11 Outubro 2019
Desde o seu nascimento, os estudos de gênero suscitaram debates cada vez mais amplos, que se tornaram cada vez mais importantes em todo o planeta, graças às diferentes ondas feministas. Judith Butler é uma das principais teóricas dessa corrente. Le vent se lève conversou com ela por e-mail para perguntar sobre os principais conceitos de seu trabalho, bem como sobre sua visão do futuro político, em um momento em que a questão da reformulação da masculinidade se tornou crucial para qualquer pessoa que queira lutar contra o patriarcado.
A entrevista é de Lilith Verstrynge e Lenny Benbara, publicada por Ctxt, 09-10-2019. A tradução é do Cepat.
Você nasceu em uma família judia tradicional, em Ohio. Seu tio foi preso por ser transexual e faleceu na prisão. Seus primos foram expulsos de suas casas por serem homossexuais e você foi levada a um psiquiatra, com 15 anos, quando anunciou sua homossexualidade. Como você desconstrói o gênero em sua difícil história pessoal? Para aquelas e aqueles que não lhe conhecem, como se descreveria?
As autodescrições não são o meu forte. É provável que meu tio fosse intersexual, mas acabou se tornando uma espécie de atração porque as autoridades médicas e psiquiátricas o analisavam constantemente. Nunca o conheci, pois foi internado antes de eu nascer e me disseram que já não estava mais consciente. Era mentira, poderia tê-lo conhecido, mas meus pais não queriam que os filhos o contatassem. Eu tenho um primo homossexual que sabe o que realmente aconteceu. Este primo simplesmente foi excomungado.
Algumas famílias fazem doações financeiras, que depois reclassificam como empréstimos e, quando se tornam dívidas impagáveis, são colocadas na categoria de crimes. Isso não é uma surpresa, uma vez que, na menor oportunidade, a criminalidade foi usada contra nós. Meus pais e avós ficavam aterrorizados com a ideia de que o antissemitismo pudesse surgir a qualquer momento e pensavam que se assimilassem as normas e padrões americanos seria a única maneira de se proteger. Continuaram respeitando as festividades religiosas e alguns respeitavam o Shabat, mas, com o tempo, a judeidade se desconectou da maioria dos rituais (embora não de todos) e se tornou um ethos comunitário.
Um dos principais conceitos que você desenvolve em “O gênero em disputa” é a ideia de performatividade de gênero. Poderia explicar esse conceito?
A ideia da performatividade de gênero evoluiu ao longo do tempo. Quando a apresentei pela primeira vez, interessava-me como as pessoas repetiam alguns gestos e como esses gestos pareciam expressar e ampliar a maneira como percebiam seu gênero. Mas, estava claro que essas pessoas não criavam por completo os gestos que repetiram. Não eram totalmente seus, embora tivessem sido personalizados. Expressavam gestos que já haviam sido feitos anteriormente, de modo que se estabelecia uma espécie de solidariedade tácita com aquelas e aqueles que haviam feito estes gestos. Ao mesmo tempo, os modificavam e os transformavam, improvisavam as atuações, os movimentos e os gestos que reproduziam.
Em relação à performatividade de gênero, algumas interpretações de sua teoria são claramente voluntaristas. Podemos escolher nosso próprio gênero? Qual é a relação entre nosso corpo e nosso gênero?
Há momentos em que escolhemos nosso gênero. Por exemplo, quando vamos a um tribunal para solicitar uma mudança de gênero. Naquele momento, fazemos a escolha legal e até política do reconhecimento do gênero ao qual acreditamos pertencer. Existe, portanto, uma escolha no nível jurídico e político – devo apresentar a solicitação ou não? -, mas as coisas são diferentes quando se trata do sentimento profundo em termos de gênero. Muitas, senão a maioria das pessoas que desejam mudar legalmente de gênero, sentem que seu gênero é uma parte inalterável de sua identidade e, portanto, não o escolheram. Ao recorrer a essa proteção legal, decidem que essa parte não escolhida de seu ser seja reconhecida e afirmam o que são.
