Leituras simplificadas do Brasil amarram a nação aos ‘salvadores da pátria’. Entrevista especial com Roger Laureano

Para o sociólogo, por não buscarmos compreender as complexidades do país, acabamos nos contentando com respostas rápidas que não resolvem as questões de fundo. Um prato cheio para os líderes carismáticos que adotam o messianismo na política

Foto: Universidade libertaria

Por: João Vitor Santos | 22 Fevereiro 2021

Um célebre personagem interpretado por Lima Duarte, o Sassá Mutema, do final da década de 1980, ficou no imaginário popular, mas a mensagem que o autor Lauro César Muniz quis passar com o caricato boia-fria que chega ao círculo político é mais profunda. Sassá é tomado como ‘o salvador da pátria’, pois como homem simples do campo e das aulas do Mobral é capaz de resolver todos os vícios políticos e problemas da nação. Ou seja, qualquer semelhança entre a novela e a realidade não é mera coincidência. Para o professor Roger Laureano, está impregnado na cultura brasileira esse desejo de líderes messiânicos capazes de salvarem o povo de suas mazelas. “É mais fácil se vender como salvador da pátria para aqueles que precisam urgentemente de alguma salvação. Assim, as condições econômicas parecem parte do problema”, observa.

 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Laureano ainda detalha que a cultura de análises rápidas e rasas da realidade leva a respostas simplistas para os problemas do Brasil. “O desafio está na mudança de mentalidade que isso exige diante da nossa incessante busca imediatista por resultados. Em vez de montar as peças, optamos pelos remendos improvisados, tentando combater algumas infiltrações nas estruturas do Estado”, explica. Como na metáfora que usa, reparamos o vazamento, mas não trocamos a tubulação que vai ruir e causar novas infiltrações. “Assim, passamos reformas manquejadas que terão que ser refeitas em menos de uma década. Ou criamos a PEC 55, do teto de gastos, para pouco tempo depois estar discutindo o fim do teto de gastos e, se a PEC for derrubada, para que em dois anos comecemos a discutir o retorno do teto de gastos”, completa.

 

No entanto, o sociólogo reconhece que a superação não é fácil e passa por outras questões profundas, como o próprio autoritarismo brasileiro. “A superação desse paradigma autoritário passaria, portanto, pela superação das condições que permitem sua existência, da economia à cultura. O problema é que provavelmente existem muitas outras variáveis que geram esse produto de adoração a figuras autoritárias. Encontrar e compreender todas elas dentro dessa teia de complexidade é um desafio ainda incompleto”, detalha.

 

O que não quer dizer que essa seja uma tarefa impossível. Por isso, propõe que busquemos a complexidade das crises para construir transições. “A decisão a ser feita é entre um esforço paulatino, mas contínuo, que busca construir o país prudentemente, colocando cada reforma em seu devido lugar num planejamento de longo prazo, ou permanecer com a infrutífera pressa que nos levará”, ilustra. Além disso, Laureano indica que é preciso conhecer os mecanismos pelos quais ascendem os líderes messiânicos, bem como a ode que os sustenta. E com isso não está dizendo para centrar olhares nos seguidores fanáticos e fiéis que não elegem um presidente. “Muitas das mãos que votaram em Jair são as mesmas que acreditaram em Lula em 2002. Isso não significa que todos os eleitores sejam carismaticamente dominados. Muitos votos, inclusive de líderes populares, são dados por interesse ou por uma confluência de valores morais”, analisa.

 

Por fim, Laureano ainda aproxima sua análise da atual conjuntura nacional e global. E, de novo, provoca a pensar além da ideia do fim do trumpismo com a eleição de Joe Biden, nos Estados Unidos, ou da possibilidade de reeleição de Jair Bolsonaro pela prorrogação do Auxílio Emergencial no Brasil pandêmico. “Com certeza Bolsonaro passará, mas, enquanto algumas condições permanecerem as mesmas, outros virão. Eles serão idênticos em muitos comportamentos, vão carregar suas próprias falsas promessas de salvação”, resume.

