25 Abril 2020
"A incerteza ganhou terreno proporcionalmente ao avanço dos meios de comunicação sobre o Coronavírus. E aqui reside uma importante força expressiva: o temor ou o medo não é tanto o do vírus ou do acidente, mas sim da incerteza e da persuasão. O que está restando a todos nós é a enorme incerteza que se encontra no próprio centro dessa euforia global em torno do Coronavírus, e isso tem suas consequências práticas", escreve o sociólogo Carlos A. Gadea, em artigo publicado por Uy.press e reproduzido por Ateliê de Humanidades, 22-04-2020. O artigo foi enviado pelo autor.
Carlos A. Gadea é graduado em História pelo Instituto de Professores Artigas - IPA, no Uruguai, mestre e doutor em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Realizou pós-doutorado na Universidade de Miami, nos EUA, e foi professor visitante na Universidade de Leipzig, na Alemanha e na Faculdade de Ciências Políticas e Sociais da Universidade Nacional Autônoma do México - UNAM, no México. Atualmente leciona no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos.
Segundo ele, "o Coronavírus nos expôs, agora, a uma virulência social que questiona os mandamentos de nosso próprio espírito moderno e racional. O mundo global havia se constituído sob a premissa da livre circulação de objetos e ideias, do constante contato em espaços abertos. A sociedade do contágio é, diferentemente, a da interrupção do contato, do freio dos fluxos, dos medos melancólicos, do aprofundamento da neurose da vida urbana e do triunfo do digital sobre o epidérmico".
É o ano de 2035 e o planeta Terra foi devastado por um vírus que acabou com a vida de milhões de pessoas. Aqueles que sobreviveram se refugiaram em comunidades subterrâneas escuras e úmidas, enquanto que na superfície os animais selvagens vagam sem rumo.
Um prisioneiro, chamado James Cole, personificado pelo ator Bruce Willis, se voluntariaria para viajar no tempo e obter uma amostra do vírus, graças à qual os cientistas poderiam criar um antídoto. Durante sua viagem, ele conhece uma psiquiatra e uma pessoa com problemas mentais e qualidades surpreendentes e de raciocínio. O objetivo de James Cole era encontrar o exército dos “12 macacos”, um grupo radical ligado à doença mortal. Eles seriam os eventuais responsáveis por aquela catástrofe.
Muitos devem se lembrar de um dos filmes mais destacados dos anos 90, “12 macacos” (1995), dirigido por Terry Gilliam. Devem lembrar a tensão vivida por seu protagonista, sua permanente oscilação entre o real e o ficcional, fruto do esforço para compreender seu entorno ou o resultado de algum efeito sofisticado da imaginação. James Cole perdia, às vezes, a noção de tempo e espaço: quando ele acreditava que estava no passado, estava em seu presente; quando ele acreditava que estava no futuro, as imagens o devolviam ao passado. A incerteza parecia se converter no meta-relato de uma distopia que o lançou no futuro próximo de várias informações de difícil compreensão. Sinais, imagens nas ruas, vozes, diálogos, encontros com diferentes pessoas com distintos conjuntos de saberes e conhecimentos foram apresentados em total desordem para James Cole em sua busca pelos traços do vírus e dos “12 macacos”.
Quando ele chegou à superfície do planeta, estava protegido com um traje de prata apropriado para evitar qualquer suposto contágio. Tal como capacete, ele carregava em sua cabeça uma pesada bolha de vidro que lhe fornecia oxigênio para respirar. Essa cena contrastaria com muitas outras em que apareceria sem nenhuma proteção contra o contágio supostamente iminente. Acidentalmente, ou por exaustão voluntária, James Cole se exporia ao vírus como se todas as informações acumuladas sobre ele tivessem passado para o segundo plano, informações que sugeriam o necessário comportamento de reserva e cuidado. Com suas ações, ele parecia sugerir que tudo o que vivia se mostra ambíguo e reversível e que, afinal, é precisamente com certas doses de neurose que as pessoas se protegem mais efetivamente da loucura. No final desta experiência, talvez você tenha chegado a uma primeira conclusão: que o vírus e o grupo dos “12 macacos” poderiam ter sido uma reação defensiva da espécie humana contra o risco de promiscuidade total, do contato próximo e direto que, paradoxalmente, deixaria cada vez mais a descoberto o sintoma de um crescente distanciamento afetivo entre as pessoas.
