15 Janeiro 2015
“Prestes não se engajou sequer na fantasia de ‘Cavaleiro da Esperança’, resignando-se a ver a política de forma muito racional, como um conjunto de águas claras, onde as ideias deveriam comandar as vontades individuais, e não o contrário”, pontua o historiador.
Foto: Wikipedia |
E Prestes era isso mesmo, um homem com todas as suas contradições. “A grandeza de Prestes esteve na sua quase infinita capacidade de resistência às dificuldades, perseguições e derrotas nas mais de cinco décadas nas quais viveu praticamente na clandestinidade. Já as contradições resultariam da sua intrínseca inabilidade em transigir com a ideologia que abraçou e, sobretudo, em questionar as diretivas políticas emanadas pelo partido em nível internacional”.
Outro destaque da obra é a reprodução da vida simples e com poucos recursos que levou. O curioso é que nem isso fez dele nascer o mito de herói em Prestes. O livro ainda traz mais demonstrações dicotômicas do comunista que, apesar de ortodoxo na defesa dos ideais, não deixava de escrever para a mãe. “Muito raro que revolucionários, antes de partir para a luta, escrevessem para a mãe, como fez Prestes, antes de engajar-se na Coluna, informando-a dos tempos difíceis que se aproximavam e lembrando que não estava fazendo mais do que aprendera com suas lições de vida”, completa.
Elias Thomé Saliba é professor de Teoria da História pela USP desde a década de 1990, especializado em História da Cultura, com ênfase no Brasil do período republicano. Atualmente desenvolve projetos na área de História cultural do humor brasileiro. Publicou ainda artigos e capítulos de livros relacionados à área de Teoria e Epistemologia da História, Metodologia e História da historiografia.
Confira a entrevista.
IHU On–Line - Quem foi Luís Carlos Prestes para você? E esse Prestes está na obra de Daniel Aarão Reis?
Foto: Observatório de Comunicação - UPS
Elias Thomé Saliba - Prestes foi personagem importante porque atuou como catalisador de grande parte da história brasileira no século XX. A biografia escrita por Daniel Aarão Reis é muito bem escrita e bastante sensível a esta condição do personagem, esforçando-se por separar o mito do homem real. Mas, em história, nada é absolutamente definitivo. Em biografia, mais ainda: “Todo homem é dois homens. E o mais verdadeiro é sempre o outro”, definiu Jorge Luiz Borges.
IHU On-Line - Você diz que a biografia revela grandezas e contradições. Quais?
Elias Thomé Saliba - A grandeza de Prestes esteve na sua quase infinita capacidade de resistência às dificuldades, perseguições e derrotas nas mais de cinco décadas nas quais viveu praticamente na clandestinidade. Já as contradições resultariam da sua intrínseca inabilidade em transigir com a ideologia que abraçou e, sobretudo, em questionar as diretivas políticas emanadas pelo partido em nível internacional — com as quais nem sempre ele concordou, mas, na maioria das vezes, cumpriu ou fez cumprir. Impressiona também sua vida quase espartana, simples e com pouquíssimos recursos.
Durante a Coluna, ele carregava consigo o famoso Chernoviz — um manual de cura de doenças do século XIX, muito utilizado por fazendeiros escravistas em escravos doentes. Seu primeiro exílio, junto com os sobreviventes da Coluna Prestes, asilados na Bolívia, e depois na Argentina, num velho armazém de café da Calle Gallo, como representantes comerciais de vendedores de vassouras, lembra a vida daqueles heróis sacrificiais. Mas, a partir de 1927, começa a construção do mito Prestes que, como sabemos, será eficientemente manipulado pelo poder político, sobretudo após 1930.
Daniel Aarão observa que Prestes deixou-se arrastar pela onda caudalosa que o erigia em herói sem jaça. Mas será que ele se submeteu ao ritual do personalismo emotivo como aconteceu com Vargas, o paradigma do irracionalismo populista? “A sociedade incapaz de fazer uma revolução em 1930 se comprazia agora em fazer um herói revolucionário”, escreveu Neill Macaulay. Ou seja, Prestes começou a ingressar no panteão personalista da política brasileira — papel que, a rigor, ele nunca aceitou muito bem, talvez porque adivinhasse que esta era talvez uma forma de esvaziar o seu próprio inconformismo político.
“Impressiona também sua vida quase espartana, simples e com pouquíssimos recursos”
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IHU On-Line - Prestes se tornou comunista num período de ascensão da ideologia. Porém, no Brasil, foi um período de muitas derrotas do comunismo. Como ele lidou com isso e encarou as derrotas?