 

Roger Laureano (Foto: Arquivo Pessoal)

Roger Laureano é bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, mestre em Sociologia Política e doutorando em Sociologia e Ciência Política, também pela UFSC. É pesquisador do Núcleo de Estudos do Pensamento Político - NEPP/UFSC e professor universitário.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Em seu artigo, intitulado ‘Deus ex machina’, o senhor fala que no Brasil se sonha um país para logo ali adiante, num futuro bem próximo, e que isso esvazia debates sobre projetos de longo prazo e políticas públicas cientificamente embasadas. Quais seriam os principais projetos e políticas públicas que temos negligenciado e quais os desafios para que, de fato, os encaremos?

Roger LaureanoJohn Dunn, um famoso historiador das ideias e da democracia, escreveu certa vez que nunca viu um único governo tornar um país próspero, mas que qualquer governo é capaz de levar um país à ruína. Podemos dizer, com isso, que a penalização pelos nossos erros na condução política e econômica de uma nação é sempre maior do que os louros que recebemos pelos nossos acertos.

Se uma reforma ou uma proposta de política pública, seja ela qual for, acabar assumindo tons de panaceia, é porque, ainda que seja positiva, já nasce prometendo mais do que é capaz de entregar. As reais mudanças são paulatinas e dependem mais de uma sucessão de projetos adequadamente executados do que de propostas perfeitas. Não se trata, portanto, de um projeto específico que esteja sendo negligenciado, mas de um planejamento que não foi construído.

Podemos e devemos falar de reforma política, tributária ou qualquer outra, desde que estejamos cientes de que elas, isoladamente, não solucionarão nenhum dos nossos grandes problemas. Todas elas podem, contudo, ser parte de um planejamento que levará a esse resultado no futuro, e devem ser pensadas dessa forma, como peças de um país que está sendo construído aos poucos.

 

 

Mudança de mentalidade

O desafio está na mudança de mentalidade que isso exige diante da nossa incessante busca imediatista por resultados. Em vez de montar as peças, optamos pelos remendos improvisados, tentando combater algumas infiltrações nas estruturas do Estado. Assim, passamos reformas manquejadas que terão que ser refeitas em menos de uma década. Ou criamos a PEC 55, do teto de gastos, para pouco tempo depois estar discutindo o fim do teto de gastos e, se a PEC for derrubada, para que em dois anos comecemos a discutir o retorno do teto de gastos.

 

 

O meu ponto aqui não está no conteúdo dessas medidas, mas na política do paliativo. Nenhuma reforma satisfaz todos os seus objetivos senão como peças dentro de um planejamento político e econômico. Em razão disso, para o público, a percepção que fica é que nada funciona, e ele vai pedir socorro ao primeiro salvador da pátria que prometer entregar todos os resultados amanhã cedo, como se fosse tudo uma questão de força de vontade. Esse desespero é compreensível, mas ardiloso. É através dele que chegamos aqui.

Resumindo, falta uma mudança de mentalidade. A decisão a ser feita é entre um esforço paulatino, mas contínuo, que busca construir o país prudentemente, colocando cada reforma em seu devido lugar num planejamento de longo prazo, ou permanecer com a infrutífera pressa que nos levará à ruína citada por John Dunn. Algumas pessoas mais pessimistas diriam que já tomamos essa decisão há muito tempo.

 

John Dunn (1940) é professor emérito de Teoria Política no King's College, Cambridge, e professor visitante na Escola de Graduação em Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Chiba, Japão. Entre seus livros mais recentes estão Setting the People Free: The Story of Democracy (2005) e Breaking Democracy's Spell (2014) | Foto: British Academy

 

IHU On-Line – O senhor também destaca o peso da dominação carismática, que de tanto buscar Deus para resolver nossos problemas acabamos nos entregando a ‘falsos profetas’. Mas, ao longo da História do Brasil, especialmente a partir de Pedro I, sempre houve movimentos deliberados para a construção de líderes que fossem salvar – ou mesmo criar e unificar – a nação. Em que medida essa dominação carismática se dá pelo nosso desejo ou pela imposição narrativa desses estamentos burocráticos de que Raymundo Faoro trata em sua obra? 

Roger Laureano – Para Raymundo Faoro, as revoltas salvacionistas surgem pela via oposta: não são narrativas impostas pelo estamento burocrático, mas reações ao estamento. Acredito que ele esteja correto na maior parte dos casos. Normalmente os líderes carismáticos causam distúrbios e geram inseguranças que o estamento patrimonialista não está disposto a sentir. Vemos isso ocorrer com mais precisão especialmente na história recente da democracia brasileira, em que muitos presidentes ascenderam ao cargo máximo do país prometendo, de maneira difusa, enfrentar esse estamento, que por vezes aparece na narrativa como “tudo que está aí”.

