19 Fevereiro 2021
"Causa-nos espanto e indignação ao constatar que aquelas autoridades judiciais e políticas que poderiam mover ações juridicamente fundadas contra a irresponsabilidade jurídica e crimes sociais comuns do presidente não se movam, seja por se sentirem cúmplices, seja por ausência de espírito patriótico e mesmo faltos de sentido de justiça social. Como vivem a quilômetros luz do drama do povo e veem seus direitos adquiridos e privilégios garantidos não os move a nobre compaixão para usar os instrumentos jurídicos de que dispõem para livrar a nação daquele que a está destruindo e segue mais aferrado ainda nesse mesmo intento perverso", escreve Leonardo Boff, ecoteólogo, filósofo e escritor brasileiro, e autor de Brasil: concluir a refundação ou prolongar a dependência (Vozes, 2018).
É fato confessado pelo ex-chefe supremo das FFAA, gal. Villas Boâs que o Alto Comando em 2018 deu um golpe na democracia brasileira, ferindo o inciso XILV do artigo 5º da Constituição que diz, tal fato: ”constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”. O sentido era, pressionando o STF para manter-se distante, utilizar o juiz Sérgio Moro (exímio na aplicação do law fare) para alijar Lula do pleito presidencial, condenando-o por qualquer crime que fosse, no caso, “por crime indeterminado” e pô-lo na prisão onde ficou por mais de 500 dias. Desta forma abrir-se-ia o caminho para eleição do ex-capitão compulsoriamente reformado por mau comportamento, Jair Bolsonaro. O que de fato ocorreu.
Conhecemos a bíblica “desolação da tribulação” que sobreveio ao nosso país com o presidente eleito. Ocupou militarmente o Estado com 11 mil militares em distintas funções de comando ou de administração. Não soube guardar a dignidade que o mais alto cargo da nação exige e entregou-se à difamações, às mentiras diretas, às fake news, ao uso vergonhoso de palavrões com soberano desprezo da imprensa. Mente assassina, preferiu incentivar a compra de mais armas por civis do que elaborar um plano de enfrentamento do Covid-19 que já fez mais de 220 mil vítimas e nos aproximando de 10 milhões de infectados. Na avaliação mundial, o Brasil ficou em último lugar nas políticas sanitárias contra o Covid-19 e na aplicação da vacinação à população.
A nossa democracia que historicamente sempre foi de baixa intensidade, agora, sob Bolsonaro e comparsas, foi estraçalhada nem chegando a ser de baixíssima intensidade. Ela virou uma farça e suas principais instituições um disfarce de legalidade, por mais que se diga que “as instituições funcionam”. Cabe perguntar a quem? Não à política sanitária mínima, não à justiça necessária aos milhões de desempregados, aos indígenas e quilombolas, não ao cuidado da natureza em devastação, não em defesa contra ameaças diretas ao STF nem contra um propósito declarado de golpe militar. Sob o disfarce da legalidade se blindam notórios corruptos, concede-se facilmente habeas corpus a políticos indiciados por ilegalidades e até por crimes e permanecem impunes os centenas de feminicídios e ofensas e até assassinatos dos LGBTI.
Vou me permitir usar as palavras de dois sociólogos porque encontrei neles as melhores expressões que expressam o que sinto e penso acerca de nossa presumida democracia: Thiago Antônio de Oliveira Sá, sociólogo e professor universitário (cf. O sequestro das instituições brasileiras, em Carta Maior de 14/02/2021) e de Pedro Demo, colega de estudos no Brasil e na Alemanha, professor na Universidade de Brasília, uma das inteligências mais brilhantes que conheço com vasta obra de pesquisa científica. Delas sirvo-me apenas de tópicos significativos do livro Introdução à Sociologia: Compexidade, Interdisciplinariedade e Desigualdade Social (Editora Atlas, São Paulo 2002 pp, 329-333) onde diretamente aborda o tema da democracia no Brasil.
Começo com Oliveira Sá no referido artigo em Carta Maior: “O público é um anexo do privado. A perícia cede lugar à malícia. A corrosão institucional se visualiza facilmente: obscurantistas e mal educados como ministros da Educação; um ecocida que passa sua boiada sobre o meio ambiente; uma ruralista à frente da agricultura nos envenena com seus mais de 500 agrotóxicos legalizados; uma evangélica fundamentalista cuida das mulheres e demais minorias com seu machismo e sua obsessão com a sexualidade alheia. Não nos esqueçamos do primeiro ministro da Saúde, lobista dos planos privados, a estender sua mão visível sobre o SUS. Um emissário do mercado financeiro dirige o ministério da economia. Um maluco, pária orgulhoso e antiglobalista (seja lá o que isso for), faz do Brasil vexame internacional nas relações exteriores. Um racista à frente da Fundação Palmares. Polícia federal convertida em guarda-costas particular da presidência e de seus filhos. A Procuradoria Geral da República a livrar a cara do empreendedor das rachadinhas. Um militar na Saúde dispensa maiores explicações.... juízes que têm lado, vejam-se os novos vazamentos das tramoias nada republicanas de Moro, Dallagnol e seus comparsas. Absurdo, mas não surpreendente: a velha conversão das instâncias judiciais em arma de grupos dominantes. Para perseguição de adversários, para inviabilizar suas candidaturas em favor de outros”.
