03 Setembro 2020
Representantes do MPF e de MPs estaduais entraram com ações para que medicamento sem eficácia comprovada contra Covid-19 seja oferecido na rede pública de saúde.
A reportagem é de Anna Beatriz Anjos e Rafael Oliveira, publicada por Agência Pública, 01-09-2020.
Difosfato de cloroquina, sulfato de hidroxicloroquina e azitromicina. Desde maio, um trio de procuradores do Ministério Público Federal (MPF) atua para que a população de 27 municípios do Rio Grande do Sul tenha acesso a esses medicamentos no tratamento precoce da Covid-19. Apesar de a Organização Mundial da Saúde (OMS) e outras entidades científicas nacionais, como a Sociedade Brasileira de Infectologia, afirmarem que não há comprovação da eficácia da cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento da doença, os procuradores da República Alexandre Schneider, Wesley Miranda Alves e Higor Rezende Pessoa firmaram um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com 27 prefeitos da região de Bento Gonçalves. O objetivo do acordo: garantir “as condições necessárias” para que médicos da rede pública dessas cidades possam disponibilizar os medicamentos à população. Nos 27 municípios, vivem mais de 350 mil pessoas.
Segundo apuração da Agência Pública, a ação dos procuradores em Bento Gonçalves não é a única no Brasil: em ao menos nove estados, membros do MPF e dos MPs estaduais têm atuado para que a cloroquina e a hidroxicloroquina estejam disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS). Fora termos de ajustamento de conduta, membros do MP têm expedido recomendações ou mesmo entrado com ações judiciais – que obrigariam prefeitos a oferecer o medicamento defendido pelo presidente Jair Bolsonaro.
Prefeitura de Bento Gonçalves tem fornecido hidroxicloroquina e outros medicamentos à população no sistema de saúde público. Ministério Público assinou termo com prefeito de lá e de outras 26 cidades do Rio Grande do Sul (Foto: Divulgação/Prefeitura de Bento Gonçalves)
Além disso, a reportagem verificou que ao menos em três casos os procuradores envolvidos nas ações têm ligação com o MP Pró-Sociedade. O grupo, criado por representantes dos MPF e dos MPs estaduais no fim de 2018, tem bandeiras como o fim da “bandidolatria”, a defesa da educação como “prerrogativa da família” e a ideia de que o capitalismo e o conservadorismo são fatos, e não ideologias, conforme consta em sua carta de fundação.
Na última semana, membros da entidade fizeram representação a favor de Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional, em resposta à denúncia apresentada à corte, em julho, que acusou o presidente de genocídio por sua atuação diante da pandemia, que já matou mais de 120 mil pessoas no país. O portal Congresso em Foco já havia identificado que dois dos procuradores responsáveis por recomendações nesses moldes integram o MP Pró-Sociedade: Wesley Miranda Alves, do MPF-MG, e Ailton Benedito de Souza, do MPF-GO, são membros fundadores do grupo. A Pública verificou que Alexandre Schneider também assina a carta de criação da entidade como fundador.
Como o MP Pró-Sociedade não possui site e não indica um contato de assessoria de imprensa em suas redes sociais, enviamos perguntas à conta do grupo no Facebook, mas não obtivemos resposta.
A ação do trio de procuradores de Bento Gonçalves em relação à cloroquina começou no fim de abril, quando a Procuradoria da República em Bento Gonçalves abriu um inquérito para investigar um estudo sobre uso do medicamento em pacientes com Covid-19, produzido por cientistas vinculados à Fiocruz e à Fundação de Medicina Tropical em Manaus, entre outras instituições. A pesquisa analisava os efeitos de duas dosagens diferentes do medicamento aplicadas a 81 pacientes com coronavírus no Hospital Delphina Aziz, na capital do Amazonas. Os resultados preliminares apontaram que pessoas em estágio grave de Covid-19 não deveriam usar doses altas de cloroquina – o trabalho, aliás, foi interrompido precocemente após pacientes terem apresentado efeitos colaterais relacionados ao remédio, como arritmia cardíaca.