 

 

As promessas de pôr fim ao patrimonialismo brasileiro se estenderam por diferentes partes do espectro político. O Collor era o caçador de marajás, o Lula cresceu se vendendo como uma esperança de moralidade no espaço público do país, e o Bolsonaro, de alguma maneira, tornou-se, aos olhos de parte da população brasileira, o incorruptível. Essas promessas não vinham das estruturas estabelecidas do Estado, mas de agentes que prometiam agir contra elas.

 

 

O patrimonialismo é um problema real do Brasil, mas foi combatido apenas por uma narrativa moralista que sempre se provou fraudulenta e eleitoreira. Nossos caçadores sempre terminaram abraçados com os marajás, seja por aliança, seja por cooptação. Parte do povo se engajou nesses discursos porque o seu sentimento de revolta era real. Mas, em todos os casos, essas revoluções já nasceram caducas e estavam destinadas a terminar onde começaram. Dessa maneira, sem ter intenção, o estamento gerou diversas revoltas contra ele mesmo, mas sempre conseguiu neutralizar o inconformismo. Ainda assim, é sempre uma questão de tempo até surgir outro líder, com o mesmo discurso moralista, para combater “tudo que está aí”.

 

 

IHU On-Line – Ao longo da história, quais foram sempre nossos limites para efetivamente interpretar – e agir sobre – o Brasil que vivemos? Somos sempre reféns das interpretações das elites econômicas, intelectuais e burocráticas/políticas? Por quê?

Roger Laureano – As interpretações dominantes são, por definição, das elites, sejam elas econômicas, intelectuais ou políticas. Penso aqui no sentido sociológico do termo: elite como um grupo que ocupa o centro de um campo social e exerce grande influência sobre a narrativa daquele campo. Se alguma interpretação surgir na periferia da esfera de valores de determinada sociedade, ela só vai se tornar relevante se a elite de um campo social por algum motivo adotar aquela interpretação, ou se esse conjunto periférico de valores acabar sendo alçado à posição de elite.

O que não vai acontecer é um valor periférico gerar uma interpretação dominante enquanto permanecer periférico. Nada disso é um problema. Gerar esse tipo de interpretação é justamente uma das funções de uma elite intelectual ou política. O que realmente dificulta interpretar o Brasil é se desvencilhar das narrativas facciosas que tomam conta do debate público, normalmente resultando em simplismo.

A Lava Jato, por exemplo, foi um fenômeno muito singular da história do Brasil e deveria ser analisada com a complexidade que um acontecimento dessa relevância social exige, mas demoraram alguns anos para surgir interpretações que não restringissem a operação a uma conspiração da CIA ou à hagiografia de um juiz. Esse simplismo é resultado de interpretações que foram celebradas a partir de um facciosismo típico da polarização brasileira recente.

 

 

IHU On-Line – Outra discussão que o senhor propõe é acerca da raiz brasileira do autoritarismo. Mas o senhor também diz que a psique que nos mantém conectados à ideia de um profeta que resolverá nossos problemas é muito próxima das velhas monarquias do Antigo Regime. Por que ainda não conseguimos romper com isso? Seria o autoritarismo que nos impede ou a incapacidade de elaboração do verdadeiro conceito de revolução, aquela que emerge de baixo?

Roger Laureano – Sempre me pergunto se existe algum meio para quebrar esse encantamento autoritário, mas é um quebra-cabeça ainda sem solução. Parte da resposta está nas condições que possibilitam a ascensão de falsos salvadores da pátria. Sua força é maior em situações de desesperança, como na fome, onde aquele imediatismo que conversamos antes se faz mais urgente. É mais fácil se vender como salvador da pátria para aqueles que precisam urgentemente de alguma salvação. Assim, as condições econômicas parecem parte do problema.

Os outros embarcam depois, enxergando no líder um sujeito dotado de missões divinas. Além disso, não podemos ignorar a dimensão cultural da espiritualidade fluida de parte dos brasileiros. Não é incomum conhecermos indivíduos que são católicos, mas frequentam um centro espírita, carregam superstições oriundas de uma terceira religião, e tantas outras combinações que podem existir com essas características. Para um fiel mais ortodoxo, seria difícil cair em um messianismo tão submisso a um político sem enxergar nisso uma contradição herética, mas isso não é um problema para essa religiosidade mais fluida.

