26 Fevereiro 2021
No dia em que país ultrapassa marco sinistro, surgem novos sinais de que o pior está por vir, se as ações não mudarem rapidamente. Mas poder político segue capturado. E mais: cresce a defesa do SUS, contra a PEC-bomba de Guedes. escrevem Maíra Mathias e Raquel Torres, editoras do portal Outra Saúde, na newsletter diária sobre as principais notícias sobre saúde do dia publicada por Outras Palavras, 25-02-2021.
O Brasil chegou ontem às 250 mil mortes causadas pela covid-19. Por coincidência, o marco foi registrado um ano depois que o primeiro paciente que recebeu confirmação para a doença no país deu entrada no hospital. Por negligência de muitos gestores – e projeto do governo federal – dobramos mais esta assustadora esquina no pior momento da pandemia no Brasil, com menos de 3% da população vacinada e diversas cidades em colapso.
Araraquara (SP), que tem servido de alerta para o restante do Sudeste neste momento, já registrou nos últimos dois meses mais mortes causadas pelo vírus do que em 2020 inteiro. De acordo com levantamento da Folha, sete estados estão com um pico de mortes maior do que na fase mais grave da crise no ano passado. São eles: Roraima, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Rondônia, Paraná e Amazonas.
Especialistas não cansam de alertar para a necessidade, em vários locais, de medidas de isolamento social que sejam de fato assertivas. Tiveram mais uma decepção ontem, com o anúncio de João Doria (PSDB) para São Paulo. Com projeção de falta de vagas de UTI se o ritmo de internações se mantiver nos próximos 21 dias, o governador anunciou um “toque de restrições” que, em tese, envolve proibição da circulação no período que vai de 23h às 5h. Mas Doria chegou a dizer que quem for flagrado em uma festa ou aglomeração não será multado, apenas advertido. “No final da entrevista, não estava claro exatamente o que as pessoas poderiam ou não fazer nem se estariam sujeitas a multas caso circulassem à noite. Sem medidas que se assemelham a um toque de recolher mais duro, com a aplicação de multas a transeuntes que desrespeitarem a restrição de circulação, especialistas dizem que a eficácia será baixa”, relata o El País.
Enquanto isso, voltamos ao mesmo patamar de circulação da primeira quinzena de março, quando as medidas de isolamento ainda não tinham sido adotadas no país. De acordo com a plataforma Inloco, o isolamento estava em 32% na última terça-feira, contra 30% no dia 13 de março de 2020.
Uma projeção do Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde, da Universidade de Washington, sugere que se as coisas continuarem como estão, o número de mortes no Brasil pode chegar a 358 mil em junho.
O governo vai liberar, via MP, um crédito extraordinário de R$ 2,8 bilhões para o Ministério da Saúde. De acordo com a Secretaria Geral da Presidência da República, os recursos serão direcionados pela pasta ao Fundo Nacional de Saúde, à Fiocruz e ao Grupo Hospitalar Conceição (empresa pública vinculada ao ministério, localizada em Porto Alegre) para cobrir gastos com a pandemia.
O Senado aprovou ontem o projeto de lei do presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que autoriza estados, municípios e o setor privado a comprarem por conta própria as vacinas contra a covid-19, desde que elas tenham autorização da Anvisa.
A regra para o setor privado ficou assim: enquanto os grupos prioritários estiverem sendo vacinados na campanha nacional, todas as doses adquiridas por empresas devem ser doadas ao SUS. Depois, elas terão que doar só metade. E podem distribuir o resto como bem entenderem, desde que de graça. O projeto segue agora para a Câmara.
Pelo menos 17 estados têm interesse em fazer compras individuais, e alguns – como o Rio Grande do Sul e a Bahia – já começaram a se mexer. Ao mesmo tempo, a Frente Nacional de Prefeitos criou um consórcio com 50 municípios para viabilizar a compra e, segundo seu presidente, Jonas Donizette (PSB), a entidade dialoga com farmacêuticas para comprar a Sputnik V e a vacina da Pfizer. Não há nenhum acordo firmado nem previsão sobre datas ou número de doses; além disso, a Pfizer disse mais de uma vez que por enquanto só pretende vender para o governo federal. Mesmo assim, Donizette prevê que, com a medida, 60% da população adulta do país inteiro seja vacinada até o meio deste ano.
