O Instituto Humanitas Unisinos – IHU transmitiu no dia 16 de dezembro a conferência do professor doutor Jack Qiu, Inteligência artificial e capitalismo digital na China pré e pós-pandemia de Covid-19, juntamente com o comentário do pesquisador e doutorando da Universidade de São Paulo, Rafael Zanatta.
Com o objetivo retomar aspectos centrais da profunda discussão, apresentamos quatro pontos essenciais para se pensar o capitalismo digital chinês. A conferência na íntegra pode ser assistida abaixo.
Compreender as contradições que estão nas bases do desenvolvimentismo chinês nos ajuda a delinear de forma mais precisa como o fomento tecnológico, de um lado, impulsionou os avanços na digitalização, mas, de outro, tornou o Estado Chinês mais repressivo.
“Então, para entender a formação da sociedade em rede da classe trabalhadora e a ascensão do trabalho em rede na China, precisamos considerar o tema na sua relação estreita com os estados e que esta relação pode ser positiva, com os estados fomentando um certo tipo de formação de classe entre os que têm menos informações. Mas, nos últimos anos, especialmente na era da inteligência artificial o estado chinês tem sido mais repressivo”, pontua Qiu.
São, justamente, estas características que trazem uma certa especificidade ao que vários especialistas, de Wang Hui a David Harvey, passaram a chamar de “neoliberalismo com características chinesas”. “Trata-se de um jogo de palavras com o lema do Partido Comunista da China, que diz que faz um ‘socialismo com características chinesas’. Portanto, tudo pode ter características chinesas incluindo o capitalismo digital”, explica o professor.
“Antes de 2015, muito embora o governo chinês nunca tenha gostado de ativistas trabalhistas independentes, eles não costumavam prender, pois são organizações da sociedade civil. Mas, agora, todas estão sujeitas a detenção, às vezes por períodos de longo prazo, um tratamento desumano, que a própria Organização das Nações Unidas - ONU condenaria por causa do encarceramento de ativistas trabalhistas dentro da China”, complementa.
Ninguém discute que a China é um dos principais players internacionais de inovação. Isso, contudo, tem um preço e ele se conecta diretamente às restrições à liberdade. “Aqui temos, portanto, um outro importante gargalo, dificultando o ativismo trabalhista dentro da China, somando-se às ameaças existenciais aos ativistas trabalhistas, os quais são essenciais à formação do trabalho em rede. Esta situação tem dificultado a vida dessas pessoas, tanto no caso da lei e da ordem no país, quanto com respeito às conexões transfronteiriças, informacionais e monetárias”, descreve Qiu.
Isso impede, por exemplo, que ONGs chinesas de defesa dos trabalhadores possam buscar financiamentos internacionais. “Algumas daquelas organizações concorriam a financiamentos externos de Hong Kong, por exemplo, mas hoje não podem mais”, ressalta.
Ao mesmo tempo que há um intenso aporte financeiro do Estado chinês no capitalismo digital e, consequentemente, na inteligência artificial, há, progressivamente um crescimento do trabalho análogo à escravidão, mas com outras características. “Uma segunda parte do capitalismo digital com características chinesas é que o governo chinês tem feito de tudo para apoiar o capitalismo digital via políticas de Estado. Trabalhadores desempregados ou estudantes universitários, que não encontram emprego, agora podem iniciar o próprio negócio”, relata.
“No contexto chinês, eu destaco que a inteligência artificial da China não é fundamentalmente artificial porque se baseia nos corpos naturais de humanos”, adverte Qiu. E é, justamente, neste contexto que Rafael Zanatta complementa as reflexões do conferencista. “São trabalhos precários. Tagging labour, ‘trabalhos de clique’ e todos os tipos de trabalho que ocorrem para aprimoramento das técnicas de aprendizado de máquinas e limpeza de bancos de dados”, complementa.
É justamente quando colocamos em perspectiva o trabalho escravo com as novas dinâmicas do digital é que compreendemos suas reconfigurações. “O tédio do trabalho digital das tags e sua intensidade são comparáveis com o trabalho na linha de montagem. Na prática significa horas e mais hora de reconhecimento por imagem para saber se é o rosto de um ser humano? Ou o rosto de um animal empalhado, um urso panda? Isso tudo significa tags humanas. Basicamente eles estão ensinando o aprendizado da máquina. Supervisionam. Alimentam os algoritmos com dados”, revela Qiu.
“O modo de trabalho intensivo de produção é como na linha de montagem tradicional, física. A diferença é que, hoje, fazem este trabalho na mineração de dados. E não é inteligente porque muito desse trabalho é um desperdício, impreciso. Eles seguem um modo extrativo”, exemplifica.
Para Zanatta, “A inteligência artificial chinesa é intensa em trabalho e consegue mobilizar uma enorme massa trabalhadora. É isso que Kai-Fu Lee chama de ‘abordagem pesada’ e que Jack Qiu chama de intensiva em trabalho’. E essa abordagem intensiva em trabalho é absolutamente centrada na produção de dados”, contextualiza.
“O trabalho análogo à condição de escravo de extração de prata é literalmente parecido, com o trabalho das tags. E isto está se tornando insustentável. Se fosse inteligente, então seria sustentável”, pontua o conferencista. Nada disso, porém, é novidade, pois a “história da computação mostra como sempre há relações desiguais de utilização de trabalho manual, repetitivo, de inputs e correções”, finaliza Zanatta.
Jack Qiu. (Imagem: Reprodução YouTube IHU)
Jack Linchuan Qiu é professor da Escola de Jornalismo e Comunicação da Universidade Chinesa de Hong Kong, onde atua como diretor do C-Center (Centro de Pesquisa em Mídia Chinesa e Comunicação Comparada). Suas publicações incluem Goodbye iSlave (U of Illinois Press, 2016), World Factory in the Information Era (Guangxi Normal University Press, 2013), New Media Events Research (Renmin U Press, 2011), Working-Class Network Society (MIT Press, 2009), Mobile Communication and Society (coautoria, MIT Press, 2006), algumas das quais foram traduzidas para alemão, francês, espanhol, português e coreano. Também trabalha com ONGs de base e fornece serviços de consultoria para organizações internacionais.
Rafael Zanatta. (Imagem: Reprodução YouTube IHU)
Rafael A. F. Zanatta, pesquisador em Direito e Sociedades Digitais, mestre em Direito e Economia Política pela International University College of Turin e mestre em Sociologia Jurídica pela Universidade de São Paulo - USP, onde foi coordenador do Núcleo de Direito, Internet e Sociedade. Graduou-se em Direito na Universidade Estadual de Maringá - UEM.