02 Março 2021
No fim de semana em que óbitos bateram novo recorde e sistema de saúde entrou em colapso em novos estados, presidente exortou população a desrespeitar medidas protetivas. E mais: 5 milhões de testes PCR incinerados por negligência.
A reportagem é de Raquel Torres, publicada por Outras Palavras, 01-03-2021.
(Foto: Aroeira)
A média móvel de mortes por covid-19 no Brasil bateu mais um recorde ontem, ficando em 1.208 óbitos diários. Praticamente o país inteiro está indo de mal a pior: em 17 capitais, a taxa de ocupação das UTIs ultrapassa os 80%. Entre os estados, são 12 nessa mesma situação.
Temos acompanhado nos últimos dias a decisão de gestores locais de aumentarem suas medidas de restrição; e, segundo o Painel da Folha, governadores e secretários estaduais de saúde estão pedindo a Eduardo Pazuello que seja adotada uma “medida única” em todo o país. O jornal diz que representantes do ministério da Saúde reconhecem essa necessidade, mas afirmam que se trata de uma missão impossível, porque “Jair Bolsonaro não deixa”.
Se a campanha anti-prevenção sempre foi forte por parte do presidente, neste fim de semana ele renovou seus ataques, centralizando as provocações nos governos locais. Na sexta-feira, esteve no Ceará e disse que o novo auxílio emergencial só será pago por mais alguns meses e, daí por diante, os governadores que “fecharem seus estados” é que devem bancá-lo. A fala aconteceu em meio a uma aglomeração, é claro.
No Distrito Federal, o anúncio de um lockdown levou uma horda de bolsonaristas até a casa do governador. Portando muitas faixas e cartazes (mas poucas máscaras), eles pediam o fim do decreto – e qualquer coincidência com o que aconteceu em Manaus em dezembro do ano passado, dias antes do colapso, não é mera coincidência.
Bolsonaro não perdeu tempo e compartilhou imagens em suas redes sociais. Os revoltosos venceram: o governador do DF, Ibaneis Rocha, publicou novo decreto amaciando as regras, e agora vários estabelecimentos, incluindo igrejas, vão poder funcionar normalmente. Mas, ao contrário do que aconteceu no Amazonas, shoppings, bares e comércio em geral não foram contemplados. Menos mau.
Ontem, o presidente se reuniu com os presidentes da Câmara e o Senado, junto com vários ministros, para tratar de “vacina, auxílio emergencial; PEC Emergencial, emprego e situação da pandemia”, segundo um post de Bolsonaro. O Estadão apurou que o encontro serviu para contar votos para a aprovação da PEC, cuja votação está marcada para o dia 3. A fotografia do encontro é ridícula: dos sete presentes, só Paulo Guedes, Rodrigo Pacheco e Arthur Lira usam máscaras. Bolsonaro e seus ministros generais, incluindo o da Saúde, não usam proteção.
Em tempo: a discussão sobre a abertura de uma CPI para investigar a atuação do governo na pandemia ainda está em pauta no Senado. O jornalista Guilherme Amado, da Época, conseguiu mensagens de WhatsApp de oito parlamentares defendendo não só a CPI como o impeachment, logo após a visita de Bolsonaro ao Ceará. São de oito legendas: PSD, MDB, PT, Cidadania, Rede, PROS, Podemos e Republicanos.
Ontem Jair Bolsonaro voltou a gritar contra os fechamentos, escrevendo no Facebook em letras garrafais: “HOJE, ao FECHAREM O COMÉRCIO e novamente te obrigar a FICAR EM CASA, vem o DESEMPREGO EM MASSA com consequências desastrosas para todo o Brasil”.
Desnecessário dizer que esse argumento encontra eco na população. E não sem razão de ser, já que a necessidade de se manter financeiramente é real. Um levantamento do Instituto Travessia para o Valor indica que 11% das mil pessoas entrevistadas precisaram cortar até a compra de itens básicos em 2020, mesmo tendo havido auxílio emergencial. Quando perguntadas sobre sua maior preocupação para 2021, 38% citaram o desemprego. Foi o maior medo, seguido por “segurança” (18%), “inflação” (15%), “falta de vacina” (14%), “piora no atendimento a pacientes com covid” (8%) e “crise política” (7%).
Não por acaso, a pesquisa mostra que a defesa de medidas severas caiu: em abril de 2020, 57% queriam o amplo fechamento do comércio e outras restrições à mobilidade. Agora, são 39% e, em contraste, 52% defendem um “isolamento parcial”. Para o azar do presidente, isso não significa que essas pessoas estejam de acordo com sua condução na pandemia. Ao contrário, 66% disseram não confiar na sua capacidade de gerenciar a crise.
Enquanto isso, entramos no terceiro mês sem auxílio emergencial.
Há mais de quatro meses, o país se indignou diante da notícia de que havia sete milhões de testes PCR encalhados em um armazém do governo federal em Guarulhos/SP. Como eles perderiam a validade em breve, foi feito um malabarismo para esticar esse prazo. E o que aconteceu de lá para cá? Só dois milhões de unidades foram distribuídas aos estados, apesar de a necessidade de testagem ser muito maior do que isso. Falta dar cabo de 4,7 milhões e, se não houver destino para elas, terão que ser incineradas entre 21 de abril e o começo de junho, diz o Estadão.
É inacreditável. A equipe do general Eduardo Pazuello chegou a negociar o envio de um milhão de testes para o Haiti, mas nem isso será possível. Segundo o jornal, devem ser doadas só 30 mil unidades. Isso porque o material vai estragar logo e seu uso exige outros insumos, como swabs, tubos coletores e reagentes, que não necessariamente estarão disponíveis no país.
Cientistas da Fiocruz Amazônia estudaram a variante do coronavírus originada em Manaus, a P.1, e chegaram a uma conclusão que pode explicar por que ela se espalha tão rápido: sua carga viral é dez vezes maior em adultos infectados por ela do que por outras variantes. O trabalho, que ainda não foi revisado por pares, analisou 250 amostras genômicas colhidas entre março do ano passado e janeiro deste ano, então engloba tanto a primeira quanto a segunda ondas.
“Se a pessoa tem mais carga viral nas vias aéreas superiores, a tendência é que ela vai estar expelindo mais vírus – e, se ela está expelindo mais vírus, a chance de uma pessoa se infectar próxima a ela é maior”, explica Felipe Naveca, líder do estudo. Ele aponta, porém, que isso não está relacionado à gravidade da doença.
A FDA (agência reguladora dos Estados Unidos) aprovou no sábado a vacina da Janssen, do grupo Johnson & Johnson. É o terceiro imunizante contra a covid-19 que passa a ser autorizado no país, junto com os da Pfizer e da Moderna. A diferença mais importante desse produto para os outros aprovados até agora é que seus resultados se referem a um regime de dose única. A eficácia não é das maiores, mas é bastante boa: ficou em 66% no geral, 72% nos EUA e 57% na África do Sul. A proteção contra formas graves da doença ficou em 85%.
Essa é uma vacina que deveria estar no radar brasileiro há muito tempo, mas o país não fechou nenhum acordo de compra. No resto do mundo, já são ao menos 800 milhões de doses encomendadas: 500 milhões para a Covax Facility (talvez alguma coisa chegue ao Brasil por essa via), pelo menos 100 milhões para os EUA e o restante para Reino Unido, União Europeia e Canadá. Neste fim de semana a África do Sul também assinou um acordo para receber 11 milhões de doses.
Mesmo que o Brasil se mexesse para fechar algum negócio agora, provavelmente levaria muito tempo até ter o produto em mãos. Por enquanto, só há ao todo 3,9 milhões de doses disponíveis para entrega, e esperam-se outras 16 milhões até o fim de março.
Cuba pode se tornar o primeiro país latino-americano a conseguir um imunizante eficaz contra a covid-19. Seus laboratórios estão trabalhando em nada menos quatro candidatas, e duas vão entrar na fase 3 dos testes clínicos nos próximos dias: a Soberana 02 e a Abdala. Nos ensaios de fase 2, ambas se mostraram seguras e levaram à produção de anticorpos específicos.
“Não é um milagre: há um notável desenvolvimento científico em Cuba e 30 anos de experiência na fabricação de vacinas”, diz, no El País, o vice-presidente do grupo empresarial cubano BioCubaFarma, Eulogio Pimentel. Ele lembra ainda que o país foi o primeiro a desenvolver e fabricar uma vacina meningocócica, nos anos 1990, e uma contra a hepatite B.
A ilha tem 11,3 milhões de habitantes e espera produzir 100 milhões de doses das vacinas ainda em 2021. Isso significa que, se tudo der certo, vai conseguir imunizar a população inteira ainda este ano, exportar o produto e até aplicar doses em turistas internacionais, como já foi anunciado.
O Idec e o Outra Saúde vão promover um curso gratuito para jornalistas sobre acesso a medicamentos e vacinas no Brasil. Para participar, basta estar vinculado a qualquer veículo de comunicação e preencher este formulário até a quarta-feira, dia 3. As vagas são limitadas.
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Bolsonaro renova sua parceria com a morte - Instituto Humanitas Unisinos - IHU