08 Junho 2022
"A demonização de Exu tem uma longa história que remonta aos missionários cristãos europeus no século XIX", afirma Luís Corrêa Lima, padre jesuíta e professor do Departamento de Teologia da PUC-Rio, em artigo publicado por Dom Total, 06-06-2022.
O desfile de carnaval de 2022 marcou a volta de uma grande festa popular, após longa restrição e duros transtornos causados pela pandemia. As escolas de samba trouxeram com muita exuberância enredos da ancestralidade africana e temas fortemente antirracistas. Expressaram grandes aspirações e ideais de se superar o racismo estrutural na sociedade, bem como a intolerância contra as religiões de matrizes africanas. O ponto alto do carnaval carioca foi a vitória da escola Grande Rio, com o enredo “Fala, Majeté! Sete chaves de Exu”, apresentando positivamente a figura deste orixá que é tão demonizado. Na Avenida Marquês de Sapucaí, em um grande cenário que tem ao fundo o Cristo Redentor do Corcovado, Exu saiu vitorioso.
A demonização de Exu tem uma longa história que remonta aos missionários cristãos europeus no século XIX, atuando na África entre povos iorubás. Tais missionários se depararam com o culto deste orixá que é porta-voz da divindade, traz consigo orientações e ordens, e faz a ponte entre este mundo e o além, especialmente em consultas de oráculos. Exu é também o patrono da cópula, que gera filhos, garante a continuidade do povo e perpetua a humanidade. Os missionários se espantaram com tal conjunto e o associaram ao deus fálico greco-romano Príapo e ao diabo da tradição judaico-cristã. Fizeram de Exu o símbolo de toda maldade, perversidade e ódio, que se opõe à bondade, à pureza e ao amor de Deus.
A vinda de africanos escravizados para o Brasil gerou um sincretismo religioso em que Oxalá foi associado a Jesus Cristo, Iemanjá a Nossa Senhora, outros orixás a santos católicos e Exu ao diabo. Nas últimas décadas a disseminação de igrejas neopentecostais, com cultos espetaculares e ampla presença na mídia, instigou seus seguidores a acreditarem na onipresença do demônio e sua ação, identificando-o com entidades de umbanda, candomblé e espiritismo, e atribuindo-lhe todos os males que afligem as pessoas. Nos cultos neopentecostais, os supostos demônios Exu e Pomba Gira são invocados para se manifestarem, e em seguida serem humilhados e exorcizados. Os reflexos negativos desta prática são sentidos em inúmeros terreiros, que sofrem com depredação feitas por fanáticos e com ameaça de morte a seus frequentadores.
Na Igreja Católica vem ocorrendo uma transformação na relação com as religiões não cristãs. O Concílio Vaticano II (1962-1965) exorta a nada se rejeitar do que há de justo e de santo nestas religiões, pois refletem o raio da verdade que ilumina todos os seres humanos. Os cristãos são incentivados a dar testemunho de sua fé, ao mesmo tempo que reconheçam e promovam os bens espirituais e morais, bem como os valores socioculturais que se encontram em outras religiões. A Campanha da Fraternidade Ecumênica de 2021 repudiou a perseguição a religiões de matriz africana, reconhecendo tratar-se de racismo religioso. O texto-base da Campanha afirma que estas tradições religiosas significam para os negros resistência e são fonte de vida. Sempre que alguém em nome da fé cristã incentiva o ataque a tais tradições, está rompendo com o projeto de paz que representa a fé em Jesus Cristo.
Convém lembrar que também Jesus foi demonizado por seus adversários, que o acusaram de agir em nome do príncipe dos demônios ao realizar exorcismos. E ele não só fez exorcismos, mas também defendeu categorias de pessoas demonizadas como o samaritano, então considerado membro de um povo que Deus detesta. Jesus dá como exemplo do amor que conduz à salvação o modo de agir de um samaritano.
Crendo ou não em Exu, é preciso respeitar seus adeptos que o consideram um mensageiro detentor do poder da transformação e do movimento, alguém que habita as estradas, as encruzilhadas e guarda a porta das casas. Ele é um orixá controvertido e não domesticável, a quem não cabe classificar como santo ou demônio. A cidadania e a liberdade religiosa são conquistas civilizatórias imprescindíveis, que permitem apreciar devidamente a ancestralidade plural e diversa do Brasil, tão bem celebrada em um espetáculo majestoso.
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Exu Vitorioso no Carnaval: A desdemonização de um orixá. Artigo de Luís Corrêa Lima - Instituto Humanitas Unisinos - IHU