24 Junho 2020
"Quando esses movimentos ressurgem, eles podem receber um novo impulso pela crescente conscientização que muitos indivíduos adquiriram durante a pandemia. E assim, quando superarmos a atual crise de saúde, podemos perceber que, como estava escrito em um muro em Santiago do Chile durante as mobilizações no final do ano passado, 'a normalidade é o problema'", escreve Ilan Bizberg, filósofo, cientista social e político, nascido em Israel e professor no Colégio de México - COLMEX, em artigo publicado por Democracia Abierta e reproduzido por CPAL Social, 17-06-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Se diz que as crises “ilustram”, que permitem apreciar o que não parecia evidente, apesar de que estivesse diante dos nossos olhos. Hannah Arendt escreveu que somente quando um instrumento que usamos cotidianamente decompõem-se o percebemos e, para repará-lo, ocupamo-nos dele, de como está feito, de sua nova forma e estrutura.
Da mesma maneira, esta crise sanitária evidencia o que não funciona, não somente me nossos sistemas de saúde, como também nas sociedades nas quais vivemos, na relação com a natureza e com os outros. Ressalta as falhas de nossos sistemas de saúde, que foram abandonados pelas políticas de austeridade aplicadas em quase todos os países do mundo e por privilegiar o interesse das finanças internacionais acima do bem-estar de seus cidadãos. Mostra os efeitos sobre as sociedades de um sistema econômico que acentua as desigualdades e que, por isso, implica riscos de saúde mais altos para os mais pobres e os migrantes.
Isso já foi discutido amplamente e espera-se que, com a crise sanitária atual, os governos de nossos países retifiquem o rumo, bem como afirmou Alain Touraine.
Porém, há um aspecto ainda mais importante que nos é mostrado por esta crise que é nossa atitude para a natureza, que podemos resumir como arrogância. Nas últimas décadas, os mais otimistas acreditaram que a tecnologia nos daria as soluções para consertar os danos que nossos estilos de vida causam à natureza. É um pensamento científico/mágico similar ao dos economistas que afirmavam categoricamente, pouco antes da crise global de 2007/2008, que quase acabou com o capitalismo e com a economia de vários países, que os mecanismos financeiros que foram criados para assegurar os investimentos de risco, garantiam que nunca mais haveria uma crise financeira; conhecemos bem o resultado dessas previsões.
Por outro lado, a falta de preparação de quase todos os países do mundo diante da pandemia atual contrasta com as expectativas que geraram a inteligência artificial e a promessa da biogenética de “derrotar a morte”, como pretende o trans-humanismo.
Que fracasso impressionante diante do ataque de um ente microscópico! E que terríveis consequências para milhares de pessoas afetadas diretamente pelo vírus, e para os milhões que sofrerão pela crise econômica! Que excesso do que os antigos gregos chamavam de hubris, uma atitude que foi retratada por Ésquilo em sua obra Agamemnon, quando o rei de Argos retorna a seu lar depois de ter destruído Tróia e aceita que se ofereça o tapete vermelho que se estendia aos grandes guerreiros, sem considerar que havia sido ajudado pelos deuses. Como sabemos, terminou assassinado por sua esposa Climnestra e seu amante.
O filósofo Emanuele Coccia sugere que a epidemia está despertando um sentimento de libertação de nossa soberba como resultado da impotência que mostramos para lidar com ela. Propõe que não somos o que acreditávamos ser: princípio e o fim do planeta, nem os únicos capazes de destruir a humanidade.
Se a inteligência, o poder e o excesso de confiança originaram invenções e avanços espetaculares, também derivaram em desastres e em nossa vulnerabilidade atual; é possível que a modéstia possa nos ensinar o que temos que fazer para salvar nosso ecossistema. Como mencionaram muitos analistas e ativistas sociais, a mudança climática terá consequências muito mais catastróficas que as que está causando o terrível drama humano, social e econômico que estamos vivendo, já que ameaçará a humanidade inteira.
Nossos governantes, apoiados por alguns (cada vez menos) científicos, apostam pelas novas tecnologias para encontrar uma solução, ou inclusive ocupar um planeta alternativo para o qual poderíamos todos migrar (ou melhor, alguns), para quando se concretize a ameaça que Greta Thunberg fala, quando clama que “nosso mundo está em chamas”.
Alguns especialistas disseram que a pandemia atual é uma consequência da pressão de nossa civilização sobre o meio-ambiente e que pode se considerar como a primeira epidemia da crise ecológica. Argumenta-se que o colapso da diversidade das espécies fez desvanecer as zonas de amortecimento entre nós e os animais selvagens.
O mesmo ocorreu quando as zonas urbanas ou as fronteiras agrícolas e agropecuárias se aproximaram das zonas selváticas pela crescente destruição dos habitats naturais. Ainda que nem todos aceitem que a crise sanitária atual é resultado direto da destruição da biosfera, não há dúvidas que o é em termos intersubjetivos.