É o ano de 2020, e James Cole deve estar vendo na televisão informações diárias sobre uma nova pandemia planetária: o Coronavírus ou o Covid-19. Ele ainda é muito jovem e não consegue imaginar o que o destino lhe reserva daqui a 15 anos. No momento, não se fala de nenhum grupo radical ou terrorista vinculado à sua origem e disseminação, como será falado dos “12 macacos” em 2035. Sim, fala-se da China, dos efeitos nocivos das novas tecnologias da comunicação (5G) e do imperialismo norte-americano, do capitalismo, dos morcegos e das falhas nas experiências de laboratório. Se ainda houvesse voluntários neste momento, eles teriam que voltar no tempo até pelo menos setembro de 2019, quando tudo parecia ter começado na cidade de Wuhan, na China. Até o momento (14 de abril de 2020), à luz das estatísticas, 1.733.792 pessoas infectadas com o Coronavírus foram registradas no planeta, das quais aproximadamente 390.000 se recuperaram e 106.000 morreram.
A definida nova pandemia ataca sistemas imunológicos frágeis, causando problemas respiratórios semelhantes à gripe e gerando, em casos mais graves, dificuldades respiratórias. A forma de seu contágio é o que parece mais preocupar. Objetos que foram contaminados pelo simples contato com o vírus, como um pacote de arroz comprado no supermercado, e pessoas que o carregam, mesmo que não o manifestem com gripe ou tosse, por exemplo, são situações que despertam alarme e suspeita imediatos sobre sua eventual letalidade e o perigo global a que está sendo submetido. O que parece mais importante em tudo isso é o próprio contágio, aquilo que sugere o fazer contato direto com os objetos e as pessoas. Por esse motivo, não seria o próprio vírus, mas sua virulência social, sua capacidade de circulação e proliferação e, consequentemente, a probabilidade de seu contágio, o que causa maior medo.
Diferentemente da experiência vivida por James Cole em 2035, no ano de 2020 o vírus faz parte de um problema com uma solução biológica sem perspectiva imediata, tendo em vista a impossibilidade de voltar no tempo. Por esse motivo, ao considerá-lo um acidente, uma fatalidade, uma anomalia, passa a ser compreendido por sua capacidade subsequente de contágio em todo o sistema, a comunicação, a informação, os dados estatísticos, as variáveis matemáticas, as decisões governamentais, a capacidade de ação de indivíduos. O coronavírus é transbiológico; está para além de uma imunodeficiência do nosso corpo. Assim, o mundo real se apresenta aqui tal como uma ordem de especulação racional que tem sido objeto de ataque de sujeitos inescrupulosos invisíveis: o vírus, o entorno viral. A chave seria evitar o contato, uma espécie de profilaxia social; o distanciamento social não é mais entendido como sintoma de anomia e sim de uma racionalidade que supõe múltiplas consequências práticas.