Tanto o projeto aprovado ontem como o aval do STF dado na terça-feira estabelecem que esse tipo de aquisição só pode acontecer caso o governo federal descumpra seu plano de vacinação ou se a cobertura programada pela União não for o bastante. Infelizmente, não vai ser difícil manter esses requisitos.
O texto aprovado pelos senadores também estabelece que todos os entes federados podem assumir os riscos da responsabilidade civil por qualquer evento adverso pós-vacinação; o poder público vai poder constituir garantias ou contratar seguro privado para a cobertura desses riscos. Com isso, fica legalmente resolvido o entrave nas negociações entre a União e a Pfizer, que tem esse tipo de exigência no contrato.
Mas no meio do caminho tem Jair Bolsonaro, que precisa sancionar a lei depois que a tramitação no Congresso terminar. E ontem ele deixou claro que deve dificultar as coisas o quanto puder, mencionando seu poder de veto: “É uma coisa de extrema responsabilidade quem vai, porventura, no Brasil tiver que dar a palavra final. Se sou eu como presidente, se é o Parlamento derrubando possível veto ou se é o STF”, afirmou em coletiva de imprensa no Acre, onde promoveu mais uma aglomeração. Ele ainda prometeu que, caso o governo venha a comprar o imunizante da Pfizer, vai revelar todas as cláusulas do contrato à população, para que “cada um saiba o que está sendo aplicado’.
O ministro Eduardo Pazuello estava ao seu lado, mas se limitou a dizer que “se vier autorização, vamos comprar a Pfizer e a Janssen”.
O Ministério da Saúde mudou mais uma vez sua orientação quanto à reserva de vacinas pelos municípios, para que garantam a segunda dose. No começo, a pasta dizia que metade do quantitativo recebido deveria ser guardado para isso; depois, Eduardo Pazuello afirmou a prefeitos que eles já poderiam aplicar todas as doses, porque seguramente novos lotes chegariam a tempo.
Mas, ao que parece, essa última recomendação dada pelo general não tinha pé nem cabeça. Foi feita em reunião com gestores locais que reclamavam da falta de vacinas, prazos e metas por parte do governo federal e, segundo o Estadão, a área técnica do Ministério foi pega de surpresa pela promessa. Prudentemente, se recusou a alterar a orientação oficial. De modo que, em informe técnico divulgado ontem, a pasta volta a dizer que os prefeitos devem aplicar só metade das doses recebidas porque “não há um fluxo de produção regular”. Isso vale para a CoronaVac, que tem só quatro semanas de intervalo entre as doses. No caso da vacina de Oxford/AstraZeneca, cujo intervalo é de três meses, o texto não indica a necessidade.
O Amazonas esperava receber ontem 78 mil doses da vacina de Oxford/AstraZeneca, mas só chegaram duas mil. O motivo? O Ministério da Saúde confundiu o estado com o Amapá… A previsão era que o erro fosse desfeito na madrugada de ontem, mas, até o fechamento desta edição da newsletter, não havia notícias sobre o conserto. Mais uma para a coleção de trapalhadas de Pazuello, o ministro especialista em logística.
Foi um dia dos mais movimentados em Brasília, com diversas entidades, parlamentares e procuradores fazendo pressão contra a desvinculação dos pisos da saúde e da educação prevista no relatório de Márcio Bittar (MDB-AC) para a PEC Emergencial. Um dos episódios mais ilustrativos foi protagonizado pelo ex-presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP). Recém-empossado no comando da Comissão de Constituição e Justiça da Casa, ele declarou que a PEC só seria votada com a retirada do trecho anti-SUS. “Não vai votar. Não vai. Está dando confusão aquele negócio. Só se… O acordo que pode se buscar é tirar (a desvinculação dos pisos)”, disse a jornalistas.
Com a maré virando, ganhou força a ideia que já tinha sido ventilada por Arthur Lira (PP-AL) de fatiar a PEC, votando com rapidez apenas o trecho que autoriza o pagamento de mais rodadas do auxílio emergencial, deixando todo o restante em banho maria – em outras palavras, o pesadelo da equipe econômica comandada por Paulo Guedes. “Não avaliamos isso ainda, mas eventualmente pode ser uma possibilidade“, afirmou o presidente do Senado Rodrigo Pacheco (DEM-MG) à imprensa antes do começo da sessão do plenário.
