08 Fevereiro 2021
“Um traço definidor da democracia é que supostamente o governo deve responder aos cidadãos. Isto implica alguma correspondência entre o que os eleitores querem e o que os políticos e os partidos de fato fazem”, escreve Sheri Berman, professora de ciência política no Barnard College, Columbia University, em artigo publicado pela revista latino-americana de ciências sociais Nueva Sociedad, Janeiro/2021. A tradução é do Cepat.
Nas últimas décadas, a insatisfação com a democracia cresceu de forma dramática. Por exemplo, o mais recente relatório Global Satisfaction with Democracy (Satisfação global com a democracia) menciona que “em meados dos anos 1990, a maioria dos cidadãos (...) estavam satisfeitos com o funcionamento de suas democracias. Desde então, a proporção de indivíduos que estão ‘insatisfeitos’ com a democracia cresceu (...) de 47,9% para 57,5%. É o maior nível de insatisfação desde o início da série, em 1995”.
Talvez a forma mais comum de entender a insatisfação com a democracia seja “de baixo para cima”, examinando as queixas dos cidadãos por motivos econômicos e/ou socioculturais. Mas também é necessário examinar as fontes “de cima para baixo”, aquelas que surgem da própria natureza das instituições democráticas ou de seu funcionamento.
É muito provável que a contribuição moderna mais influente desta perspectiva seja a de Samuel Huntington, em A ordem política nas sociedades em mudança (1968). Huntington defendeu que a decadência e a desordem políticas eram o resultado de uma lacuna entre as demandas dos cidadãos e a disposição ou a capacidade das instituições políticas em lhes dar resposta. Embora o foco do livro de Huntington estivesse nos países em desenvolvimento, durante o período do pós-guerra, seu marco pode nos ajudar a entender a insatisfação com a democracia na Europa da atualidade.
Nas últimas décadas, surgiu na Europa uma lacuna de representação, uma discrepância entre as preferências dos eleitores e o perfil das políticas e reivindicações políticas dos partidos tradicionais. E assim como pressagiou Huntington, quando os cidadãos veem as instituições políticas como relutantes ou incapazes de lhes dar resposta, o resultado provável é a insatisfação e, junto com ela, a desordem e a decadência política.
Os deslocamentos políticos e discursivos dos partidos europeus tradicionais de centro-esquerda e centro-direita os distanciou das preferências de muitos eleitores. A mudança por parte dos partidos de centro-esquerda é bem conhecida.
Durante o pós-guerra, os partidos europeus de centro-esquerda tinham perfis econômicos relativamente claros, que se baseavam na ideia de que a tarefa dos governos democráticos era proteger os cidadãos das consequências negativas do capitalismo. Concretamente, isto envolvia promover o Estado de Bem-Estar, a regulamentação do mercado e políticas de pleno emprego, entre outras coisas. Mesmo que buscassem atrair votos de fora da classe trabalhadora tradicional, suas identidades e reivindicações seguiam baseadas na classe.
Em fins do século XX, isto começou a mudar, na medida em que a centro-esquerda se desloca para o centro em termos econômicos, oferecendo uma versão diluída ou “mais amável, mais suave” das políticas difundidas por seus competidores de centro-direita. Em fins dos anos 1990, de acordo com um estudo [Philip Manow, Armin Schäfer e Hendrik Zorn: Europe’s party-political centre of gravity, 1957 –2003’], “a social-democracia (...) tinha mais em comum com seus principais competidores do que com suas próprias posições de três décadas antes”. Ao mesmo tempo em que os partidos de centro-esquerda diluíam suas posturas de política econômica, também começaram a retirar a ênfase dos termos de classe em seus discursos, e seus líderes surgiram cada vez menos das fileiras da classe trabalhadora e mais de uma elite com altos níveis de formação.
Embora de maneira menos pronunciada e universal, quase ao mesmo tempo em que a centro-esquerda começava a se deslocar para o centro no terreno da economia, muitos partidos de centro-direita moderavam suas posturas sobre questões sociais e culturais, entre elas os valores “tradicionais”, a imigração e outras preocupações relacionadas à identidade nacional, sobre as quais a centro-direita havia assumido posições conservadoras.
