27 Novembro 2020
Sumiram registros de compra de 7 milhões de kits. Material enviado aos Estados estava incompleto. Não há plano nenhum para testar população. Mortes avançam em todo o país. E mais: o mega-vazamento de dados do SUS pelo Albert Eintein.
A reportagem é de Maíra Mathias e Raquel Torres, publicada por Outra Saúde, 26-11-2020.
Aconteceu ontem a audiência pública na Câmara dos Deputados que ouviu Ministério da Saúde, estados, municípios e Anvisa sobre o caso dos 6,86 milhões de testes RT-PCR armazenados pelo governo que perdem a validade nos próximos dois meses. E duas coisas chamaram atenção na narrativa apresentada pelos representantes da pasta.
A primeira delas é que, até agora, o ministério parece não ter tomado pé da situação. Três dias depois que um dos maiores jornais do país estampou a manchete com o escândalo dos testes, o secretário de vigilância em saúde, Arnaldo Medeiros, parece sequer ter ido atrás dos documentos por trás do caso. Ele disse não conhecer a memória de cálculo da compra dos testes, que normalmente está anexada ao processo. “Quando falei que não conhecia a memória de cálculo, não quis dizer que não haveria. Até o presente momento, não tenho conhecimento dessa memória de cálculo. Certamente tem uma explicação para isso”, disse. Nós cá gostaríamos de saber qual.
O secretário também deu respostas vagas a respeito do programa de testagem da pasta, batizado de Diagnosticar para Cuidar, que está muito longe de atingir a meta de 24 milhões de exames até dezembro – no momento foram feitos pouco mais de sete milhões. Afirmou que a ideia é “testar cada vez mais”, sem explicar por que se testou pouco até agora e qual é o plano para que, no futuro, isso mude.
O problema de fundo do encalhe dos testes é a falta de insumos para que eles sejam efetivamente aplicados e tenham resultado revelado. Há um descompasso. Por exemplo: a pasta já enviou 9,3 milhões de exames aos estados, mas junto com eles seguiram apenas três milhões dos reagentes que possibilitam a identificação do vírus no material coletado, contabiliza o Estadão.
Segundo o diretor de logística do ministério, Roberto Lopes, uma compra de dez milhões de reagentes teve que ser cancelada. Só que isso aconteceu mais de um mês atrás, no dia 21 de outubro, quando a aquisição de R$ 133 milhões foi questionada por suspeita de direcionamento da licitação. Tanto tempo depois o que foi feito? Aparentemente nada, já que Lopes afirmou que a pasta “deve” abrir pregão para aquisição de oito milhões de reagentes “em dez dias”.
Também parece não fazer sentido o ministério ainda ter um estoque de 600 mil reagentes em um momento-chave de repique da pandemia, quando o esforço para testar deveria estar a toda.
E isso nos leva ao segundo aspecto que chama atenção nas falas das pessoas que estão no comando do Ministério da Saúde: a forma como tentam tratar os brasileiros de bobos. Arnaldo Medeiros disse ontem que a “caixinha” do kit para testagem tem uma validade “cartorial” dada pela Anvisa. A representante da agência reguladora presente na audiência teve que desmenti-lo, dizendo que o vencimento é para valer e foi dado pelo próprio fabricante.
Ontem, o ministério anunciou que recebeu da fabricante, a coreana Seegene, estudos que indicam que o produto pode ter sua validade ampliada por mais quatro meses. Mas até aquele momento, a pasta não havia feito solicitação à agência reguladora, que tem negado pleitos parecidos com base em justificativas técnicas e legais. Medeiros disse que ainda estava verificando como fazer a solicitação à Anvisa…
No estoque do Ministério da Saúde, há um total de aproximadamente 7,07 milhões de testes, dos quais 2,8 milhões vencem em dezembro, 3,9 milhões em janeiro, 212 mil em fevereiro e 70,8 mil em março. O representante do conselho de secretários estaduais de saúde confirmou que pelo menos 605 mil testes estocados nos estados estão próximos do vencimento; segundo ele, isso acontece em três semanas.
O relator dos processos sobre a atuação do Ministério da Saúde durante a pandemia, o ministro do TCU Benjamin Zymler cobrou ontem que a pasta adote “posição centralizada de liderança para coordenar a atuação em todo o Brasil”, em vez de alegar que envia testes apenas quando há pedidos de estados e municípios.