Antes, Pacheco tinha recebido uma comitiva composta por parlamentares e representantes dos conselhos de secretários estaduais e municipais de saúde (Conass e Conasems) e do Conselho Nacional de Saúde que entregaram uma petição não só pela manutenção do piso como pela ampliação do financiamento do SUS diante do recrudescimento da pandemia.
Diante de tudo isso, o que fez Márcia Bittar, sempre articulado à equipe econômica? Apresentou uma nova versão do seu relatório… mantendo a desvinculação. Segundo a Folha, Guedes bate o pé para que o texto não seja ainda mais “desidratado” do que já foi pois essa “agenda liberal” é sua aposta para continuar no governo. O ministro já teria cedido quando concordou com a retirada do corte de jornada e salários dos servidores da PEC e não estaria disposto a negociar mais. Daí a ideia de fatiamento ganhar força. E a irritação com o governo também: nos bastidores, não faltam críticas à falta de jogo de cintura da equipe econômica, num flashback das dificuldades de diálogo que envolveram a reforma da Previdência. À certa altura, Rodrigo Maia (DEM-RJ) tripudiou no Twitter: “Pelas últimas notícias, a PEC Emergencial morreu”.
Ao longo do dia, foram publicadas diversas notas de repúdio à desvinculação, como as escritas pelo Fórum dos Governadores do Nordeste, pela Confederação Nacional dos Municípios e pelas entidades vinculadas aos Tribunais de Contas. A 1ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal e a Comissão Permanente de Educação do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais de Justiça enviaram ao Congresso uma manifestação alertando que o fim do piso de gastos com saúde e educação “ofende princípios constitucionais”.
A reunião entre líderes em que se discutirá a retirada da PEC da pauta de votações de hoje deve acontecer agora de manhã.
Ensaios de fase 3 nos dão uma boa ideia de como as vacinas vão proteger a população, mas a prova de fogo vem quando elas de fato começam a ser distribuídas em massa – em ambientes menos controlados, com cadeias de frio que podem não ser perfeitas e em pessoas com vários tipos de problema de saúde. É o que tem acontecido em Israel, e um grande estudo publicado ontem no New England Journal of Medicine traz notícias excelentes: o desempenho do imunizante da Pfizer/BioNTech tem sido tão bom quanto nos testes clínicos.
Os pesquisadores analisaram dados de 1,2 milhão de pessoas, sendo que metade tinha recebido a vacina, e a outra metade, não. A conclusão é que o imunizante ofereceu 94% de proteção para doença sintomática em todas as faixas etárias e 87% contra hospitalizações. Quase todos os participantes receberam a segunda dose no tempo certo, então não dá para saber se um regime de dose única seria bom. Mas a análise mostrou uma proteção moderada com uma dose até as vésperas do reforço: a proteção contra infecções sintomáticas, hospitalizações e doenças graves foi de, respectivamente, 57%, 74% e 62%.
É bom ter em mente que não há risco zero. Na amostra envolvida no estudo, nove pessoas que tinham tomado as duas doses da vacina morreram de covid-19, contra 32 que não tinham recebido o imunizante. O autor principal e diretor do Instituto de Pesquisa Clalit de Israel, Ran Balicer, alerta que ainda é preciso ter precauções contínuas, mesmo para quem já se vacinou, em locais onde o vírus está muito disseminado.
Um ponto de atenção: esse o estudo não analisa o efeito da vacina das novas variantes. Mas, na época em que foi realizado, até 80% das infecções no país eram da B.1.1.7, identificada no Reino Unido.
Ontem foram entregues as primeiras vacinas da Covax Facility, o que vai possibilitar o tardio começo da vacinação em mais de uma centena de países de baixa e média renda. Pela manhã, um avião com 600 mil doses do imunizante de Oxford/AstraZeneca chegou a Gana. A quantidade é pequena para o país de 30 milhões de habitantes, e o consórcio ainda vai ter muito trabalho para atingir suas metas: começar a vacinação em todos os países nos primeiros cem dias do ano e entregar 2,3 bilhões de doses até dezembro.
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Covid: de que servem 250 mil mortes? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU