"A cura da 'paralisia espiritual' que acomete a nossa alma, visível na acídia, na indiferença, na indisposição, no desânimo que nos perseguem no dia a dia como perseguiram os contemporâneos de Agostinho e outros que viveram antes e depois dele, 'necessita, de nossa parte, que queiramos ser curados, pois Deus não força de forma alguma nossa vontade, embora a exorte e a convide', segundo São João Batista de La Salle, fundador da congregação religiosa os Irmãos das Escolas Cristãs, os Irmãos Lassalistas".
O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.
"Arrependei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo". A exortação de João Batista, anunciando o Advento salvador de Deus no deserto, proclamada no Evangelho deste domingo, está diretamente relacionada com duas ações anunciadas na leitura: o reconhecimento e a confissão dos pecados e o batismo.
Às palavras de João seguem-se as do próprio Jesus, como lembrou Santo Agostinho, bispo e doutor da Igreja, no século V, em um de seus sermões: "O próprio Jesus Cristo começou a pregação de seu Evangelho desta forma: 'Convertei-vos, porque está próximo o Reino dos Céus'".
A dúvida de muitos ouvintes diante dessas palavras não diz respeito à noção de arrependimento ou de conversão, mas à de proximidade do Reino dos Céus. O que significa dizer que o Reino dos Céus está próximo foi um dos problemas que animou o raciocínio filosófico de Santo Agostinho e o levou a afirmar que assim como o "Reino de Deus está dentro de vós", "o certo é que o tempo de cada um de nós está próximo, porque somos mortais" e, enquanto vivemos, "assustam-nos mais as quedas do que se fôssemos de vidro". Sendo "mais frágeis do que o cristal" por causa da fragilidade inerente à condição humana, complementa, "algumas vezes são os vírus que se multiplicam no interior do homem, outras é a enfermidade que se abate subitamente sobre nós".
A cura da "paralisia espiritual" que acomete a nossa alma, visível na acídia, na indiferença, na indisposição, no desânimo que nos perseguem no dia a dia como perseguiram os contemporâneos de Agostinho e outros que viveram antes e depois dele, "necessita, de nossa parte, que queiramos ser curados, pois Deus não força de forma alguma nossa vontade, embora a exorte e a convide", segundo São João Batista de La Salle, fundador da congregação religiosa os Irmãos das Escolas Cristãs, os Irmãos Lassalistas. Ao refletir sobre essa questão nas leituras da segunda semana do Advento, uma das vias para curar as doenças espirituais, recomendava o sacerdote e pedagogo francês, é retomar "as práticas de virtude nas quais encontrastes dificuldade; mortificai vossas paixões e dedicai-vos a vencê-las".
Muitos não conseguem compreender qual é a relação que se estabelece entre a conversão e a ascese, a mortificação das paixões, conhecida popularmente como penitência, ensinada e repetida incansavelmente pela Igreja desde as suas origens. Mas a relação entre ambas pode ser vista na vida do próprio João Batista, que, como diz São Cirilo de Jerusalém, bispo da Igreja de Jerusalém entre 350 e 386, "dava em si mesmo exemplos de vida ascética", e nas próprias palavras de Jesus, à conclusão da parábola da ovelha perdida, a ser lida ao longo desta segunda semana do Advento: "Assim também, vos digo, haverá mais alegria no céu por um só pecador que faz penitência, do que por noventa e nove justos que não precisam de conversão". Trata-se, precisamente, de, ao converter-se e, no processo de conversão, esforçar-se e exercitar-se na mudança dos hábitos a fim de abandonar os vícios que adoecem a alma e perseguir as virtudes. Dito de outro modo, exercitar-se para vencermos os impulsos desordenados da nossa natureza para assemelhar-nos a Cristo.
A mesma mensagem foi repetida por Santa Teresa de Jesus, carmelita e doutora da Igreja do século XVI, quando advertia e instruía suas irmãs a executar as virtudes enquanto percorriam as moradas do Castelo Interior, a exemplo do que disse às que estavam nas terceiras moradas:
"Aparecem algumas pequenas ocasiões, embora não sejam tão palpáveis, nas quais vos podereis muito bem provar e entender se sois ou não senhoras de vossas paixões. Crede-me: não está o caso em trazer ou não o hábito religioso. Está, sim, em procurar exercitar as virtudes, em ceder a cada passo nossa vontade à de Deus, em ordenar nossa vida de acordo com o que Sua Majestade dispuser para nós. Não em querer que se faça a nossa vontade, mas a dele. (...) Olhemos para as nossas faltas. Deixemos as alheias. É muito próprio de pessoas tão corretas escandalizarem-se de tudo. E, talvez, no que importa, teríamos bastante que aprender com aqueles que nos desedificam".
Aqui surge outra questão para aqueles que buscam viver conforme esses ensinamentos: O que vem a ser a vontade de Deus em cada circunstância? Essa mesma questão foi problematizada por Teresa:
"Qual pensais, filhas, que seja a vontade divina? É que em todo nos tornemos perfeitas, a fim de sermos uma só coisa com o Filho e com o Pai, como Sua Majestade pediu. Vede quanto nos falta para chegarmos a tal ponto! Asseguro-vos que estou escrevendo com bastante mágoa, ao ver-me tão longe - e tudo por minha culpa". A razão da dificuldade, segundo a mística espanhola, é a permanência, dentro de nós, de uns "vermezinhos, os quais nem se dão a perceber e acabam por nos roer as virtudes. É o amor-próprio. A estima de si mesmo. O hábito de julgar os outros, embora em coisas pequenas. As faltas de caridade com os próximos, não os amando como a nós mesmos. (...) Nunca chegaremos à perfeição, às disposições necessárias para aderir totalmente à vontade de Deus". Quanto a esta, assegura, "só duas pede o Senhor: amor de Deus e amor do próximo. Nisso devemos trabalhar".
Ao meditar sobre as leituras evangélicas desta segunda semana do Advento, São João Eudes, fundador da Congregação de Jesus e Maria para formação doutrinal e espiritual de padres e seminaristas, no século XVII, dizia a seus contemporâneos: "Nosso boníssimo Salvador nos deu o seu Coração, não só para que fosse objeto de nosso culto e adoração, mas também como refúgio e asilo seguro em todas as nossas necessidades. Portanto, recorramos a Ele em todos os nossos assuntos. Busquemos nele consolo em nossas tristezas e aflições. Coloquemo-nos sob sua proteção contra a malícia do mundo, contra nossas paixões e às armadilhas dos demônios. Recolhamo-nos nesse asilo de bondade e de misericórdia, para estar abrigado dos perigos e misérias de que está cheia a presente vida". O caminho, como todo mundo sabe, é a oração.
Que possamos nos converter neste Advento Àquele que nos purifica, que cura as enfermidades da alma e é o Coração no qual encontramos não só consolo para as tristezas e aflições, mas, como diz São João Eudes, "misericórdia" diante das nossas próprias misérias e as da vida presente.