Elias Thomé Saliba - Como mostra a biografia escrita por Daniel Aarão, Prestes sentiu o ambiente da caserna desde os 13 anos, quando ingressou no Colégio Militar. Talvez ele tenha mantido a postura meio ascética e ultradisciplinada de militar até o final. De qualquer forma, foi no exército que ele demonstrou sua inteligência e capacidade militar — um líder cujas características principais eram a franca lealdade e o otimismo persuasivo. De qualquer forma, chama a atenção a presença, na sua vida, daquilo que ele mesmo chamava de “a sua constelação feminina”. Ou seja, a presença de mulheres de personalidades fortes e desassombradas.
Muito raro que revolucionários, antes de partir para a luta, escrevessem para a mãe, como fez Prestes, antes de engajar-se na Coluna, informando-a dos tempos difíceis que se aproximavam e lembrando que não estava fazendo mais do que aprendera com suas lições de vida. De qualquer forma, Prestes engajou-se na Coluna num momento no qual as gerações mais jovens estavam angustiadas em repensar o país e alterar profundamente o status quo. Prestes encarou muitas derrotas, mas também outros personagens, como ele, passaram por inúmeras derrotas.
“No Brasil, como disse tão bem Sérgio Buarque, a política, ao fim e ao cabo, se reduz ao conflito de um personalismo contra outro personalismo. Prestes é o exemplo de um homem aferrado aos seus princípios, intransigente em quase todas as ocasiões. Já Vargas foi bem descrito por Raymundo Faoro, como um ‘chuchu sem gosto e inodoro’” |
IHU On-Line - Ícone de oposição, Prestes aparece muitas vezes, inclusive na obra de Aarão Reis, como antítese de Getúlio Vargas. Por quê?
Elias Thomé Saliba - Primeiro, porque o inconsciente coletivo no Brasil quase sempre reduz a compreensão dos conflitos ideológicos ou políticos aos personagens e aos seus perfis — reais ou mitologizados. Porque no Brasil, como disse tão bem Sérgio Buarque, a política, ao fim e ao cabo, se reduz ao conflito de um personalismo contra outro personalismo. Prestes é o exemplo de um homem aferrado aos seus princípios, intransigente em quase todas as ocasiões. Já Vargas foi bem descrito por Raymundo Faoro, como um “chuchu sem gosto e inodoro, que assume o sabor do molho com que o condimentam: ele protela, procrastina, transfere, demora, adia, prorroga esperando ninguém sabe o quê. Bem que ele sabia o que esperava”.
Descrito frequentemente como caudilho com vocação autoritária, Vargas acabou por exercer, na maioria das “horas difíceis”, um papel conciliador. Visto como político de perfil provinciano, transmutou-se no mais centralizador dos governantes brasileiros. Genericamente considerado um nacionalista, adotou a defesa da propalada soberania nacional apenas por razões táticas e pontuais, num confuso cenário internacional, sem chegar a confrontos ou rupturas profundas. Até hoje, seus inúmeros intérpretes patinam diante de figura tão escorregadia, tão avessa às categorizações conceituais. Vargas transformou-se, é certo que com a imensa ajuda dos seus órgãos de propaganda, no “nosso querido baixinho”. Usamos de diminutivos para quebrar hierarquias e tornar tudo próximo, uma forma emocional de sublimar as enormes distâncias sociais e de transfigurar a política numa ética emocional. Mais ainda do que a figura do “pai dos pobres”, de toques visivelmente demagógicos, este é o Vargas que vingou e ficou nos sedimentos mais profundos da memória coletiva. E a vinculação de sua figura ao tema da morte redentora, tão bem expresso na famosa carta-testamento, apenas reforçou a associação com o mito fundador do cristianismo. A este respeito, não custa lembrar que até no famoso cordel de Rodolfo Cavalcanti, é Jesus em pessoa que surge para julgar o baixinho, abrindo-lhe as portas do céu — e quase que dizendo: “É aqui, e só aqui, que tudo resultará certo e justo para seu povo”.
"Muito raro que revolucionários, antes de partir para a luta, escrevessem para a mãe, como fez Prestes, antes de engajar-se na Coluna, informando-a dos tempos difíceis que se aproximavam e lembrando que não estava fazendo mais do que aprendera com suas lições de vida" |
Prestes esteve, tanto quanto possível, longe disso. Acho que Prestes não se engajou sequer na fantasia de “Cavaleiro da Esperança”, resignando-se a ver a política de forma muito racional, como um conjunto de águas claras, onde as ideias deveriam comandar as vontades individuais, e não o contrário. Não tenho certeza, mas acho que Prestes, como a maioria dos comunistas brasileiros (O Barão de Itararé foi a grande exceção, claro — mas para mim Aparício foi mais groucho-marxista do que comunista), não ria muito. E isto me parece bastante revelador.
Por João Vitor Santos
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Um Luís Carlos Prestes com mais cara de personagem da história do que mito. Entrevista especial com Elias Thomé Saliba - Instituto Humanitas Unisinos - IHU