Nesse sentido, o objeto parece estar sendo outro: do vírus se passa para a virulência social. Essa “distância psicológica”, da qual G. Simmel já falava ao descrever a vida nas metrópoles modernas, parece assumir a forma extrema da hipersensibilidade e ansiedade. Pode também assumir a forma da indiferença, da atitude de reserva e de proteção contínua, de uma busca da autopreservação individual que acaba afetando o modo de interação na vida das cidades. Em 1903, G. Simmel já disse que essa atitude de “reserva extrema” para com os outros não teria sua origem meramente na indiferença social ou na simples apatia, mas em uma “débil aversão, estranheza e repulsa mútuas” que surgiriam em situações de contato mais próximo e direto, como o abraço, o aperto de mão e até um olhar interpretado como fora de lugar. A vida nas grandes cidades teve seu fundamento, segundo Simmel, no aumento da vida nervosa, que emerge da mudança rápida e contínua de estímulos externos, do bombardeio contínuo dos sentidos com novas ou mutantes impressões, produzindo o que chamou de “personalidade neurastênica”. O resultado foi a tentativa de criar uma distância entre as pessoas e seu entorno social e físico, usando uma multiplicidade de justificativas. No centro estava o medo de estabelecer contato muito próximo com os objetos, na medida em que esses podem causar algum tipo de dor ou frustração.
A sensação de se sentir oprimido pelas exterioridades da vida moderna não parou no diagnóstico da metrópole que Simmel brilhantemente realizou. Se essa sensação pode ser considerada característica dos desajustes sociais derivados da experiência da modernidade, outros tipos de desajustes foram sendo apresentados durante o século XX praticamente na mesma direção. A AIDS, por exemplo, ao servir como forte argumento para uma nova proibição sexual e, ao mesmo tempo, para o estabelecimento de novos comportamentos nas relações sexuais. Ou o terrorismo, com sua violência política e o medo. Ambos são fenômenos irradiados a partir da invisibilidade, da imprevisibilidade e da incerteza. A AIDS e o terrorismo são formas igualmente virais, fascinantes por seu desafio permanente no início do funcionamento essencial do sexo e da política, multiplicado pela virulência das imagens transmitidas pelos meios de comunicação. Por esse motivo, tanto a AIDS quanto o terrorismo e esse novo coronavírus têm um ar familiar. O contágio e a reação em cadeia que cada um supõe não são apenas ativos no interior de cada um, isto é, no interior do sexo (de sua prática), da política e da biologia. Todos os três giram igualmente em torno de uma figura genérica: a catástrofe.
A catástrofe é uma figura social e, como tal, tem sua força expressiva derivada dos sentidos que a produziram socialmente. Um deles, ao pensar no atual Coronavírus, é a estatística, a variável funcional que o número adquire em escalas que pressupõem que algum fenômeno social aumenta ou diminui quantitativamente. Mortes ou infectados podem se constituir em dados numéricos significativos e, obviamente, a perda de vidas causadas nos últimos meses é lamentável. A morte não é um número, de fato. Há uma dimensão subjetiva que a transcende. No entanto, muitos já podem fazer notar que as estatísticas substituíram o vírus real e é a partir disso que a posição de distanciamento e isolamento social, por exemplo, é mantida. Assim, as mortes e os infectados adquirem significado se forem assumidos como integrados à legibilidade das curvas dos gráficos, formas exponenciais de números e imagens que circulam nos meios de comunicação. O vírus tornou-se um fato estatístico no horizonte de uma realidade social que não pode mais se representar. As estatísticas produzem o vírus como uma realidade antecipada e, portanto, uma catástrofe acelerada, diariamente contabilizada, que cumpre a função de salvaguardar o sentido do “corpo social”, da própria sociedade, corpo-objeto final do Coronavírus. O que parece estar em jogo é a função do social como um termo dotado de sentido. Existem as campanhas de solidariedade, os happenings em torno da música, o êxtase coletivo pelas redes sociais virtuais, tudo para recriar/simular o social, em um sistema transparente, baseado em uma reação em cadeia. O Coronavírus afeta estruturas verdadeiramente transversais, desde a informação e a comunicação até o dinheiro e o trabalho. Para a tranquilidade emocional de alguns, o social parece possível de ser representado.