Podemos ainda acrescentar outros sintomas clássicos desse autoritarismo, como a cordialidade de Buarque de Holanda, o paternalismo e os velhos caudilhos. O foco dessa conversa está concentrado no nível nacional, mas esse poder também se manifestou ao longo da história em grupos menores liderados por fazendeiros ou militares, que reuniam comunidades em seu entorno.

 

A obra de Holanda, Raízes do Brasil, em que trata da cordialidade, foi duas vezes tema da Revista IHU On-Line. Na última, em 2016, foi abordada a atualidade da obra nos seus 80 anos

 

É uma tendência macrossocial que muitas vezes se reproduz em esferas políticas menores. A superação desse paradigma autoritário passaria, portanto, pela superação das condições que permitem sua existência, da economia à cultura. O problema é que provavelmente existem muitas outras variáveis que geram esse produto de adoração a figuras autoritárias. Encontrar e compreender todas elas dentro dessa teia de complexidade é um desafio ainda incompleto, mas necessário para o fortalecimento da democracia brasileira.

 

 

IHU On-Line – Como conceber uma fé e esperança que não sejam lastreadas no desamparo e que se acalentem com migalhas para matar a fome? Em que medida vivemos isso no Brasil de hoje lutando por um Auxílio Emergencial ao invés de uma efetiva política pública de renda básica? De outro lado, como manter uma população viva, evitar que morra de fome, enquanto se elaboram remédios mais eficientes, embora também amargos e morosos?

Roger Laureano – Se mesmo a prorrogação do Auxílio Emergencial é objeto de dúvida, um debate real sobre a renda mínima continua distante. É claro que o Auxílio se configura como uma política paliativa, mas nesse caso é justificado pelo contexto. A renda mínima demandaria um tempo de deliberação que o Legislativo não poderia perder diante da urgência da pandemia. Mas, de fato, a superação das condições econômicas que permitem o crescimento de lideranças dessa natureza passa por soluções políticas que desassociem o fim da fome a relações personalistas.

O problema está no debate mais amplo que perpassa toda a opinião pública. Bolsonaro nem sequer foi o principal articulador do Auxílio Emergencial, mas colheu pessoalmente os frutos da política em sua popularidade. É comum que o Poder Executivo tenha competência para absorver as benesses de medidas políticas dessa natureza, mesmo que de forma imerecida.

Essa reivindicação bem-sucedida cria um dilema: por um lado, o triunfo sobre a miséria parece ser condição necessária – ainda que não suficiente – para superarmos nossas tendências autoritárias; por outro, muitas medidas que buscam conter a fome parecem fortalecer laços paternalistas, mesmo quando apresentadas como políticas de Estado. É claro que matar a fome sempre vai ser a prioridade dos famélicos, mas cabe a busca por uma solução que não recrudesça o profetismo político.

 

 

IHU On-Line – Ainda em seu artigo, o senhor reflete longamente sobre os líderes messiânicos brasileiros, quase que como herdeiros diretos do sebastianismo. Mas, na sua opinião, quem é ou quem são os artífices da assunção dessas figuras? As mãos que elevaram Getúlio são as mesmas que o fizeram com Juscelino, Fernando, Luiz ou Jair?

Roger Laureano – Não creio que existam forças ocultas. É claro que em alguns casos existem diferenças de classe ou peculiaridades regionais, mas, para pegar exemplos relativamente próximos um do outro, muitas das mãos que votaram em Jair são as mesmas que acreditaram em Lula em 2002. Isso não significa que todos os eleitores sejam carismaticamente dominados. Muitos votos, inclusive de líderes populares, são dados por interesse ou por uma confluência de valores morais. Os eleitores que seguem esses critérios não possuem uma fidelidade pessoal ao líder. Se os seus interesses ou os seus valores são traídos, eles rapidamente abandonam o político. Ou seja, não se alcança um estágio de metanoia em que o líder controla o fiel ideologicamente.