Diferentemente de outras epidemias que fizeram a humanidade sofrer no passado, já há muitos anos, numerosos cientistas e ativistas defendem insistentemente e, cada vez mais visivelmente, que nos aproximamos de uma crise ecológica de grandes proporções. Nesse sentido, a epidemia é a primeira crise de uma nova era, chega em um momento no qual uma parte significativa da população mundial está convencida de que estamos lidando com o destino da humanidade.
O que é absolutamente certo é que, mesmo que não estivéssemos preparados para a atual crise sanitária, estamos ainda menos preparados para a crise ecológica. E apesar de as consequências da crise sanitárias serem desconhecidas, a crise climática certamente será muito pior. Diante de nossa incapacidade de fazer frente à atual epidemia, é irrisório pensar que a humanidade poderá inventar algo para evitar a deterioração da biosfera.
Muitos consideram que se requer uma articulação internacional para enfrentar ambas crises. E que para frear a deterioração do meio ambiente necessita-se de um pacto global, ou inclusive fundar um governo mundial. Ainda que seja pouco provável que isso se materialize no curto ou médio prazo, na atualidade vimos atitudes de solidariedade entre países: Alemanha aceitou um número importante de doentes da França e Itália, Portugal legalizou o acesso ao sistema de saúde a migrantes e refugiados, China enviou máscaras e respiradores a vários países afetados, assim como médicos; como também fez Cuba.
Os cientistas de todos os países estão colaborando para encontrar uma vacina e uma cura para a doença. Porém também vimos como o governo dos Estados Unidos tentou comprar uma empresa alemã que avançava na produção da vacina e desviou um carregamento de máscaras destinado a França, na pista de aterrisagem de um aeroporto chinês.
Também vimos o fechamento de quase todas as fronteiras nacionais. Por outra lado, vários governos estiveram mais interessados em salvar a economia que preservar a saúde de suas população, especialmente os idosos e os pobres, e é evidente que o capitalismo é insensível à ecologia porque seu único propósito é o crescimento econômico.
É por isso que é pouco provável que a deterioração do meio-ambiente seja afrontada de maneira direta e séria pelos governos nacionais, apesar de que alguns como o da Nova Zelândia, Finlândia e Noruega, o estejam fazendo; curiosamente a maioria deles governados por mulheres que parecem estar priorizando tanto a saúde de seus cidadãos como a do meio-ambiente. A solução, então, terá que vir de cada um de nós indivíduos e movimentos sociais nos apoiando ou nos unindo.
E, neste sentido, a crise atual pode nos permitir abrigar alguma esperança. Durante o confinamento pudemos nos dar conta do que é verdadeira importante e nos vimos obrigados a restringir nosso consumo. Alguns de nós tomaram conhecimento do abismo social: precariedade, pobreza, más condições de trabalho e condições de vida de muitos de nossos concidadãos.
Também percebemos a falta de recursos enfrentados por médicos e enfermeiros e pelas pessoas que produzem os bens mais essenciais; e o fato de eles trabalharem arriscando suas vidas, para nós que temos o privilégio de ficar confinados em nossas casas.
Também percebemos que cada um de nós pode infectar ou ser infectado pelo outro. Isso pode levar à atitude de defesa e à rejeição, mas também é possível que crie uma consciência de que dependemos um do outro e que o comportamento individual afeta outros seres humanos.
Se isso se traduz em um sentimento de empatia depende de cada um de nós. Pode despertar em todo ser humano a ideia de que é necessário abrir nossos olhos para os desafios que enfrentaríamos se não prestarmos atenção ao alerta de que a epidemia atual significa para o futuro da humanidade. E que começamos a agir e consumir de uma maneira diferente. Poderíamos esperar que essa conscientização fosse a fonte de maior solidariedade.
De fato, já estamos agindo de maneira diferente, algo que pode preparar o futuro. Aqueles de nós que tiveram a sorte de se livrar de guerras, fomes e pobreza e que também têm o privilégio de poder trabalhar em nossas casas, já estão viajando e usando nossos carros menos (ou nada), reduzindo nosso consumo e comprando localmente.
Estamos aprendendo que podemos viver mais frugalmente do que antes, que podemos nos comunicar com outras pessoas através da Internet, ter reuniões sem sair de casa etc. Isso pode ter consequências duradouras: limitar as viagens aéreas, reduzir o consumo e aumentar a produção local.
A crise da saúde também teve um impacto em nossa subjetividade e, especialmente em nosso relacionamento com o tempo, que muitos filósofos, como Bergson e Heidegger, consideram a essência do homem.
Primeiro de tudo, o ritmo de nossas vidas diminuiu consideravelmente. O que o sociólogo Hartmut Rosa considera a característica fundamental de nossa relação contemporânea com o tempo: a aceleração foi interrompida com o confinamento de metade da população mundial. Subjetivamente, o ritmo de vida de milhões de pessoas diminuiu.