Os democratas-cristãos, por exemplo, haviam considerado que os valores religiosos, assim como as visões tradicionais em relação à gênero e sexualidade eram cruciais para a sua identidade. Além disso, muitos destes partidos entendiam a identidade nacional em termos culturais ou inclusive étnicos, e a imigração e o multiculturalismo lhes resultavam suspeitos. No entanto, entre fins do século XX e inícios do XXI, muitos se deslocaram para o centro em questões de identidade nacional, suavizando ou abandonando as reivindicações comunitárias que haviam realizado antes.
Em conjunto, estes deslocamentos nos agrupamentos de centro-esquerda e centro-direita deixaram muitos eleitores sem um partido que representasse seus interesses, em particular aquelas pessoas com perspectivas de esquerda em temas de economia e com preferências entre moderadas e conservadoras em relação à imigração, entre outros. Estes eleitores se concentravam entre a população com níveis mais baixos de formação e a classe trabalhadora, abarcando aproximadamente de 20 a 25% do eleitorado na Europa (assim como nos Estados Unidos).
Para utilizar categorias popularizadas por Albert Hirschman, quando emerge uma lacuna de representação e os eleitores estão insatisfeitos com as alternativas política que lhes são oferecidas, possuem duas opções: abandonar a cena ou se fazer escutar. E sem dúvida, em décadas recentes, os eleitores com menor formação e da classe trabalhadora abandonaram progressivamente a cena, abstendo-se de votar e de exercer outras formas de participação política, ou se fizeram escutar conduzindo os seus votos para os partidos populistas de direita. Agiram assim porque estes partidos também mudaram seus perfis, oferecendo uma mistura de “chauvinismo de bem-estar”, políticas sociais e culturais conservadoras e uma promessa de dar voz aos “sem voz”, justamente para atrai-los.
O escritor francês Édouard Louis descreveu como a insatisfação de seu pai operário e sem formação com os partidos tradicionais, e em particular com a esquerda, o levou por esse caminho: “O que as eleições [chegaram a significar para] meu pai foi a oportunidade de lutar contra sua sensação de invisibilidade (...). Meu pai havia se sentido abandonado pela esquerda política, a partir dos anos 1980, quando esta começou a adotar a linguagem e o pensamento do livre mercado (...) [e nunca mais] falou de classe social, injustiça e pobreza, ou de sofrimento, dor e extenuação (...). Mai pai costumava protestar: ‘Não importa qual, de esquerda, de direita, agora todos são iguais. Esse não importa qual demonstrava todo o seu desencanto com aqueles que, para ele, deveriam defendê-lo, mas não procederam assim. Em contraste, a Frente Nacional vociferava contra as péssimas condições de trabalho e de emprego, jogando toda a culpa na imigração e na União Europeia. Na ausência de qualquer tentativa por parte da esquerda em explicar o seu sofrimento, meu pai se apegou às falsas explicações oferecidas pela extrema direita. Diferente da classe governante, ele não tinha o privilégio de votar em um programa político. Para ele, votar era uma tentativa desesperada de existir diante dos olhos dos outros”.
Em resumo, ao mesmo tempo em que o exame das mudanças nas condições econômicas, sociais e tecnológicas e as queixas que geram é crucial para compreender os problemas contemporâneos da democracia, também é necessário explorar por que as instituições democráticas existentes não respondem às preocupações de muitos cidadãos. Afinal, um traço definidor da democracia é que supostamente o governo deve responder aos cidadãos. Isto implica alguma correspondência entre o que os eleitores querem e o que os políticos e os partidos de fato fazem.
Em particular, quando surge uma lacuna de representação – quando uma porção significativa da população sente que seus interesses já não são representados pela política e os partidos tradicionais -, devemos esperar um aumento na insatisfação e no apoio à política e os partidos anti-establishment. Para evitar isto é necessário acabar com a lacuna de representação, o que significa que será necessário que os partidos tradicionais voltem a se alinhar com os eleitores ou que convençam os eleitores a se alinhar com eles.
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Esquerda e representação política - Instituto Humanitas Unisinos - IHU