Não demorou para que o estudo virasse alvo de ataques nas redes pelos apoiadores do presidente Jair Bolsonaro e até por partidários do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump – à época, ambos já defendiam o uso de cloroquina contra o coronavírus. Como providências iniciais da investigação, os procuradores Schneider, Alves e Pessoa pediram que os 27 autores respondessem a 32 pontos levantados sobre o estudo.
Schneider é um dos titulares em Bento Gonçalves, mas os demais procuradores atuam em outros estados: Alves trabalha em Uberlândia (MG), e Pessoa, em Palmas (TO). Pela assessoria de imprensa do MPF no Rio Grande do Sul, Schneider explicou que os colegas foram “designados a seu pedido pela PGR para auxiliarem na investigação por terem feito pesquisas relacionadas ao tema”. Questionada, a Procuradoria confirmou o relato de Schneider e informou que “a designação de membros para auxiliar nos trabalhos em diferentes temáticas e unidades do MPF é habitual”.
Já em 23 de maio, o trio de procuradores emitiu uma recomendação solicitando que 27 municípios da região implementassem “as condições necessárias” para que os médicos de suas unidades de saúde pudessem realizar a medicação de pacientes com diagnóstico de Covid-19. O texto estabelece que os profissionais sigam as diretrizes publicadas dias antes em nota informativa do Ministério da Saúde sobre o tema, de 20 de maio, que orienta o uso de cloroquina, hidroxicloroquina e azitromicina em pacientes no estágio precoce da doença. A nota do Ministério da Saúde esteve no centro das razões que levaram à saída do ex-ministro Nelson Teich do governo.
Logo depois da recomendação, os procuradores contataram diretamente as prefeituras para negociar a assinatura do TAC que estabeleceria as regras para o uso dos medicamentos nos serviços públicos de saúde. Embora não fosse obrigatório, todos os 27 prefeitos firmaram o termo, homologado em 5 de agosto. O documento deixa a cargo do médico a adoção do protocolo do Ministério da Saúde, mas determina que o profissional deve informar o paciente sobre a possibilidade, para que “o cidadão possa participar da decisão”. A reportagem enviou questionamentos aos três procuradores via assessoria de imprensa do MPF nos estados, mas os pedidos não foram atendidos.
Em 14 de maio, a rotina da cidade de Floriano, no interior do Piauí, recebeu uma novidade: a chegada de Damares Alves, ministra da Família, Mulher e Direitos Humanos. O objetivo da ministra era visitar a UTI de um hospital que supostamente teria zerado o número de internações após a utilização de cloroquina. A informação, divulgada por Damares como um “milagre”, foi posteriormente desmentida pelo diretor do hospital.
No dia anterior, o procurador do MPF no estado Kelston Pinheiro Lages havia ajuizado uma ação civil pública para obrigar a disponibilização de hidroxicloroquina e azitromicina no SUS, citando como exemplo o caso do hospital de Floriano. Direcionada à União, ao estado e à capital, Teresina, a ação movida pelo procurador regional dos Direitos dos Cidadãos no Piauí pedia que a decisão tivesse efeito nacional.
“Não poderíamos ver a população tendo suas vidas ceifadas de maneira tão drástica existindo um procedimento precoce que possui uma base empírica associada a uma base científica, não no nível que estão a exigir, porque não daria tempo”, afirma Lages em entrevista à Pública. Para o procurador, há um “grande equívoco” que vem “até sendo distorcido pela grande mídia” em relação à comprovação da eficácia da hidroxicloroquina, e, segundo ele, as evidências coletadas até agora são suficientes.
As evidências apontadas pelo procurador, contudo, são amplamente questionadas na comunidade científica. Em maio, o médico e advogado Daniel Dourado, do Núcleo de Pesquisa em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo (Cepedisa/USP), escreveu um parecer contrário à ação de Lages, qualificando-a como “descabida” e afirmando que ela “confunde conceitos e trata como evidência científica algo que não é”.
