"Ainda que quase meio século antes de nós, os personagens de "Gostaria que você estivesse aqui", segundo romance de Fernando Scheller publicado em 2021, jornalista curitibano que viveu a década de 80 e que hoje se aventura na literatura, vivem um Brasil que lembra 2022", escreve Stephany Chagas Oreli, estudante de Jornalismo da Unisinos e integrante da equipe do IHU, em resenha crítica.
Capa do livro "Gostaria que você estivesse aqui", de Fernando Scheller. (Foto: divulgação)
Dica: enquanto lê esta resenha, ouça a música Love Love, do trio Gilsons, surgido em 2018 para o MPB brasileiro. Por quê? Você vai entender. Melhor, você vai sentir.
Estamos em 1980, o Rio de Janeiro já é insuportavelmente quente e a cidade maravilhosa proporciona noites inesquecíveis em meio a mata atlântica típica da região mesclada aos prédios que ainda são singelos em comparação a grande metrópole que se ergueu nesse mesmo local. Cinco pessoas enfrentam um vírus mortal que estava surgindo ao mundo, secreto e misterioso, enquanto o futuro do país era incerto, recém saído da Ditadura Militar. A vontade de falar o que pensa, discutir ideias e de decidir sobre a forma como vamos viver em sociedade estava à flor da pele. O desejo de se afirmar quem se quer ser, livre do preconceito e da violência do outro estava surgindo, recém engatinhando.
A ditadura foi superada na metade da década e a redemocratização deixou de ser um ponto distante que se admira ao fundo do horizonte de Copacabana, tornando-se um navio que se encaminha ao porto, aguardado com muita expectativa pela população empobrecida e oprimida que anseia por dignidade, e por seus amantes, que fielmente se opuseram aos anos de chumbo, e que agora aproveitam a bondade do universo que lhes deixava sonhar pela primeira vez em tanto tempo. Ao final da década, em 1988, o Brasil dá o seu maior passo em direção a humanidade: o presidente José Sarney, eleito indiretamente devido a morte precoce de Tancredo Neves, que sequer assumiu o governo, promulgou a Constituição Cidadã, que rege, até hoje, o supremo poder desse país, lutando, sozinha, para que a tirania não tenha o direito de continuar escravizando uma população criada sob dor e sofrimento. No ano seguinte, o Diretas Já!, movimento popular que incessantemente exigiu a eleição direta durante a ditadura militar, efetivou o seu objetivo: o Brasil elegeu, pela primeira vez após a redemocratização, um presidente de modo direto, que mais tarde sofreria um processo de impeachment pelo crime de corrupção, evidenciando as chagas que parecem imutáveis na história desse país e que ainda enfrentamos.
Nestes mesmos anos, a música vive uma revolução, o rock surge como um grito de rebeldia e bandas críticas à realidade se tornam parte do dia a dia da população brasileira. Nomes como Beatles, Michael Jackson, Madonna, a níveis internacionais, e Legião Urbana, Paralamos do Sucesso, Capital Inicial, Tim Maia, Caetano Veloso e Elis Regina embalam a vida dos brasileiros que aprendiam a tornar a música uma companheira dinâmica, capaz de transmitir alegria, tristeza, angústia, raiva, esperança e, principalmente, vontade de viver. A Música Popular Brasileira (MPB) é consolidada, ocorre a primeira edição do Rock In Rio (1985) e o Sambódromo da Marquês da Sapucaí é inaugurado, dando início a tardia liberdade cultural da população negra, que produz, todo ano, um dos maiores espetáculos artísticos do mundo: o Carnaval do Rio de Janeiro.
A liberdade estava ávida no imaginário carioca e a rebeldia tomava forma através da moda, da sexualidade livre, da música e do feminismo. Roupas coloridas, calças rasgadas, cabelos nada retos, relações sexuais sem a necessidade do matrimônio e a epidemia de AIDS são alguns dos movimentos que refletem como a vida pessoal brasileira estava mudando.
No livro, a vida carioca é abordada a partir de Baby, Inácio, Rosalvo, Cézar e Selma que se entrelaçam de modo direto e indireto, enquanto vivem momentos distintos, com idades diferentes, mas que dividem o anseio pela liberdade e pelo direito de viver no Brasil de 1980. De modo íntimo, profundo e verdadeiro, Fernando Scheller mostra o desenvolvimento de jovens que estão iniciando a vida, aprendendo a engatinhar para longe dos pais, enquanto experimentam a universidade e a vida amorosa, com todas as dúvidas, inseguranças e desavenças que se é possível ter nessa época.
Entre descobrimentos, sofrimentos, lutas e dores, os personagens são desenvolvidos à luz da essencialidade humana: no erro e na contradição. Narrando momentos de raiva, de desejo, de felicidade e de liberdade, Fernando nos faz sentir em casa, tal qual nos sentimos quando estamos sozinhos, apenas com nós mesmos, ouvindo apenas a nós mesmos. Ao mesmo tempo, Fernando evidencia o sofrimento interno que assola a vida de um humano LGBTQIA+ no Brasil da década de 1980, que ainda é o maior assassino desta população no mundo, enquanto o indivíduo luta pelo direito de existir e, ao mesmo tempo, contra si mesmo, que se condena por ser como é. Para além do Ser violentado, Fernando também traz a dor de ser mãe e pai de alguém que terá sempre um alvo nas costas, marcado apenas por ser quem nasceu para ser.
Segundo o Portal dos Jornalistas, "Fernando Scheller nasceu no Paraná, em 1977. É bacharel em Comunicação Social – Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, em 1999. Concluiu em 2006 mestrado em Global Political Economy [Política Econômica Global] pela Universität Kassel, na cidade de Kassel, Alemanha". Atualmente, trabalha no O Estado de São Paulo, conhecido como Estadão.
Além de "Gostaria que você estivesse aqui", Fernando é autor de "O Amor Segundo Buenos Aires", de 2016. No vídeo abaixo, Scheller narra sobre como foi o processo de criação desse primeiro livro, enquanto disserta sobre a literatura latinoamericana.
Aproveito para agradecer ao meu melhor amigo, Gustavo, por me presentear com essa obra. Sabendo da minha vontade em lê-lo, alegrou-me, na surpresa, com esse presente e eu não poderia ser mais grata.