquela ideologia do indivíduo soberano, mas o individualismo já não funciona e o nacionalismo, o machismo, o integrismo religioso são formas de subjetivação. A hipermodernidade derrota o sujeito porque o capta no sistema maquínico coletivo, mas, ao mesmo tempo, sempre se reconstroem neoarcaísmos. Georges W. Bush marcou a ascensão do integrismo religioso no Ocidente; não somente a Al Qaeda é integrista. O racismo cresce na Europa, particularmente na Alemanha. O individualismo não basta, faz falta um sujeito coletivo e é certo que, nesse lugar, poderia construir-se outro sujeito coletivo, mas se reconstrói o nacionalismo, o racismo.
Em que respostas, mesmo que embrionárias e parciais, podem-se vislumbrar processos ou tentativas emancipatórias?
Acima de tudo, há que dizer que a crise continuará e se aprofundará. Hoje a crise gira em torno das finanças. A dívida privada foi transferida para o Estado, já não há outro a quem transferi-la. A dificuldade é que não há modelos políticos e de emancipação que correspondam à subjetividade atual. Há um século e meio o comunismo, o socialismo, correspondiam a uma subjetividade real: a da indústria sob o primeiro capitalismo, com os operários, os sindicatos. Havia instrumentos reais que não existem mais. É necessário construí-los, e acredito muito que isso se deva fazer. Há que se construir uma outra cartografia teórica, outro instrumento distinto ao que o movimento operário construiu entre o fim do século XIX e o princípio do XX. Por outro lado, se desenvolvem lutas reais. Uma importante, na França, é referente à aposentadoria.
A resistência ao aumento da idade para aposentadoria?
Sim. Se perdeu, mas a forma como se deu a luta oferece perspectivas. Apesar de a aposentadoria concernir aos assalariados, o processo não se centrou somente neles. Tocou também a outras categorias sociais. Mobilizou estudantes, diferentes ordens de cidadãos. Não era uma luta somente corporativa. Se dispersou em toda a sociedade. A luta é eficaz quando bloqueia todo o funcionamento da sociedade. Antes, para bloquear a sociedade era necessário bloquear a produção.
Se refere à greve?
Sim. Hoje, por outro lado, é preciso bloquear a sociedade para bloquear a produção: bloquear a circulação, as rotas. Nesse caso, bloquearam as refinarias. Não havia combustível para circular. Mas, no momento, a ação é mais inteligente que os enunciados. Ainda não há enunciados que, nessa direção, digam respeito ao conjunto da sociedade. E o tema da aposentadoria concerne a todo mundo. Desde mais de 30 anos, a maioria das pessoas vivem sob a situação clássica de emprego, mas é como se estivesse mos mesma situação há décadas. Os sindicatos ainda atuam como se tratasse de assalariados estáveis, mas, para as pessoas que incorporaram o mercado de trabalho desde a década de 70, é mais difícil reunir os anos de trabalho que se requerem para a aposentadoria. Então, não têm aposentadoria ou têm aposentadorias muito débeis, porque durante muitos anos não trabalharam, mudaram de trabalho, estiveram desempregadas, em precariedade.
Então, a reivindicação não é só que se mantenha a idade de aposentadoria?
Como dizia, os enunciados estão com um atraso com relação à ação. Os enunciados se referem à aposentadoria aos 60 anos. Em nível teórico, ainda se pensa em um assalariado clássico. Assim funcionam os sindicatos e os partidos de esquerda. Enquanto isso, há pequenas lutas, lutas de experimentação. Um exemplo, também na França, foi a luta dos trabalhadores de espetáculos: não dependem de uma só empresa. Trabalham uma vez para uma, outra vez para outra; uma vez fazem um filme; outra, uma obra de teatro; outra, uma publicidade. São móveis, precários. Como desenvolver uma luta se não se trabalha em uma empresa em particular?
Qual era a causa do conflito?
