01 Abril 2020
Alain Touraine (Hermanville-sur-Mer, 1925) é um dos últimos sobreviventes de uma geração brilhante que marcou as ciências sociais e o pensamento ocidental, de meados do século XX ao início do XXI. Como sociólogo, seu campo de estudo abarcou as fábricas que no pós-guerra elevaram o país à sociedade pós-industrial, os movimentos sociais e a crise da modernidade.
Com suas intervenções no debate público - na França, mas também em outros países europeus como a Espanha e na América Latina - Touraine se tornou uma referência do que em seu país chamam de segunda esquerda, de caráter social-democrata e francamente antitotalitária. O sociólogo, prêmio Príncipe das Astúrias de Comunicação e Humanidades, em 2010, conversou com Ideas, por telefone, de seu confinamento em Paris.
A entrevista é de Marc Bassets, publicada por El País, 28-03-2020. A tradução é do Cepat.
Estamos em guerra, dizem Emmanuel Macron, Pedro Sánchez, Donald Trump. Está correto?
Tecnicamente, a guerra enfrenta um exército, que invade o território de um país B. É necessário ao menos dois e ocorre entre humanos. Aqui, ao contrário, o que vemos é o humano contra o não-humano. Não critico o emprego da palavra guerra, mas seria uma guerra sem combatentes. Não há uma estratégia: o vírus não é um chefe de Governo. E, do lado do humano, acredito que vivemos em um mundo sem atores.
Sem atores?
Nunca tinha visto um presidente dos Estados Unidos tão excêntrico como Donald Trump, tão pouco presidencial, um personagem tão fora das normas e fora de seu papel. E não é por acaso. Os Estados Unidos abandonaram o papel de líder mundial. Hoje já não há nada. E na Europa, caso se olhe para os países mais poderosos, ninguém responde. Não há ninguém na parte superior do tabuleiro.
E na debaixo?
Não existe um movimento populista, o que há é uma derrocada do que, na sociedade industrial, criava um sentido: o movimento operário. Ou seja, hoje, não há nem atores sociais, nem políticos, nem mundiais, nem nacionais, nem de classe. Por isso, o que ocorre é totalmente o contrário de uma guerra, com uma máquina biológica de um lado e, do outro, pessoas e grupos sem ideias, sem direção, sem programa, sem estratégia, sem linguagem. É o silêncio.
Relembra um momento semelhante em sua vida?
Talvez existiu a mesma sensação durante a crise de 1929, eu havia nascido um pouco antes. Tudo desaparecia e não havia ninguém, nem na esquerda, nem nos Governos. Mas é verdade que o vazio foi rapidamente preenchido pelo senhor Hitler. O que mais me impressiona agora, como sociólogo e historiador do presente, é que fazia muito tempo que não sentia um vazio assim. Há uma ausência de atores, de sentido, de ideias, inclusive, de interesse. A única preferência do vírus são os velhos. Também não há remédio, nem vacina. Não temos armas, vamos com as mãos limpas, estamos fechados sozinhos e isolados, abandonados. Não se deve ter contato e é preciso se fechar em casa. Isto não é a guerra!
Você tinha 14 anos em 1940, no início da verdadeira guerra, a Segunda Guerra Mundial. Recorda-se daquele momento?
Não. Naquele momento, para um garoto francês de minha idade, não havia nada mais banal que uma guerra franco-alemã. Aquilo já havia ocorrido várias vezes. A ocupação, depois, sim, marcou toda a minha juventude. Agora, é outra coisa: estamos no vazio, reduzidos ao nada. Não falamos, não devemos nos movimentar, nem compreender.
Como chegamos aqui?
Vivemos dois bons séculos na sociedade industrial, em um mundo dominado pelo Ocidente, durante uns 500 anos. Hoje, acreditamos, e foi o caso nos últimos 50 anos, que vivíamos em um mundo americano. Agora, talvez viveremos em um mundo chinês, mas também não estou seguro em absoluto. A América se afunda e a China está em uma situação contraditória, que não pode durar eternamente. Deseja praticar o totalitarismo maoísta para gerir o sistema mundial capitalista. Não estamos em lugar algum, em uma transição brutal que não foi preparada, nem pensada.
Fala de hoje mesmo, em pleno confinamento, ou de nossa época em geral?
De ambos. Mas gostaria de dar o ponto de vista de alguém fechado. Eu mesmo não estou em lugar algum, posto que não tenho o direito de sair à rua.
Essa situação lhe causa angústia?
Não, porque minha vida consiste em estar em casa trabalhando. Sinto-me, de alguma maneira, protegido nas mesmas condições que todos os dias.
Onde está a Europa?
Você escutou muitas mensagens europeias nesses dias? Eu não. Sou muito europeísta, provavelmente muito. A saída do Reino Unido não é pouca coisa. A ascensão dos iliberais como Matteo Salvini na Itália, também não. Esta epidemia tem lugar em um período no qual não sabemos nem o como, nem o porquê. É muito cedo para saber o que fazer economicamente, e politicamente não nos é pedido outra coisa a não ser ficar fechados em casa. Estamos no não-sentido, e acredito que muitas pessoas ficarão loucas pela ausência de sentido.
Haverá um retorno do nacionalismo e do populismo?
Mas isto já estava aqui. Agora, há duas decisões fundamentais para a Europa. Primeiro, a libertação por meio das mulheres. Ou seja, a derrubada da razão no centro da personalidade e a recomposição dos afetos em torno da razão e comunicação, uma sociedade do ‘care’ [em inglês, cuidados]. E segundo, a acolhida dos migrantes, que considero um problema de peso. Nossos países europeus se definem hoje por sua atitude diante dos migrantes.
O vírus não muda tudo? As consequências econômicas, novos costumes sociais com maior distância, outras prioridades...
Não acredito nisso. Haverá outras catástrofes. Consideraria muito estranho que nos próximos dez anos não houvesse catástrofes ecológicas importantes, e os últimos dez anos se perderam. Atenção, as epidemias não são tudo. E acredito que entramos em um novo tipo de sociedade: uma sociedade de serviços, como diziam os economistas, mas de serviços entre humanos. Esta crise elevará a categoria dos cuidadores. Não podem continuar sendo mal remunerados. Ao mesmo tempo, com esta crise há possibilidades de que um choque econômico produza reações que chamo de tipo fascista. Mas não gostaria de falar muito do futuro, prefiro me centrar no presente.
Hoje, o vírus nos governa.
Não o vírus, mas, sim, nossa impotência para combatê-lo, mas acabará sendo encontrada uma vacina.
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“Vivemos um vazio igual ao crash de 1929”. Entrevista com Alain Touraine - Instituto Humanitas Unisinos - IHU