Muitos eleitores de Bolsonaro, Lula, Fernando, JK e Getúlio tomaram decisões situacionais e abandonaram seus líderes no meio do caminho. Um percentual relevante, no entanto, representa a base fiel e fanática que não elegeu um presidente, mas um profeta. Normalmente, essas mãos não são suficientes para alçar um líder ao cargo máximo do país, mas são decisivas para chantagear a complacência dos eleitores independentes.

 

 

IHU On-Line – Podemos caracterizar líderes messiânicos de esquerda e de direita?

Roger Laureano – Para responder adequadamente, acho que é importante fazer algumas observações sobre o conceito. A palavra carisma, que aparece na Bíblia para descrever dons divinos, esteve desconhecida do grande público e restrita aos círculos teológicos até o começo do século XX. Ela começou a se popularizar através da obra de Weber, cujos estudos de sociologia da religião são amplamente conhecidos. O sociólogo alemão estendeu o significado de carisma para explicar alguns fenômenos ligados à obediência personalista a líderes políticos, transportando o conceito, portanto, da sociologia da religião para a sociologia política.

A palavra só começou a entrar na mídia ao fim da década de 1930, quando a revista Time descreveu Hitler como carismático. O carisma foi fazendo algumas aparições no The New York Times e na Fortune, normalmente através de sociólogos, até se consolidar no vocabulário popular na década de 1960. As suas origens bíblicas, é claro, já tinham se perdido há muito tempo. Hoje, falamos corriqueiramente em carisma para descrever uma pessoa simpática, que agrada a maioria e atrai muita admiração. A língua é dinâmica, então esse uso não está errado, mas é importante ressaltar que o significado sociológico da palavra é outro, especialmente quando tratamos de dominação.

 

Dominação carismática

Quando eu trabalho com o conceito de dominação carismática, estou utilizando Weber como base, mas também trazendo alguns elementos externos à sua sociologia política. Devo ressaltar que “dominação” não é uma palavra utilizada para descrever grilhões, mas uma relação pautada na obediência. A dominação carismática se caracteriza por uma relação estabelecida entre dois ou mais indivíduos, não pelo seu conteúdo ideológico. No cerne dessa relação está uma obediência pautada por uma crença do fiel na extraordinariedade do líder, seja por enxergar nele características transcendentes e vê-lo de fato como um messias, seja por algo um pouco mais mundano, como um caráter exemplar a ser emulado.

De todo modo, o produto do extraordinário é afetivo, é uma espécie mirabolante de amor que é cego para abusos e se manifesta politicamente. Na dominação, existem graus distintos de intensidade, a obediência varia de acordo com o líder e com o seguidor. Há uma diferença qualitativa entre, de um lado, mandar um povo à rua para defendê-lo em uma manifestação pública e, de outro, dar uma ordem que seja ativamente criminosa, como as de Charles Manson, ou demandar um suicídio, como Jim Jones. Ainda assim, quando Jim Jones ordenou, muitos obedeceram, e as ruínas silenciosas de Jonestown perduram como um testemunho da intensidade dessa relação carismática.

No estágio mais avançado de submissão, atinge-se a metanoia, situação em que o líder detém o monopólio da interpretação ideológica dos fiéis. A partir desse ponto, o séquito se torna incapaz de raciocinar sem se reportar de alguma maneira às opiniões do líder. As contradições, as mentiras, os conluios, tudo passa desapercebido ao olhar da metanoia, como resultado de uma conspiração ou de uma rede de desinformação.

 

Tanto à esquerda como à direita

É claro que o meu ensaio foi escrito sob o estímulo de um contexto político específico, mas é perceptível que a definição que acabei de apresentar não restringe ideologicamente a aplicação do conceito. A dominação carismática pode ser de esquerda e de direita, basta que a relação afetiva de obediência exista. Isso porque a definição não se concentra nas ideias, mas no comportamento. Quando entramos no específico é que podemos balizar as diferenças. A primeira delas é a mais evidente e se concentra justamente naquilo que foi ignorado até aqui: o conteúdo.

As pautas econômicas, sociais e morais da esquerda e da direita muitas vezes são conflitantes, o que pode ser suficiente para gerar resultados distintos. Mas para além da distinção mais óbvia, a neodireita que ascendeu nos últimos anos parece possuir muitas peculiaridades, como a sua capilaridade nas redes sociais, ambiente ao qual se adaptou muito facilmente. O conspiracionismo é uma marca comum da dominação carismática que se difundiu com as mídias sociais, como demonstra o trumpismo com o QAnon.

