"A vitória de Exu na avenida serviu um pouco para 'balançar' nossa casa sofrida e trazer festa para um povo entristecido e abafado. Ele vem sempre para 'bagunçar a casa', quebrar a seriedade bem comportada e apontar dimensões esquecidas que habitam em cada um, e que foram profundamente reprimidas nesse tempo da epidemia, mas tempo que é também do arbítrio político, do fechamento e da 'celebração' do fascismo. Viva Exu, viva a raiz popular que ousa mostrar o seu rosto festivo e disruptor", escreve Faustino Teixeira, teólogo, colaborador do Instituto Humanitas Unisinos – IHU e do canal Paz e Bem.
A linda vitória da Acadêmicos do Grande Rio é, na verdade, a vitória contra a intolerância religiosa sofrida pelas religiões africanas e de matriz afro-brasileira em nosso país.
Num tempo difícil em que cresce a repressão contra tais tradições, uma vitória assim é motivo de grande alegria: é a vitória do “som Brasil” [1], para expressar uma noção bonita do antropólogo Pierre Sanchis, que sempre celebrou o “toque” do sincretismo e da diversidade brasileira, que continuam fazendo vibrar uma modulação essencial da cultura brasileira.
Vejo também como um grito que pede respeito, desmistificando uma das figuras tão mal vistas por segmentos da população brasileira e em particular de grandes camadas do mundo evangélico e pentecostal, bem como do catolicismo carismático.
O enredo e o samba da Escola empolgaram a avenida e trouxeram as chaves de Exu para abrirem os corações e mentes dos brasileiros preconceituosos, oferecendo uma possibilidade lírica e festiva para quebrar tabus que reafirmam o passo da exclusão do outro.
O orixá vem celebrado e convidado a falar de si para a multidão na Marques de Sapucaí. Foi uma vitória dos carnavalescos Leonardo Bora e Gabriel Haddad, que tiveram essa ousadia de apresentar de forma brincalhona e lúdica essa figura do panteão afro. Em passagem do samba enredo celebramos:
“Exu Caveira, Sete Saias, Catacumba
É no toque da macumba, saravá, Alafiá
Seu Zé, malandro da encruzilhada
Padilha da saia rodada, ê Mojubá
Sou Capa Preta, Tiriri
Sou Tranca Rua, amei o Sol
Amei a Lua, Marabô, Alafiá
Eu sou do carteado e da quebrada
Sou do fogo e gargalhada, ê Mojubá”
Temos por exemplo no Candomblé, o maravilhoso rito onde os participantes cedem seu corpo para a dança dos deuses, como mostrou tão bem Roger Bastide:
“Os gestos, porém, adquirem maior beleza, os passos de dança alcançam estranha poesia. Não são mais costureirinhas, cozinheiras, lavadeiras que rodopiam ao som dos tambores nas noites baianas; eis Omolu recoberto de palha, Xangô vestido de vermelho e branco, Iemanjá penteando seus cabelos de algas. Os rostos metamorfosearam-se em máscaras, perderam as rugas do trabalho cotidiano, desaparecidos os estigmas desta vida de todos os dias, feita de preocupações e de miséria; Ogum guerreiro brilha no fogo da cólera, Oxum é toda feita de volúpia carnal. Por um momento, confundiram-se África e Brasil; aboliu-se o oceano, apagou-se o tempo da escravidão” [2].
Pierre Verger lembra em texto semelhante que naquele momento do ritual o participante se transforma em rei e rainha, superando ritualmente os embates do cotidiano doloroso. Esse grande estudioso e iniciado no candomblé sublinha:
“O Candomblé é para mim muito interessante por ser uma religião de exaltação à personalidade das pessoas. Onde se pode ser verdadeiramente como se é, e não o que a sociedade pretende que o cidadão seja. Para pessoas que têm algo a expressar através do inconsciente, o transe é a possibilidade do inconsciente se mostrar" [3].
Nos trabalhos preciosos de Reginaldo Prandi, podemos captar com clareza esse manancial das religiões de matriz afro-brasileira, quando o “eu” se torna sagrado e poderoso, podendo romper grilhões de opressão e revelar segredos desconhecidos [4]. O orixá se desdobra em orixá da pessoa.
Exu exerce um papel fundamental para abrir chaves, abrir trabalhos. Como indica Reginaldo Prandi, os filhos de Exu são gente que traduzem a “ambiguidade” que marca o povo brasileiro: eles são agitados, irônicos, manhosos, como os malandros brasileiros, no seu sentido mais nobre [5].
Exu é alguém que se solta, de fala fácil, com a sexualidade à flor da pele. A rua é o seu lugar predileto, a avenida é o seu lugar predileto. Os exus e as pomba giras são ágeis, sedutores: adoram o espaço aberto e a cachaça. Não se caracterizam pela maldade, como certa visão preconceituosa buscou apresentar na opinião pública. Exu é gente matreira, ardilosa, que entende bem de artimanhas, mas não guarda rancor. É gente brincalhona, pautada pela alegria, e amante das comidas e bebidas.