O feminismo não é um movimento homogêneo. O que você pensa dos mecanismos neoliberais de reapropriação (as grandes marcas que vendem produtos feministas, mas também a luta de Beyoncé e de Rihanna pelos direitos das mulheres)? Como analisar essa realidade ideológica? Considera que contribui para dissolver a capacidade crítica do feminismo?
Existem muitos tipos diferentes de feminismo, e devemos ser críticos e distinguir aqueles que realmente fazem progredir os ideais e valores fundamentais do movimento. As diferentes formas de feminismo liberal que se concentram no desenvolvimento individual frequentemente abandonam a natureza coletiva e a força do movimento. No entanto, para mulheres e meninas jovens que vivem em lugares onde o movimento feminista não é conhecido, ver Beyoncé cantar e afirmar seu corpo de uma maneira poderosa pode ser bastante impactante. Como também fazem, acredito, algumas atletas como Serena Williams e Megan Rapinoe. Não há razão para termos que gostar de tudo o que dizem para ver que a representação pública de sua força faz a diferença para muitas outras mulheres no mundo.
Os movimentos feministas começaram a crescer em vários países, como na Espanha. Às vezes, a masculinidade tóxica está na agenda política. O que você diria aos homens que deveriam reorganizar sua própria construção de gênero?
Suspeitaria de qualquer medida que se assemelhe à autocorreção stalinista ou a uma autocrítica maoísta. Contudo, acredito que há nos homens muitos pactos não codificados e implícitos no que diz respeito à violência que exercem sobre as mulheres. Homens que veem maridos espancar suas parceiras e namoradas e olham para o outro lado. É nesses momentos em que um homem está permitindo que outro homem abuse de uma mulher. Olhar para o outro lado é um gesto que nem sempre se limita a uma cabeça que vira em outra direção. Isso implica tanto a negação como a concessão da impunidade. Alguns homens quebram esse vínculo de irmandade e o interrompem, levantam a voz, intervêm e deixam claro que a violência contra as mulheres é inaceitável.
Nesse ato, ou série de atos, formula-se uma versão diferente da masculinidade. Trata-se de garantir que a ação que rompe o vínculo fraterno também seja um ato que crie solidariedade com as mulheres. As mulheres não precisam de outro salvador! Precisam de solidariedade em pé de igualdade. Enquanto a opressão de gênero não for derrotada, precisaremos de feministas para tomar as cartas no assunto.
Em resposta a essa onda feminista, vimos um aumento considerável nos movimentos culturais, especialmente nas redes sociais, que afirmam defender a identidade dos homens e a masculinidade. Como você explicaria esse ressurgimento? Em que consistiria um feminismo hegemônico capaz de neutralizar esse tipo de reação?
Parece-me que essa defesa dos homens e o masculinismo atuam como se a oposição à violência masculina fosse uma oposição aos homens. Ou que a oposição à desigualdade de gênero fosse uma mera oposição aos homens enquanto tais. Contudo, esse argumento pressupõe que não pode haver homens sem violência masculina e desigualdades de gênero, que acabar com a violência e a desigualdade significaria a abolição dos homens. É inconcebível para eles que os homens continuem sendo homens no momento em que atingem uma nova forma de masculinidade ou masculinidade baseada na igualdade e na não-violência. É uma defesa reacionária dos homens que pensam que a violência é uma parte integrante do homem.
Você fala sobre as manifestações como formas de expressão encarnadas, formas de levar reivindicações e demandas políticas, mesmo quando o discurso está ausente e não é a principal forma de expressão, usa a performatividade de gênero como ponto de partida para falar sobre populações precárias e a união dos corpos como protesto. Combina suas duas teorias, performatividade e precariedade com as obras de Hannah Arendt, Giorgio Agamben e Emmanuel Levinas para avaliar de maneira crítica e abordar movimentos como os da Praça Tahrir, Occupy, Black Lives Matter e outros movimentos de protesto. Pode nos contar mais sobre como estão conectadas essas duas teorias?