Outro dos sentidos que alimentam a catástrofe é o princípio da incerteza, da imprevisibilidade, que é acompanhado por um crescente sentimento de desconfiança, evidenciando um paradoxo crucial do nosso tempo. Em uma sociedade que imaginamos sob o controle de nossos artefatos técnicos, não sem nos enganarmos com seus persistentes problemas históricos e recentes, surgem novos desafios, deixando o corpo social sem defesas. O terrorismo, por exemplo, havia surgido como um novo tipo de violência, nascido do paradoxo de uma sociedade permissiva e pacífica. As novas doenças, por outro lado, emergem dos corpos superprotegidos das mais diversas técnicas de medicina e cirurgia, embora vulneráveis a todos os vírus. Nas salas de cirurgia, o ambiente desinfetado é tão importante que nenhum micróbio ou bactéria pode sobreviver. No entanto, parece que é exatamente aí que nascem certas doenças virais misteriosas, uma vez que proliferam assim que recebem espaço. Paradoxalmente, da própria desinfecção, nasce o vírus. Da mesma forma, o corpo social, como o corpo biológico, perde suas defesas à medida que avançam a sofisticação de seus dispositivos técnicos, a comunicação generalizada e o êxtase sobre a informação.
A incerteza ganhou terreno proporcionalmente ao avanço dos meios de comunicação sobre o Coronavírus. E aqui reside uma importante força expressiva: o temor ou o medo não é tanto o do vírus ou do acidente, mas sim da incerteza e da persuasão. O que está restando a todos nós é a enorme incerteza que se encontra no próprio centro dessa euforia global em torno do Coronavírus, e isso tem suas consequências práticas. O paradoxo é que se insistimos em escapar desse estado mental com mais informações e comunicação, agravando com isso a relação de incerteza. É um círculo vicioso do qual é muito difícil sair; é o resultado da virulência social, à qual o Coronavírus deve ser compreendido como integrado.
A informação não é o antídoto para a incerteza, mas sim o que, paradoxalmente, parece fazê-la proliferar ainda mais. A virulência social é aquela dos meios de comunicação e das informações, que entram em nossos repertórios diários de reflexão trazendo mais elementos para a compreensão de nossa realidade prática. Assim, a partir da incerteza e da desconfiança generalizada, o vírus também nos permite reconsiderar toda a vida social à luz da hipótese da catástrofe, da possível morte ou do contágio. Permite uma revisão de todo o espectro de doenças, da saúde da população e dos serviços públicos, à luz da hipótese da desestabilização da vida social e da própria sobrevivência.
Incerteza, falta de confiança, distanciamento social, êxtase da comunicação, sociedade da informação. Noções que, em uma segunda conclusão, certamente ocupariam as reflexões de James Cole no planeta encontrado em 2035. Ele viu o espetáculo desse vírus no desaparecimento de toda a vida humana na superfície do planeta, e a catástrofe se materializou na obscura sobrevivência subterrânea das pessoas. Muito diferente é aquela que vivemos hoje. Agora tudo é mostrado, medido, codificado, exposto, calculado, saturado de informações. O que nos resta é a informação fornecida pela ciência, pelos meios de comunicação e pela tecnologia. Informações que chegam até nós na forma de estatísticas, variáveis econômicas, crises econômicas e desemprego social.
O Coronavírus nos expôs, agora, a uma virulência social que questiona os mandamentos de nosso próprio espírito moderno e racional. O mundo global havia se constituído sob a premissa da livre circulação de objetos e ideias, do constante contato em espaços abertos. A sociedade do contágio é, diferentemente, a da interrupção do contato, do freio dos fluxos, dos medos melancólicos, do aprofundamento da neurose da vida urbana e do triunfo do digital sobre o epidérmico. A estatística e o vírus nos falam de mortes e contágios, e da proliferação de mais e mais contágios. O efeito multiplicador das informações contrasta, ao mesmo tempo, com a negatividade do social, com sua recessão em um processo irreversível.
A sociedade de contágio: circulação de informação e comunicação, ao mesmo tempo em que exercemos o direito de estar a salvo de qualquer contato próximo demais. O virtual e o digital estão em ascensão.
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A sociedade do contágio. Artigo de Carlos A. Gadea - Instituto Humanitas Unisinos - IHU