Na mesma sessão do Tribunal, o ministro Bruno Dantas disse que se os quase sete milhões de exames forem mesmo jogados no lixo isso será um “crime de lesa-pátria”. “Trata-se de menosprezo com a saúde da população. Não estou atribuindo responsabilidades ainda, mas chegará o momento de fazê-lo” disse.
Uma denúncia feita ao Estadão expõe uma gigantesca falha na segurança das informações pessoais dos brasileiros na pandemia que afeta, inclusive, o presidente Jair Bolsonaro. No total, 16 milhões ficaram por quase um mês com dados como CPF, endereço, telefone e doenças pré-existentes abertos para quem quisesse ver.
A história é a seguinte: Wagner Santos, cientista de dados do Hospital Albert Einstein, publicou na plataforma GitHub uma lista com logins e senhas que davam acesso aos bancos de dados de pessoas testadas, diagnosticadas e internadas por covid em todo o país. Assim, desde o dia 28 de outubro, qualquer um que se atentou para isso na rede voltada para programadores pôde acessar os registros lançados em dois sistemas federais: o E-SUS-VE, no qual são notificados casos suspeitos e confirmados da doença quando a pessoa apresenta quadro leve ou moderado, e o Sivep-Gripe, em que são registradas todas as internações por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG).
Alguns desses registros tinham informações do prontuário, como medicamentos administrados durante a hospitalização. Dá para saber, por exemplo, quem usou hidroxicloroquina.
Eduardo Pazuello foi uma das muitas figuras públicas expostas: a repórter Fabiana Cambricoli conseguiu ver até em que andar do Hospital das Forças Armadas ele ficou internado e qual foi o profissional que lhe deu alta. Dentre as autoridades afetadas estão 17 governadores e os presidentes da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ) e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP).
E por que Wagner Santos tinha acesso a esse tipo de informação? Porque o Einstein é um dos hospitais de elite caracterizados como “filantrópicos de excelência” que, em troca de isenção fiscal, faz projetos para o Ministério da Saúde no âmbito do Proadi, o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do SUS…
Foi só depois do contato com a reportagem que as chaves de acesso expostas foram trocadas. O Ministério está rastreando na internet endereços onde os dados podem ter sido replicados.
Segundo o advogado Juliano Madalena, tanto o funcionário e o hospital privado quanto a pasta podem ser processados por dano coletivo, já que a Lei Geral de Proteção de Dados diz que é dever de quem controla e acessa esse tipo de informação evitar vazamentos. Neste caso, o vazamento parece ter sido ativamente promovido.
A análise parcial dos ensaios de fase 3 com a vacina de Oxford/AstraZeneca, divulgados no início desta semana, foi recebida com esperança e alguma estranheza, como relatamos aqui. Havia dúvidas sobre o motivo que levara dosagens distintas a diferenças tão gritantes na eficácia – que variou de 62% a 90%. Além disso, os desenvolvedores não divulgaram os dados completos. Mesmo assim, a eficácia média anunciada de 70% soava como uma boa notícia diante do fato de que imunizante é barato e fácil de distribuir. Só que, conforme novas informações foram chegando, problemas apareceram.
Vários são descritos em um ótimo artigo publicado na Wired. Um deles é que as eficácias distintas foram observadas em estudos também substancialmente distintos, um realizado no Reino Unido, e outro no Brasil. Misturar resultados assim não é uma prática padrão, nem foi uma estratégia usada por outros fabricantes até aqui. De início, o comunicado à imprensa da Universidade de Oxford e da AstraZeneca dizia que a eficácia de 62% foi observada num regime de aplicação de duas doses da vacina, enquanto a de 90% foi constatada no grupo que recebeu apenas meia dose seguida de uma dose inteira. A matéria nota que isso já configura dois ensaios diferentes e, conforme também observamos na newsletter, a única forma de confirmar essa eficácia da dosagem menor será prosseguindo com testes para estudá-la.