Ministra Damares visitou hospital propagandeado como milagre de cura pela cloroquina por grupos bolsonaristas. Diretoria do próprio hospital negou versões (Foto: Ascom/Sesapi)
“Naquela época, havia ausência de evidências de que [a hidroxicloroquina] funcionava, o que, do ponto de vista jurídico-legal, já é suficiente para que não possa ser adotada. Agora é mais grave, porque já temos várias evidências de que não funciona”, aponta Dourado. Ele se refere, por exemplo, ao estudo divulgado em julho por pesquisadores brasileiros no New England Journal of Medicine, cujos resultados não mostraram eficiência da hidroxicloroquina em casos leves e moderados de pacientes internados com Covid-19.
Boa parte da argumentação de Lages se embasa na experiência da médica piauiense Marina Bucar Barjud, que atua em Madri e defende a utilização de hidroxicloroquina e azitromicina pelo menos desde abril, apesar de o protocolo não ser aceito pelo Ministério da Saúde da Espanha. Marina foi uma das responsáveis pela adoção do protocolo com cloroquina em Floriano, onde parte de sua família vive e mantém uma faculdade particular. Na ação, Lages cita ainda o médico oncologista e ginecologista Sabas Carlos Vieira, membro do Conselho Regional de Medicina do estado (CRM-PI) que também ajudou a formular o protocolo adotado em Floriano.
À Pública, o procurador piauiense citou também o médico infectologista Francisco Cardoso, ferrenho defensor da utilização precoce da hidroxicloroquina. Em entrevista ao site Brasil Sem Medo, ligado ao escritor Olavo de Carvalho, o médico afirmou que cientistas “estão sendo remunerados mundo afora para falar mal da cloroquina” e que a “esquerda” está usando o medicamento como “uma oportunidade para atacar os governos de direita”.
Em 19 de maio, a Justiça Federal no Piauí promoveu audiência entre representantes do MPF, União, estado e do município de Teresina. Marina Barjud e Sabas Vieira estiveram presentes. O estado e a capital não aceitaram adotar o protocolo composto por hidroxicloroquina, mas alegaram já oferecer o medicamento em suas unidades de saúde – principal demanda da ação judicial ajuizada por Lages. Para a homologação do acordo, o MPF aguarda o governo do estado e a prefeitura de Teresina comprovarem a disponibilização do fármaco em suas redes, o que ainda não ocorreu.
Após a audiência, a Justiça Federal no Piauí negou a solicitação de Lages para dar efeito nacional à ação. Recusou também o pedido para que fossem divulgadas à população informações sobre a distribuição do medicamento. Na decisão, a juíza Marina Rocha Cavalcanti Barros Mendes afirma que “[dar] ampla publicidade para promover uso de medicação, sabendo-se que até o momento ela não teve o devido respaldo científico, seria ofensivo à transparência que deve nortear a Administração Pública”.
Apesar de a ação não ter obtido êxito, Lages fez escola: os procuradores e promotores de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Goiás que emitiram recomendações depois dele também mencionam em suas argumentações os médicos Sabas Vieira e Marina Barjud e o caso do hospital em Floriano. Inclusive, os textos dessas outras três recomendações têm trechos idênticos entre si e foram emitidos em sequência: primeiro, em 22 de maio, saiu o do MPF-MG em conjunto com o MP estadual; no dia seguinte, 23, veio o do MPF-RS; e por último, em 24 de maio, o do MPF-GO.
Em Minas Gerais, a recomendação de procuradores do MPF e promotores do MP estadual foi direcionada ao governador e a prefeitos de 46 cidades mineiras, além dos secretários estadual e municipais de Saúde. O objetivo é semelhante ao do MPF no Piauí: garantir o fornecimento de medicamentos sem eficácia comprovada nas redes de saúde dos municípios que compõem as regiões judiciárias de Ituiutaba, Uberlândia e Paracatu. O documento recomenda à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que adote medidas para que a cloroquina e outros medicamentos sejam disponibilizados nas farmácias comerciais da região.