No caso brasileiro, uma particularidade está no fato de que até mesmo os apóstolos de alto escalão parecem intensamente dominados pelo presidente. Esse nível mais delirante de conspiracionismo, normalmente relegado ao séquito fanático, aqui se dispersou pelas estruturas do Estado, tomando até mesmo o Itamaraty.

 

 

IHU On-Line – Que relação é possível estabelecer entre carisma e populismo?

Roger Laureano – São conceitos totalmente intercambiáveis. Essa intensa relação afetiva de obediência normalmente é alcançada por líderes populistas. Existem estudos, por exemplo, sobre o grau de fidelidade de alguns castristas ao Fidel que ressaltam nele uma figura messiânica de maneira compatível com alto grau de dominação carismática, a ponto de o revolucionário ser comparado a Jesus Cristo por um padre cubano.

Casos semelhantes foram corriqueiros durante o crescimento político de Bolsonaro, constantemente apresentado pelos seus fiéis como um enviado de Deus, até mesmo por pastores. Ele ainda nos fez o favor de ter Messias como nome do meio. Poderíamos facilmente estender o exemplo ao chavismo, ao fujimorismo e outros. De todo modo, ainda que nem todo líder carismático seja populista, a premissa contrária é verdadeira.

 

 

IHU On-Line – O senhor acredita que a ideia de desesperança e fé num líder profético e carismático é capaz de explicar a polarização da sociedade que temos vivido, quando seguidores e críticos desse profeta se entregam ao escárnio público?

Roger Laureano – Não esgota o tema, mas ajuda. O facciosismo político é uma das consequências dessa fidelidade irrazoável. Isso pode ser gerado tanto num atrito entre seguidores e críticos do líder, como através de um conflito entre seguidores de dois ou mais líderes distintos. Nos casos mais radicais, a lealdade do séquito está acima de muitas leis, de tradições, de valores, de interesses e até mesmo de outros indivíduos com os quais possuía afinidade anteriormente.

Isso demonstra o quanto as pessoas estão dispostas a renunciar em defesa do líder. A radicalização não precisa ser majoritária para polarizar o debate, basta que cada um dos lados seja volumoso o suficiente para suprimir os indivíduos não polarizados, que acabam se vendo excluídos ou, em uma última instância, forçados a tomar um lado numa realidade que, como sabemos, não possui apenas dois lados.

 

Cegos na missão

Os fiéis são muito resistentes a fatos que contradigam sua crença no profeta. Tudo vai parecer, para eles, produto de mentiras criadas a partir de conspirações, sejam elas de origem comunista, da mídia, da CIA, ou qualquer outra fonte imaginária. Se você está diante da salvação de sua alma, de seu país ou, quiçá, do planeta, mas descobre uma conspiração de sujeitos perversos para tirar o paraíso do seu alcance, você vai reagir violentamente a isso.

Esse indivíduo não é o protagonista, mas se sente parte de uma missão. Os artífices da conspiração mudam de nome o tempo inteiro porque a sua real função é apenas justificar os fracassos do líder, cujo insucesso é interpretado como produto de maquinações obscuras, mas o seguidor enxerga neles inimigos reais. Em sua mentalidade, a comparação é construída entre um profeta e um demônio. Com essa perspectiva, não existe meio-termo na disputa.

 

 

IHU On-Line – O que pode constituir a ruína de um líder carismático? No Brasil concreto de hoje poderia ser o desalento com a volta da fome e uma economia que patina e não arranca, atolada numa crise de saúde pública?

Roger Laureano – Ignorando aqueles que viveram em tempos muito extraordinários, como em guerras mundiais, os líderes carismáticos normalmente morrem de inanição. Sua ascensão é produto de muitas promessas que não podem ser cumpridas, de maneira que o principal problema para o líder é o efetivo ato de governar quando a efervescência que o ergueu deve dar lugar à rotina da vida ordinária e da administração pública.

Nesse momento ele precisa construir alianças, tomar decisões que desagradam seu séquito e, como era esperado numa situação de tanta grandiloquência, descumprir promessas. Com a rotina, muitos seguidores outrora fiéis perceberão que seu estômago continua roncando e que o ser incorruptível que admiravam não é tão incorruptível assim. As crises econômicas representam os contextos mais promissores para a queda de um líder carismático porque o impacto abrange toda a população, enquanto outros erros podem ser ignorados por parte significativa dos seguidores.