Mas depois ainda se soube que a dosagem não era a única diferença: todos os participantes que receberam a meia dose tinham menos de 55 anos, enquanto o outro grupo tinha voluntários mais velhos. Um agravante é que isso não foi revelado pela empresa ou pela universidade, mas sim por Moncef Slaoui, chefe da Operação Warp Speed, iniciativa dos EUA que injeta recursos no desenvolvimento dessa e de outras vacinas, como nota o New York Times.
O texto da Wired ainda diz que Oxford e AstraZeneca relataram apenas os resultados para certos subgrupos de voluntários de cada estudo: “os dois subgrupos escolhidos deixam de fora talvez metade das pessoas no ensaio brasileiro”, escreve a autora, Hilda Bastian. Os grupos de controle com placebo de cada ensaio também foram diferentes. No Reino Unido, os voluntários receberam a vacina meningocócica, enquanto, no Brasil, receberam também uma solução salina.
Um ponto interessante desse artigo é a observação de que a possibilidade de mesclar vários ensaios apareceu na semana passada, em um apêndice de um documento publicado pela universidade e a farmacêutica, mas passou desapercebido. Uma seção sobre as análises preliminares descrevia um plano para combinar e analisar dados de não apenas dois, mas quatro ensaios clínicos realizados de maneiras diferentes em três continentes.
“O apêndice não diz quando esse se tornou o plano. Nem sabemos se a equipe Oxford/AstraZeneca o seguiu. Na verdade, é impossível saber, neste momento, quantas análises esses pesquisadores executaram e a partir de quais dados. Essa é uma bandeira vermelha com luzes piscando (…). Tudo o que sabemos com certeza é que, na segunda-feira, Oxford/AstraZeneca anunciaram os resultados de diferentes análises provisórias que incluíram apenas voluntários dos dois estudos no Reino Unido e no Brasil”, diz Bastian.
É realmente estranho porque, se houve estudos com características diferentes, como tirar deles um resultado único? Não se sabe quais foram os resultados dos outros dois ensaios, nem por que não foram incluídos.
O que fica disso tudo é uma desconfiança de boa parte da comunidade científica em relação à transparência na comunicação dos dados. Ela se reflete no mercado: as ações da AstraZeneca caíram 5% nesta semana. E pode se refletir também nas agências reguladoras, que afinal não têm informações suficientes para conceder aprovações emergenciais. Segundo o New York Times, as chances de essas agências nos EUA e em outros países autorizarem rapidamente o registro dessa vacina estão diminuindo. Aqui no Brasil, a CBN apurou ainda na terça que a farmacêutica descartou pedir a autorização neste momento.
A Pfizer informou ontem que vai começar a mandar à Anvisa os dados sobre a sua vacina. Não se trata ainda de um pedido de registro, mas do envio das informações no regime de ‘submissão contínua’, para que a agência vá analisando aos poucos e o processo esteja mais avançado quando a farmacêutica fizer o pedido formal de aprovação.
Um dia depois que o ministro do Supremo Ricardo Lewandowski deu prazo de 30 dias para que o Ministério da Saúde apresente um plano de vacinação para combater a pandemia, a pasta disse a governadores que o documento será divulgado na próxima segunda-feira. A informação divulgada pelo jornal O Globo foi confirmada à coluna de Mônica Bergamo pelo governador do Piauí Wellington Dias (PT). Segundo ele, a campanha trabalhará com múltiplas vacinas, “começando pela primeira autorizada pela Anvisa”.
Antes, o jornal carioca já havia adiantado que municípios pressionam o governo federal para que sejam definidos o maior número possível de pontos de imunização, elaborando cenários diferentes de acordo com as características das principais vacinas candidatas, como necessidade de refrigeração (que varia de 2º C, no caso das vacinas que já têm acordos firmados com o ministério e com o governo de São Paulo) até -70º C, caso da tecnologia da Pfizer, uma das cinco empresas escolhidas pela pasta para assinar protocolo de intenção de compra.
Sabemos que as escolas não servem só para oferecer educação e promover a socialização. Para muitas crianças, elas são também um espaço onde se identificam problemas domésticos – a maior parte das denúncias feitas aos conselhos tutelares chegam por meio das escolas. Com a pandemia, essa via acabou, ao mesmo tempo em que as crianças passaram a ficar mais tempo em casa. Resultado: uma explosão nas denúncias de violência doméstica e abuso sexual, que agora chegam por outros canais A reportagem do Intercept traz depoimentos de dez conselheiros tutelares da cidade de São Paulo que dão conta do aumento. Mas essa curva só é conhecida a partir do contato com cada conselho, porque São Paulo simplesmente não tem um sistema de estatísticas para isso.