A vitória de Exu na avenida serviu um pouco para “balançar” nossa casa sofrida e trazer festa para um povo entristecido e abafado. Ele vem sempre para “bagunçar a casa”, quebrar a seriedade bem comportada e apontar dimensões esquecidas que habitam em cada um, e que foram profundamente reprimidas nesse tempo da epidemia, mas tempo que é também do arbítrio político, do fechamento e da “celebração” do fascismo. Viva Exu, viva a raiz popular que ousa mostrar o seu rosto festivo e disruptor.
A história da discriminação religiosa no estado do Rio de Janeiro foi objeto de um estudo cuidadoso de Denise Pini Rosalem da Fonseca e Sonia Maria Giacomini [6]. Em seu artigo sobre intolerância religiosa Sônia divulga dados que já são mais antigos, mas que impressionam: “Das 840 casas que responderam à questão específica sobre discriminação, mais da metade informou ter sido alvo de alguma ação qualificada como 'discriminação ou agressão por motivo religioso'” [7].
Um dos grandes estudiosos brasileiro das religiões afro é Reginaldo Prandi. Tive a alegria de contar com um artigo seu no livro que organizei junto com Renata Menezes sobre as religiões e o Censo de 2010 [8]. Com base nos dados do Censo de 2010, Prandi indicou que em 2010 as religiões afro-brasileiras contavam com cerca de 0,3% de adeptos declarados. É verdade que nem sempre os dados apresentados são representativos pois escamoteiam a dupla ou tripla pertença religiosa que ocorre no Brasil. Mesmo assim, a declaração de crença é baixa. Os dados do Censo mostram ainda que na ocasião a Umbanda estava em decréscimo, enquanto o Candomblé apresentou leve crescimento. O Censo mostrou que a presença destas tradições no país “reduziu-se a um patamar estagnado abaixo do nível do crescimento vegetativo” [9].
Em recente artigo no Jornal O Globo, de 22/04/2022 [10], Reginaldo Prandi comenta a presença das tradições afro-brasileiras no carnaval carioca em 2022. Dizia que “os orixás estão em peso na avenida”. De fato, isto ocorreu, para o maravilhamento das pessoas que assistiram o espetáculo, seja ao vivo ou pela televisão. Só no Rio, comenta Prandi, seis das doze escolas de samba do grupo especial honraram a cultura afro-brasileira.
Buscando interpretar esta popularidade, Prandi sublinha que “à medida que aumenta a intolerância religiosa, a fé afro-brasileira é acolhida no campo cultural” [11]. Estou plenamente de acordo com o pesquisador e amigo paulista. O carnaval brasileiro sempre esteve ligado ao universo afro-brasileiro, com suas cores, energia e religiosidade empolgantes. A vitória exemplar da Grande Rio proporcionou visibilidade única ao que vem considerado o núcleo basilar das religiões de matriz afro-brasileira: os Exus.
No livro Mitologia dos Orixás [12], Reginaldo Prandi assinala que Exu é o orixá que sempre está presente, e o culto dos demais orixás sempre “depende de seu papel de mensageiro”. Sem o exu nem os orixás ou os humanos podem se comunicar. É a sua presença que traduz a “porta de entrada” dos rituais, e sem a sua participação não pode acontecer nem movimento, reprodução ou qualquer outra dinâmica de presença criativa nos rituais [13].
Mitologia dos Orixás
Infelizmente, guardamos uma imagem negativa de Exu, que é resíduo da identificação feita pelos europeus entre exu e o diabo. Nada mais grosseiro ou falso. Exu é mensageiro, esse é o melhor modo de identifica-lo [14]. É o mensageiro que das terras africanas e povos iorubas, perambulava pelas aldeias em busca de solução para os problemas mais aflitivos dos seres humanos. É o mensageiro e alvissareiro que traz a boa notícia em favor da manutenção da saúde e do bem-viver, sem desconhecer ou abordar igualmente as desventuras que marcam a trajetória dos humanos.
[1] Pierre Sanchis. Religião, cultura e identidade. Petrópolis: Vozes, 2018.
[2] Roger Bastide. O candomblé da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 39.
[3] Disponível aqui (acesso em 27/04/2022).
[4] Reginaldo Prandi. Os candomblés de São Paulo. São Paulo: Hucitec/Edusp, 1991, p. 123.
[5] Ibidem, p. 133-134.
[6] Sônia Maria Giacomini. “Intolerância religiosa”: discriminação e cerceamento do exercício da liberdade religioso. In: Denise P. R. Da Fonseca & Sônia Maria Giacomini. Presença do Axé. Mapeando terreiros no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: PUC-RJ/Pallas, 2013, p. 133-157.
[7] Ibidem, p. 139.
[8] Reginaldo Prandi. As religiões afro-brasileiras em ascensão e declínio. In: Faustino Teixeira & Renata Menezes (Orgs). Petrópolis: Vozes, 2013, p. 203-218.
[9] Ibidem, p. 208-209.
[10] Ruan de Souza Gabriel. Do candomblé para o romance policial. O Globo, 22/04/2022 – Segundo Caderno, p. 6.
[11] Ibidem, p. 6.
[12] Reginaldo Prandi. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
[13] Ibidem, p. 20-21.
[14] Ibidem, p. 17.