Por outro lado, Kim Stanley Robinson escreve que, com a pandemia, as pessoas idosas viram seu horizonte temporal reduzido desde que perceberam que estão mais imediatamente sujeitas à possibilidade de morte. Embora seja verdade, como Heidegger diz, que nossa essência é definida pela morte, geralmente não pensamos nela. A pandemia impôs essa possibilidade em termos muito reais e próximos: se alguém nos seus 60 anos pensasse que seu horizonte de vida era de 20 ou 30 anos, a situação atual abreviará drasticamente esse horizonte.
É possível, como disseram alguns analistas, que o confinamento tenha cedido espaço a uma consciência puramente subjetiva e conjuntural, que uma vez que termine a emergência, tudo voltará à normalidade. A experiência dos últimos quarenta anos que começou com os governos de Thatcher e Reagan, que consideraram que “... não existe a sociedade. Existe homens e mulheres individuais e as famílias”, pode nos levar a tal conclusão.
Podemos dizer o mesmo se pensamos com Foucault que o poder no mundo contemporâneo já não se impõe a nós a partir da centralidade do Estado, mas que se difunde de tal maneira que nos controla, por assim dizer, desde o interior de nós mesmos, o poder foi internalizado. Uma perspectiva que nos leva a considerar, erroneamente segundo Wieviorka, que as estruturas são demasiadamente fortes para permitir qualquer mudança.
A transformação da concepção do tempo das pessoas mais velhas pode aproximá-las das preocupações do movimento de jovens que era tão ativo em diferentes partes do mundo antes da epidemia.
Preocupação relacionadas com a forma na qual a juventude atua experimenta a temporalidade. A partir das demandas de seus movimentos, se pode observar que os jovens sentem que seu futuro está fechado e que, por assim dizer, o tempo escapa entre suas mãos. Essa atitude está bem exemplificada por Greta Thunberg, a quem Eliane Brum considera como uma representante da primeira geração sem esperança.
Greta organizou uma greve escolar há mais de um ano, argumentando que não vale a pena ir à escola se não há futuro, se “o tempo se acaba”. Ela disse: “Não quero a tua esperança, não quero que tenhas esperança. Quero que entre em pânico, quero que sinta o medo que sinto todos os dias. Quero que atue, que atue como se tua casa estivesse em chamas, porque assim é”. Essa menina é a imagem dos jovens que, segundo psicólogos em muitas partes do mundo, buscam ajuda por sua profunda preocupação e angústia pelo futuro.
Nas manifestações e greves escolares, os cartazes mostraram essa inquietude: “No futuro, quero estar vivo”, “Farei minha tarefa quando fizeres a tua”. Em Santiago do Chile vi paredes pintadas que apontam para a mesma direção: “Por um futuro sem medo”, “Gritamos porque esperamos que seja de outra maneira”.
Enquanto que no passado os movimentos sociais baseavam-se na temporalidade cristã, e lutavam por um futuro melhor, invocando a ideia de que uma utopia terrena era possível através da revolução, sustentados na fé do progresso, da melhoria (da classe trabalhadora, da humanidade), hoje surgem o desespero, da preocupação pelo futuro. Paul Mutuku, um jovem ativista queniano, considera que “Os jovens são a única geração que cresceu nesta era da mudança climática. Não viram o melhor da natureza que outras geração tiveram o privilégio de ver”.
Um militante de 10 anos do movimento de Hong Kong declarou: “... cada vez há menos esperança para Hong Kong. Realmente não importa o que tentemos fazer a respeito. Não há muita esperança para o futuro, o que significa que tampouco há muita esperança para nós. Por isso temos que sair e resistir”. Outro ativista de Hong Kong chega a mesma conclusão: “O que é que realmente me faz levantar e fazer algo? Não estão certo. Talvez porque agora é um mal futuro, ou não há futuro em absoluto”.
Depois de transcendermos a crise da saúde, veremos o ressurgimento dos movimentos sociais que estavam surgindo em todo o mundo: da França, com os coletes amarelos, ao Chile, com os estudantes, de Hong Kong a Beirute. Esses movimentos tinham demandas políticas, econômicas e sociais, mas também ecológicas. E, como mostrou o giro feminista, em seu centro havia afirmações subjetivas.
Quando esses movimentos ressurgem, eles podem receber um novo impulso pela crescente conscientização que muitos indivíduos adquiriram durante a pandemia. E assim, quando superarmos a atual crise de saúde, podemos perceber que, como estava escrito em um muro em Santiago do Chile durante as mobilizações no final do ano passado, “a normalidade é o problema”.
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Crise da Covid-19. A normalidade era o problema - Instituto Humanitas Unisinos - IHU