Boa parte dos compositores populares compõem sem conhecimento de como registrar a partitura, quando não sem instrumentos, como é o caso do carioca Moreira da Silva, que contava somente com recursos de percussão rudimentares, porém eficientes, como a caixinha de fósforo; a batucada na mesa e a exploração de sua voz, esta já trazendo uma amplitude de motivos melódicos. Nesse processo, contava com a imitação (mimesis reelaborada) e a memória. A imaginação reprodutora e criadora que lhe era muito relevante.
João Pacífico, paulista de Cordeirópolis, consoante a tal característica, como compositor, mas também sem formação de músico, dedilhava em seu piano imaginário as modas de viola que fariam parte do repertório de grandes intérpretes e figuras do Rádio como Raul Torres. Foi inventor da toada histórica ou a música falada, antes do canto na segunda parte da música, momento em que procurava apenas através da declamação introduzir a história que seria cantada e contada, de modo análogo ao breque de Moreira, ou seja, as piadas que fazia interrompendo a melodia. Todavia, mesmo com performances diferenciadas, ambos cantavam o Brasil dito “moderno”, ou melhor, a modernizar-se e suas ambiguidades. Suas crônicas musicais eram narrativas sociais sobre as transformações no campo e na cidade, em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Os compositores e intérpretes demonstram, além disso, como imaginação individual e imaginação social estão atreladas. Moreira criou suas canções ao cabo de uma gama de ofícios que exerceu ao longo da vida como: operário, entregador de marmitas, chofer de praça, motorista de ambulância, cantor. Pacífico, entre o campo e a cidade, trabalhou como lavrador, na companhia ferroviária paulista e também em suas andanças, porém entre o campo e a cidade desenvolveu suas toadas. Com a metodologia proveniente da semiótica e discussão de alguns conceitos como o de imaginação social, pretende-se, apontar para uma das características das canções: seu registro e feitura como um “antífono”, uma resposta consciente ou inconsciente das transformações históricas do período.
O artigo é de Marcelo Zanotti, graduando dos cursos de história e jornalismo da Unisinos e membro da equipe do IHU.
Se você já ouviu Cabocla Tereza, composição de João Pacífico e Raul Torres, e prestou atenção na letra, deve ter percebido que se trata de uma narrativa pra lá de emocionante. Como se fosse um folhetim ou uma notícia de jornal, João Pacífico criou uma história com início, meio e fim para escritor nenhum colocar defeito.
Clássico do samba de breque, de autoria de Geraldo Pereira, que o compôs especialmente para uma peça teatral apresentada no Morro de Mangueira, onde Geraldo então morava, escrita, dirigida e interpretada por ele mesmo, como número de encerramento. Anos mais tarde, Moreira da Silva comprou de Geraldo Pereira os direitos autorais e de gravação da música por um conto e trezentos.
Cheia de desdobramentos interessantes, a história de Chico Mineiro começou quando a dupla Tonico & Tinoco resolveu desencavar e registrar uma composição antiga do seu repertório de canções de viola. Sob a ameaça de ter o contrato de discos cancelado, os irmãos criaram a canção baseada em um poema de uma lenda que ouviam na infância, a história do Chico Mineiro, eternizando o causo na canção, que se tornou o ponto de virada da sua carreira musical. Composta por Tinoco com a ajuda de Francisco Ribeiro, um amigo que lhe mostrou o poema, a música foi lançada em 1946 e alcançou um grande sucesso de público, caindo no gosto popular e salvando a carreira da dupla que até então só era conhecida regionalmente. A canção acabou se tornando o primeiro grande hit dos irmãos e um clássico da moda de viola, um estilo tipicamente caipira.
Kid Morengueira era o apelido dado a Moreira da Silva em suas músicas, compostas por Miguel Gustavo, e que contavam as suas aventuras. Em Morengueira Contra 007, além de Moreira da Silva e o agente britânico, estrelam Pelé e Cláudia Cardinale. James Bond dá um flagrante em Pelé, que beijava a estrela italiana. Moreira dá um soco em Bond e livra a cara do rei. Mais tarde, ela confessa ser apaixonada pelo sambista e diz que só esteve no Brasil para sequestrar Pelé e evitar que ele jogasse contra a seleção inglesa.
Na obra "Música Caipira – as 270 maiores modas de todos os tempos", o jornalista José Hamilton Ribeiro, comentado a canção Couro de Boi, de Palmeira e Teddy Vieira, diz tratar-se de “uma fábula de família, com todo o jeito de ser algo imemorial, que passa de geração a geração”. E, mesmo sem ir além da especulação, ele está certo.
O samba de breque de Moreira tem adaptação mais fácil para os recursos de gravação do período, sobremaneira do que diz respeito ao seu tempo e andamento é um pouco mais rápida e de andamento mais veloz que imprimem um clima mais leve e alegra a canção, acompanhada com piano e alguns instrumentos percussivos. Já a toada, segue com acompanhamento de viola e violão de modo mais lento, garantindo o tom mais triste da própria história.
As canções, originadas em João Pacífico e Moreira da Silva, mais que atinadas ao contexto de modernização brasileira e reveladoras de porções de um imaginário de um Brasil rural e urbano nas ondas do Rádio são antífonos, ou seja, respostas desses dois cancionistas a essa situação. Ou seja, a imaginação social nada tem de ilusória tem relação profunda com real, mobiliza energias, e é capaz também de forjar trajetórias inventivas, criar, pois a toada histórica e o samba de breque ajudaram os cancionistas a relativamente adquirirem relativa mobilidade e espaço social.