Muitos dos principais protestos dos últimos anos chamaram a atenção para o estado precário dos corpos nas ruas. São experimentados na rua, em casa, nas fronteiras, no local de trabalho, no espaço público ou, de fato, em campos de detenção e prisões. Uma das muitas formas de expressar a ira e denunciar a injustiça dessa precariedade vivenciada é se unindo, se consagrando, ou seja, se tornar plural e expressar sua oposição. A expressão às vezes é oral, mas às vezes pode passar por uma ampla variedade de meios de comunicação, incluindo movimentos, gestos, imagens e sons. Todos os sentidos do corpo contribuem para a maneira como a oposição é formulada e faz a sua reivindicação.
Levinas falava da demanda que o outro me faz, contra a minha vontade, e que é uma demanda ética. Meu enfoque é que, quando os corpos são expulsos, apátridas e sem meios básicos de sustento, formulam suas reivindicações com seus corpos e os meios que são e têm. Às vezes, pode ser simplesmente gravar espontaneamente a violência policial com um telefone celular. E, no entanto, aqueles que estão fora da cena se veem afetados por essas reivindicações ou demandas, devem ser sensíveis ao que se expressa, manifesta, comunica, e isso os exorta a traduzir, mediante a linguagem política com a qual estão acostumados (principalmente parlamentar), a realidade daqueles que expressam demandas políticas de diferentes maneiras.
Em algum momento, escutamos você dizer: “É mais fácil continuar lutando se sabemos que não estamos sozinhos, que dependemos dos outros”. Como avalia a ideia de que a estruturação do atual ativismo atravessada pelo neoliberalismo contribui para uma fragmentação das lutas e da identidade da classe trabalhadora? Considera que não buscamos mais uma história comum que una diferentes pessoas em torno de um único objetivo, mas que tratamos de exagerar nossas particularidades para preencher a ansiedade de um presente vazio, desprovido, sem identidade de classe? Como construir, então, essa unidade que nos faz depender um do outro?
As velhas ideias de unidade não existem mais, mas seria um erro pensar que tudo o que resta é o estado fragmentado das diferentes identidades. A ideia da aliança é uma maneira de pensar a solidariedade que permite que a diferença seja um fator mobilizador, e não paralisante. Essa forma de política de identidade que afirma que só é possível representar a si mesmo por sua especificidade, não deixa espaço para a criação de alianças. Entendo a necessidade de enfatizar a singularidade, especialmente em um contexto de povos autóctones, cujas histórias foram apagadas com muitos de seus antepassados. No entanto, devemos nos questionar sobre as condições históricas comuns pelas quais passamos, o deslocamento neoliberal de trabalhadores, a destruição dos direitos humanos, os crescentes níveis de pobreza e as formas neoliberais de individualismo que fazem a solidariedade parecer ainda mais distante.
Precisamos criar formas de solidariedade transregionais e translinguísticas que aprofundem a justiça econômica, lutando contra os efeitos devastadores do capitalismo sem relegar ao plano de luta secundária o feminismo, o ativismo queer e trans e as lutas pela igualdade racial e a liberdade. Não devemos retornar a uma unidade simples, mas lutar para formar uma rede de solidariedade cada vez mais poderosa, focada no combate à destruição do planeta e por um salário digno.
Precisamos de muitos movimentos trabalhando juntos para iluminar todos os aspectos desta constelação. Isso não significa que todos temos a mesma opinião ou que falamos a mesma língua, mas que aceitamos o fato de vivermos juntos neste planeta e que isso nos obriga a desmantelar as forças de destruição e opressão para criar uma vida mais habitável para todos. Quando a esquerda estiver mais afiada contra as forças econômicas devastadoras que operam contra nós, a versão de segurança do fascismo e a ressurreição destrutiva do patriarcado, não teremos um novo idioma, mas, ao contrário, um novo ativismo de tradução que reúna as linguagens políticas da vida.
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“Precisamos de uma grande rede de solidariedade para combater o capitalismo e a destruição do planeta”. Entrevista com Judith Butler - Instituto Humanitas Unisinos - IHU