A modificação do seguro desemprego. Eles tinham um subsídio específico para as pessoas que não têm um posto fixo, mas, com a lógica neoliberal, os subsídios de desemprego iam ser realocados por um seguro privado; uma vez mais, realocados à mutualização pela privatização.
Que instrumentos essa luta utilizou?
Por exemplo, bloquearam festivais como o de Avignon. Hoje, a cultura tem um papel econômico muito importante, por exemplo, em relação ao turismo. Bloquear um festival é bloquear a economia de uma cidade. Quando eles bloquearam o Festival de Arte Lírico em Aix-en Provence, os hoteleiros foram muito afetados e protestaram. Eles também fizeram bloqueios móveis, que se deslocavam de um lugar a outro. A mobilidade, que haviam desenvolvido pelas características de seu trabalho, foi transformada em ferramenta de luta. A diferença do método clássico dos operários, que ocupam uma empresa e se enclausuram nela, a questão era bloquear aqui e lá, em rotas, instituições, museus, centros culturais, ministérios: vão e ficam um dia; amanhã, vão a outro lugar
Contra quem era a luta: o governo ou os empresários?
Contra os dois. Há dez anos, a Federação Patronal Francesa teve uma mudança de direção. Antes a dirigiam os empresários metalúrgicos, mas a condução passou à mão de empresas de serviços, como as seguradoras. Então, empreenderam um programa "para a refundação social", cujo claro objetivo era transformar o Estado de bem estar, reprivatizá-lo. E se aplicou com a ajuda do Estado.
Em seu livro Políticas do Acontecimento, onde você enfoca um debate com o marxismo, não encontrei referências ao conceito de mais-valia. Como considera essa noção?
A mais-valia remete ao conceito de valor. Para o marxismo, o valor seria uma quantidade objetivável, teria uma consistência em si, mas as coisas não têm valor senão porque coletivamente lhes foi investido. Além disso, a mais-valia supõe uma concepção antrofomórfica de valor: no capital, o valor o produz só o trabalho humano, a máquina não cria. Para Deleuze e Guattari, em troca, existe uma mais-valia maquínica: a máquina também produz mais-valia. O conceito de mais-valia passa a ser: mais-valia humana mais mais-valia da máquina. O marxismo considera que a produção de valor depende só do humano, particularmente do operário. Mas hoje, se pegamos as finanças, o valor de um ativo está ligado com critérios, opiniões, desejos dos atores, não somente com o trabalho e sua organização, mas com a crença
Mas a noção marxista de mais-valia enfoca dramaticamente a diferença de classes ao postular que o patrão expropria parte do trabalho do assalariado. Enfocar que a mais-valia se obtém igualmente da máquina não implica o risco de manchar essa dimensão?
O conceito de mais-valia é politicamente muito forte porque está ligado com o conceito de exploração, em termos de classes sociais. O problema é que a forma de exploração mudou e não temos conceitos que correspondam a isso. Se um utiliza o velho conceito de mais-valia, faz como os trotskistas, que ainda estão com a indústria de 50 anos atrás. Hoje existe a exploração de pessoas que trabalham como assalariados, mas não só essa. O grande centro de acumulação de riqueza são as finanças, e nas empresas financeiras a mais-valia não vem da exploração de quem trabalha nelas, mas de outra parte. Haveria que examinar essas novas formas de organização da mais-valia e exploração, e não pensar que nada mudou e que, como há um século, os explorados são somente operários. Também os consumidores são explorados de outras maneiras.
De que maneiras?
Para que algo se venda, deve-se construí-lo como objeto de desejo. Quando você o compra, além de pôr dinheiro, se empobrece subjetivamente. Porque há uma "padronização" da subjetividade. Todo mundo deve desejar o mesmo para comprá-lo. Para fazer aparência de individualização, se agrega algum detalhe "personalizado". Junto com o empobrecimento econômico, há um empobrecimento subjetivo.
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"Atualmente vigora um capitalismo social e do desejo". Entrevista com Maurizio Lazzarato - Instituto Humanitas Unisinos - IHU