22 Fevereiro 2020
“O que o aceleracionismo marxista está nos pedindo é que saiamos da nossa confortável esfera de segurança moral e não temamos utilizar aquelas forças que são necessárias para poder ter a oportunidade de fazer algo eficaz e duradouro em escala global”, escreve Jorge León Casero, professor de filosofia da Universidade de Zaragoza, em artigo publicado por El Salto, 21-02-2020. A tradução é do Cepat.
Desde que Alex Williams e Nick Srnicek publicaram seu Manifesto por uma política aceleracionista, em 2013, a recepção do aceleracionismo por intelectuais e movimentos sociais de esquerda acabou sendo dividida em duas posições claramente divergentes. Por um lado, estão todos aqueles que o consideram uma proposta excessivamente academicista, que na realidade estaria jogando a favor do capitalismo. Entre outros, seria o caso do filósofo e sociólogo alemão discípulo de Axel Honneth, Hartmut Rosa, segundo o qual a aceleração seria um fenômeno inerentemente capitalista, moderno e totalitário, que somente pode nos alienar e desconectar das experiências vitais ligadas ao mundo material.
Por outro lado, existe um grande número de autores e autoras que tentaram especificar e desenvolver algumas teses aceleracionistas em âmbitos tão variados como a estética, a teoria do conhecimento, a análise do trabalho, a organização de classe e o feminismo, como por exemplo Xenofeminismo, de Laboria Cuboniks e Helen Hester, e o pós-operaísmo de Bifo Berardi e Antonio Negri. Concretamente, para este último, o aceleracionismo proposto por Williams e Srnicek mantém afirmações próprias do operaísmo, como a de “libertar a potência do trabalho cognitivo dentro da evolução do capital, [devido a que] a causa da crise está na obstrução das capacidades produtivas”.
Enquanto para Hartmut Rosa, a aceleração está vinculada unilateralmente a uma necessidade permanente de otimização e maximização dos processos produtivos que seriam exclusivamente capitalistas, o aceleracionismo, o pós-operaísmo e o xenofeminismo propõem, ao contrário, que a forma de produção capitalista não é uma máquina perfeita que só trabalha para seu próprio lucro, mas para obter este último necessita libertar e implementar algumas forças cruciais que podem ser reapropriadas pelo proletariado e utilizadas contra ele. Essas forças são a ciência e a tecnologia.
Grande parte da oposição às propostas de Williams e Srnicek deriva de uma compreensão alterada do que exatamente propõem com “acelerar”. Concretamente, o que acabou sendo a compreensão mais habitual do aceleracionismo é a que o entende como uma exortação para intensificar qualquer processo capitalista existente, com a (ilusória) esperança de que isso levará o sistema a um colapso definitivo, que é necessário alcançar, para poder instaurar um novo sistema mais justo e equitativo.
Diante dessa deturpação e simplificação, é necessário lembrar que a origem e o fundamento da proposta aceleracionista se encontram em um dos fragmentos mais discutidos que Gilles Deleuze e Félix Guattari escreveram no Anti-Édipo, quando se perguntaram: “Então, que solução existe? Qual via revolucionária? [...] Retirar-se do mercado mundial, conforme Samir Amin aconselha aos países do terceiro mundo, em uma curiosa renovação da ‘solução econômica’ fascista? Ou bem seguir o sentido contrário? Ou seja, ir ainda mais longe no movimento do mercado, da decodificação e da desterritorialização. Bem, talvez os fluxos ainda não estejam bastante desterritorializados, decodificados [...] Não se retirar do processo, mas ir além, acelerar o processo”.
Segundo Deleuze e Guattari, o principal problema do capitalismo é que, embora aparente ser uma força que desterritorializa e decodifica as relações sociais e econômicas das sociedades tradicionais, classistas e heteropatriarcais, isso se deve a que somente faz isso com a intenção de voltar a reterritorializá-las e recodificá-las dentro de um sistema socioeconômico que se ajuste perfeitamente às suas necessidades e objetivos.
Nesse sentido, desterritorializa o regime de propriedade da terra, próprio do feudalismo, para reterritorializá-lo sob a primazia da propriedade dos novos meios de produção, industriais e cognitivos. Do mesmo modo, decodifica as relações sociais heteropatriarcais baseadas no parentesco para recodificá-las como relações de trabalho com assimetria de gênero.
Dado que esse processo de desterritorialização e posterior reterritorialização continua funcionando de várias maneiras, o que o aceleracionismo afirma é que devemos aumentar e “acelerar” os processos de desterritorialização e decodificação até um ponto de não retorno que impeça sua reterritorialização e recodificação capitalista.
Deste ponto de vista, o que deve ser acelerado não é o próprio capitalismo, mas apenas a decodificação que promove antes de novamente recodificá-la. Agora, é justamente neste ponto que o aceleracionismo se bifurca em uma concepção marxista, defendida por Williams e Srnicek, e outra (anarco)liberal mantida por reconhecidos antimarxistas como Nick Land, fundador, em 1995, da Unidade de Pesquisa de Cultura Cibernética, junto com a filósofa Sadie Plant.