Não perde em contundência Pedro Demo. O que escreveu em 2002 vale muito mais para 2021: “Nossa democracia é encenação nacional de hipocrisia refinada, repleta de leis 'bonitas', mas feita sempre, em última instância, pela elite dominante para que sirva a ela do começo até o fim. Nossa democracia espelha, cruamente, a ‘luta pelo poder’ no sentido mais maquiavélico da luta por privilégios. Político sem privilégios é figura espúria em nosso cenário – desde logo é gente que se caracteriza por ganhar bem, trabalhar pouco (comentário meu: vide o ex-deputado Jair Bolsonaro por sucessivos mandato), fazer negociatas, empregar parentes e apaniguados, enriquecer-se à custa dos cofres públicos, entrar no mercado por cima. Mas há exceções que confirmam a regra... A própria Constituição de 1988 não abriga propriamente projeto nacional coletivo, afinado sob a batuta da justiça e da equalização de oportunidades, mas proposta corporativista retalhada por meio da pressão particularizada: os magistrados fizeram o seu capítulo, bem como a polícia, as universidades, o legislativo, o judiciário, o Executivo e a iniciativa privada... É a tão decantada por Ulysses Guimarães de 'Constituição Cidadã', mas que detém concepção corporativista extrema, muito distante dos interesses das maiorias... Fazem-se muitas propostas mas sem qualquer ligação com embasamento financeiro e institucional... No final fizemos outra vez imitação barata do welfare state. Mas há coisas boas como a lei de responsabilidade fiscal para evitar que se gaste o que não se arrecada... O Legislativo longe de defender ideias, propostas, equidade, defende verbas, fatias de poder, privilégios exclusivos. É o lugar principal da negociata, do dá cá e o dá lá... Não é pois difícil de mostrar que nossa democracia é apenas formal, farsante, que convive solenemente com a miséria das grandes maiorias. Se ligássemos democracia com justiça social, nossa democracia seria sua própria negação. Não se nota na classe política dominante em geral qualquer gesto dirigido a superar mazelas históricas plantadas em privilégios absurdos para poucos... Nossa pobre política lancinante se traduz na miséria de nossa democracia. Por isso é tão importante manter a ignorância política das massas” (333).
A realidade política sob Bolsonaro é muito pior do que a desenhada acima. Visa reconduzir o país à fase pré-iluminista, da universalização do saber, dos direitos e da democracia na direção regressiva a tempos obscuros do pior da Idade Média tardia, não da Idade Média áurea com suas imensas catedrais, com a criação de universidades, com suas sumas teológicas, com seus sábios, místicos e santos. Tudo o que foi criado nos governos Lula-Dilma que tivesse sabor popular ou inserção dos empobrecidos na sociedade foi literalmente desmontado de forma criminosa pois implicou sofrimento aos que já sempre sofreram historicamente.
Causa-nos espanto e indignação ao constatar que aquelas autoridades judiciais e políticas que poderiam mover ações juridicamente fundadas contra a irresponsabilidade jurídica e crimes sociais comuns do presidente não se movam, seja por se sentirem cúmplices, seja por ausência de espírito patriótico e mesmo faltos de sentido de justiça social. Como vivem a quilômetros luz do drama do povo e veem seus direitos adquiridos e privilégios garantidos não os move a nobre compaixão para usar os instrumentos jurídicos de que dispõem para livrar a nação daquele que a está destruindo e segue mais aferrado ainda nesse mesmo intento perverso.
Razão tem o Papa Francisco ao falar várias vezes aos movimentos sociais mundiais, aqueles que querem outro mundo porque este lhes é um inferno ou um purgatório: "não esperem nada de cima, pois vem sempre mais do mesmo ou pior. Comecem por vocês mesmos, vale dizer, as multidões devem ocupar ruas e praças e botar para correr aqueles que lhes sequestram as oportunidades de serem gente e de sentirem-se com um mínimo de dignidade e de alegria de viver". Esperamos isso aconteça. Só depois que se sentirem ameaçados, os dominantes aderem. Se não cuidarmos se apropriam da energia emergente para seus próprios fins privados. Mas aquilo que deve ser tem força: o afastamento de quem conduz uma política necrófica e inimiga do próprio país.
Diante da obscuridade do horizonte e, a muito custo, mantendo a esperança contra a esperança, faço minhas as palavras do Mestre, também tomado de profundo pesar: "tristis est anima mea usque ad mortem".
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Sob Bolsonaro: a democracia como farsa e as instituições como disfarce - Instituto Humanitas Unisinos - IHU