“Além da alta dos números, as denúncias que chegavam pela escola eram, muitas vezes, de casos em que poderiam acontecer abusos, então a gente atuava para que não acontecessem. Após o início da pandemia, o fato acontece para depois a gente entrar em ação. Estamos chegando depois do dano maior ter ocorrido”, lamenta Deziatto, conselheiro do bairro Rio Pequeno.
A violência contra mulheres, em casa, também subiu com o isolamento. Mas os espaços de acolhimento foram reduzidos, conta a Agência Pública: com a pandemia, os Cras (Centros de Referência em Assistência Social) restringiram ou cortaram o atendimento presencial.
Ontem, o IBGE divulgou mais dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-18. As primeiras informações começaram a ser divulgadas em abril e diziam respeito à alimentação dos brasileiros. Agora, saíram indicadores de despesas das famílias, vários deles sobre saúde.
De acordo com o instituto, a despesa per capita com saúde no país foi de R$ 133,23, sendo R$ 90,91 (ou 68% desse montante) desembolsado diretamente na aquisição de produtos ou serviços. O restante – R$ 42,32, ou 31% – foi fornecido pelo Estado. Esse percentual vai a 42% quando se olha para os 10% mais pobres.
A maior parte da despesa per capita foi com serviços (R$ 86,48) e o restante com medicamentos e produtos farmacêuticos (R$ 46,75). Famílias com idosos gastam mais com remédios e aquelas que têm crianças, com consultas.
Famílias em que todos os membros possuíam plano de saúde representam 18% do total, em contrate com a esmagadora maioria (64%) daquelas em que ninguém tinha convênio. São 133 milhões que ou usam o SUS para assistência ou precisam pagar do próprio bolso. “Esse dado já nos dá um panorama da importância do SUS para as famílias. No caso de haver desembolso direto, isso pode gerar efeitos perversos na estrutura de gastos das famílias, ou seja, mudança de alocações orçamentárias para garantir o acesso à saúde privado, diminuindo a demanda por outros bens e serviços”, destaca o estudo.
Cerca de 26% das pessoas pertenciam a famílias que tiveram alguma restrição a serviços de saúde e 16% a medicamentos. A falta de dinheiro foi o principal motivo que entravou o acesso. Há uma grande distância entre as famílias que se enquadram nos 10% da população com maior renda e aquelas que estão no bolo dos 40% com menor renda. Apenas 1,2% das pessoas pertencentes ao estrato rico relatam dificuldade de acesso a serviço de saúde, enquanto isso foi realidade para 12,8% das mais pobres.
A pesquisa mostrou também que 44,6% das pessoas viviam em famílias que avaliaram a saúde como boa, 28,9% como satisfatória e 26% como ruim. Dos que avaliaram a saúde ruim, 22% residiam em áreas urbanas e 4% em áreas rurais. Os residentes do Sudeste são os mais satisfeitos (19%), enquanto no Norte isso representa apenas 3% do total.
O governo quer votar uma proposta de emenda à Constituição diretamente no plenário do Senado, sem passar pela análise de nenhuma comissão. E não é qualquer PEC, mas aquela que, dentre outras coisas, deve extinguir os percentuais de financiamento do SUS. A boa notícia é que o plano parece um tanto descolado da realidade. A ideia do governo é que a votação aconteça no dia 8 de dezembro, mas o Valor conta que, segundo o regimento, é preciso que todos os líderes partidários concordem com isso – o que não deve ocorrer. O plano B para acelerar a votação da proposta é que o presidente da Casa, Davi Alcolumbre (DEM-AP) libere o retorno das comissões temáticas, paralisadas por conta da pandemia.
A propósito: poucos partidos tem sido consultados informalmente sobre o relatório final da PEC, que está sendo feito pelo senador Márcio Bittar (MDB-AC) que promete há meses apresentá-lo.
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Testes da Covid: o ministério entra em modo caos total - Instituto Humanitas Unisinos - IHU