A principal diferença entre ambas as posturas é que, no caso de ‘Land’, o processo concreto de acelerar coincide diretamente com o tipo de decodificação sócio-simbólica possibilitada pela Internet e pelas plataformas digitais, tal e como nos anos 1990. Por outro lado, no caso de Williams e Srnicek, a aceleração dos processos de decodificação deve ser complementada com uma reapropriação comum e não necessariamente estatal de tecnologias de plataforma que possibilite uma reorganização antagônica eficaz das relações produtivas anticapitalistas.
O aceleracionismo marxista sustenta que a tecnologia promove dois tipos de processos dentro do capitalismo que, diferentemente do que mantém Hartmut Rosa, não podem considerar-se idênticos, nem inseparáveis. A necessidade de reduzir o trabalho humano necessário para realizar uma tarefa (o aumento da produtividade) e a necessidade de aumentar continuamente a quantidade de produção total de mercadorias (o que Unabomber chamava de autoexpansividade de um sistema).
Como resultado disso, a outra grande distinção que separa o aceleracionismo marxista da teoria crítica é sua consideração da tecnologia como uma ferramenta susceptível de aumentar exponencialmente a efetividade social do trabalho e do conhecimento, com vistas ao empoderamento de seus produtores frente ao capital. Mais especificamente, a cibernética e as plataformas digitais são identificadas como a infraestrutura básica que possibilitaria a autogestão efetiva e comum das lutas contra o capitalismo e cuja reapropriação deveria ser considerada como um dos objetivos fundamentais de qualquer tipo de luta anticapitalista.
O último livro de Hardt e Negri propôs reorganizar o funcionamento dos movimentos sociais a partir de uma “liderança empreendedora” aplicável às tarefas de tipo “tática” que não precisam ser avaliadas por uma Assembleia, que se limita a tomar as decisões estratégicas principais. O aceleracionismo de Williams e Srnicek vai um pouco além e sustenta que uma luta realmente eficaz contra o atual capitalismo de plataforma exige colocar para jogar a nosso favor todos os processos de automação, Deep Learning e de Inteligência Artificial, que pudermos, para que realizem inúmeras tarefas táticas, logísticas e repetitivas que nos libertem da enorme carga gerencial que requerem.
Embora Antonio Negri tenha razão quando afirma que “o nome aceleracionismo é certamente infeliz” devido à enorme quantidade de confusões que deu origem, isso não o impediu de entender a proposta de Williams e Srnicek como “um complemento pós-operarista” que renova o slogan “não ao trabalho”. Embora as atuais decolagens de um anarcoprimitivismo radical como o proposto por John Zerzan e Theodore Kaczynski nos acostumaram a aceitar que todos os males vêm da tecnologia, nem por isso deveríamos identificar unilateralmente a esta última com o sistema industrial capitalista tão rapidamente como eles fazem.
Gostemos ou não, a verdade é que, como afirmam Williams e Srnicek, desde o início do século XXI, os movimentos sociais uniram e articularam a ação de um número crescente de pessoas e, no entanto, exceto em frear alguns processos a nível local e em lugares específicos, a triste realidade é que a precariedade e a redistribuição desigual da renda continuam aumentando exponencialmente em nível global.
Devido a isso, talvez seja o momento de pensarmos seriamente a necessidade de uma reapropriação profunda e de massas daquelas tecnologias que nos empoderem o suficiente para poder desarticular definitivamente as relações sociais de produção nas quais se baseia o capitalismo.
Nesse sentido, o aceleracionismo marxista não é tanto uma pulsão irracional para aumentar a velocidade de um sistema que se acredita estar condenado à sua própria autodestruição, mas, sim, um projeto orientado à reconfiguração das principais forças que tal sistema desencadeou para empregá-las em sua própria subversão e desmantelamento.
O problema que isso nos coloca e que muitas vezes não gostamos é que, embora a mera resistência exterior a um sistema opressor seja sempre moralmente louvável, mesmo nos casos em que inexoravelmente leva à derrota, a decisão de usar os seus próprios recursos como a única maneira viável para destruí-lo sempre está aberta à traição, voluntariamente assumida ou não, dos objetivos pelos quais a luta foi iniciada.
A abertura à corrupção e/ou tergiversação dos objetivos perseguidos é algo que sempre está presente em qualquer tipo de luta pelo (ou emprego) do poder. A esse respeito, o que o aceleracionismo marxista está nos pedindo é que saíamos da nossa confortável esfera de segurança moral e não temamos utilizar aquelas forças que são necessárias para poder ter a oportunidade de fazer algo eficaz e duradouro em escala global.
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Aceleracionismo: por um controle proletário das tecnologias de produção - Instituto Humanitas Unisinos - IHU