Mas, infelizmente, mesmo com todos esses sintomas, o processo é vagaroso. Mudar de ideia implica admitir um erro. Poucos estão dispostos a fazer isso e sua teimosia resistirá até se tornar insustentável.

 

 

IHU On-Line – Não só o Brasil mas o mundo viu uma ascensão desses líderes proféticos e carismáticos que vendiam o milagre da solução rápida dos problemas. Mas já percebemos alguns movimentos que parecem rever essa ascensão. Seria o fim desses carismáticos profetas salvadores?

Roger Laureano – De fato, estamos acompanhando a derrocada de alguns líderes da neodireita, especialmente em razão da derrota de Donald Trump nas eleições de 2020. Contudo, não existem razões para crer que estejamos presenciando a ruína definitiva do carisma. Trata-se, no máximo, da decadência de um tipo específico de liderança carismática que provavelmente cederá seu espaço a outras lideranças num futuro indefinido.

Esse tipo de relação de dominação existe desde a Antiguidade e sobreviveu a todas as racionalizações do mundo moderno, inclusive ao desenvolvimento da burocracia das instituições democráticas. É impossível prever o futuro, mas, com as informações que temos, não existem razões para acreditar que seja seu fim.

 

IHU On-Line – A pandemia é vista como um marco na história recente. Em que medida essa experiência pandêmica e suas crises podem levar o Brasil ao fim desse remake que temos assistido há anos com esses profetas carismáticos?

Roger Laureano – Nos Estados Unidos, as consequências da pandemia na queda de popularidade de Trump foram fundamentais para sua derrota nas eleições. Entretanto, sabemos que a popularidade de Bolsonaro não foi tão afetada pelo impacto econômico da pandemia, inclusive ganhando sobrevida com o Auxílio Emergencial. Ao que tudo indica, Bolsonaro sobreviverá aos impactos da crise.

 

 

A pandemia até poderia ser o fim de um líder específico, mas dificilmente encerrará o nosso infeliz ciclo de adoração a falsos profetas. Existia uma esperança, no começo da pandemia, de que a situação crítica do planeta reforçaria a busca por fontes confiáveis de informação e por soluções cientificamente embasadas. Essa até foi a realidade para parte da população, mas um percentual significativo dela se ateve à mesma dominação carismática de antes, em alguns casos até mais radicalizada. Dessa maneira, temos muita cloroquina e pouca vacina.

O desespero gerado com o perigo à saúde forma um terreno propício para a propagação de desinformação. É um tipo de produto que falsos profetas gostam de vender. O Congresso brasileiro, por exemplo, tentou curar o câncer em 2016, através da fosfoetanolamina, substância propagandeada pelo então congressista Jair Bolsonaro. Houve um esforço hercúleo para legalizar uma substância que, em primeiro lugar, nem sequer era proibida. O teatro se estendeu da família Bolsonaro ao PSOL e, como sabemos, câncer nenhum foi curado.

 

 

Os falsos profetas venderam seu produto, fizeram vídeos para as redes sociais, e aqueles que realmente precisavam de salvação morreram em silêncio em algum hospital enquanto os fanáticos se distraíam com o teatro dos charlatães. Para quem acompanhou esse caso com atenção, a cloroquina não é uma novidade, mas uma reedição. Recentemente, Nicolás Maduro também divulgou em suas redes sociais umas “gotinhas” que, segundo ele, curavam a Covid. Como podemos conferir desde o emplasto Brás Cubas, todo embusteiro adora um remédio milagroso.

 

 

Acho improvável, portanto, que estejamos presenciando o fim desse ciclo de líderes carismáticos no Brasil. Com certeza Bolsonaro passará, mas, enquanto algumas condições permanecerem as mesmas, outros virão. Eles serão idênticos em muitos comportamentos, vão carregar suas próprias falsas promessas de salvação e, sem dúvida alguma, também encontrarão um emplasto milagroso para chamar de seu.

 

 

Referências

FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro (São Paulo: Globo, 2012).

WEBER, Max. Economia e Sociedade. Brasília: Editora UNB, 2003.

 

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