Os autores da recomendação são os procuradores da República Wesley Miranda Alves e Cleber Eustáquio Neves e os promotores estaduais Maria Carolina Silveira Beraldo e Fernando Rodrigues Martins. No texto, eles afirmam que agentes públicos que se eximem de adotar protocolos como o da cloroquina “incorrem em crime contra a humanidade”.
Entre as experiências em que a ação movida em Minas Gerais se baseia, está o estudo clínico publicado pelo médico francês Didier Raoult em 5 de maio. Após ter sido revisado, outros cientistas apontaram uma série de inconsistências no estudo de Raoult.
Em 10 de julho, considerando que os municípios não acataram a recomendação, os procuradores Wesley Miranda Alves e Cleber Eustáquio Neves ingressaram com duas ações civis públicas com o mesmo objetivo, também nas regiões judiciárias de Ituiutaba, Uberlândia e Paracatu.
Questionado pela Pública sobre a motivação das ações, Neves afirmou que “há no mundo inteiro estudos recomendando o uso da hidroxicloroquina, da ivermectina e azitromicina”. “Inclusive a Sociedade Brasileira de Infectologia [SBI] recomenda o uso dessa medicação, tudo baseado em evidências. Eu vou fechar meus olhos e não vou dar bola para isso? Se a principal entidade no Brasil entende que o tratamento precoce com essas medicações é baseado em evidências e é efetivo, por que eu vou questionar?”, disse.
Ao contrário do que o procurador afirma, o último parecer da SBI, de 17 de julho, defende que é “urgente e necessário que a hidroxicloroquina seja abandonada no tratamento de qualquer fase da Covid-19. A entidade chegou a essa conclusão depois de ter analisado os resultados de dois estudos que não identificaram benefícios clínicos da hidroxicloroquina para pacientes com Covid-19 no Canadá, Estados Unidos e Espanha.
Ambas as ações receberam resposta negativa da Justiça Federal em Minas Gerais. Na decisão sobre o processo referente a Uberlândia e Ituiutaba, o juiz Osmar Vaz de Mello da Fonseca Júnior ressalta que “os medicamentos ora indicados não possuem eficácia comprovada, do ponto de vista científico, para o tratamento da Covid-19”. Já na decisão a respeito da ação movida em Paracatu, o juiz Gabriel José Queiroz Neto afirma ser “temerário impor ao Estado o fornecimento de protocolos cujas conclusões não são 100% seguras, e isso de forma generalizada, como se fosse algo indiscutível”. O procurador Cleber Eustáquio Neves afirmou estudar a possibilidade de recorrer.
Grupo de procuradores do MPF criou inquérito para investigar pesquisa da Fiocruz que apontou riscos à saúde do tratamento com clorquina (Foto: Paula Fróes/Gov BA)
As ações de MPs a favor da cloroquina são o oposto do que defende o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Em junho, o órgão emitiu uma recomendação de que, quando não houver consenso científico sobre uma política pública, é atribuição do gestor escolher o que será feito e de que não cabe ao MP adotar “medida judicial ou extrajudicial” para tentar interferir ou mudar a decisão.
“Entendo que não caberia de forma nenhuma [a atuação do MP], porque ele está judicializando, tentando obrigar a administração a fazer algo que não tem respaldo científico. Aí eu acho que há exorbitância, sim”, declara Fabrício Motta, professor de direito administrativo da Universidade Federal de Goiás (UFG) e conselheiro do Tribunal de Contas dos Municípios do estado. Ele concorda com o entendimento do CNMP. “Hoje, se há uma sinalização de órgãos da ciência [sobre o uso de cloroquina e derivados], é em relação à falta de eficácia”, diz.
A recomendação do CNMP, contudo, gerou questionamentos. Organizações ligadas a membros do MP, incluindo a Associação Nacional de Procuradores da República (ANPR), divulgaram nota em que pedem a revogação do documento, alegando violações aos princípios constitucionais do MP, como a sua autonomia funcional.
Para o promotor Rafael Meira, membro auxiliar da Comissão de Saúde do CNMP, a escolha entre adotar ou não o uso de hidroxicloroquina e outros fármacos para tratar a Covid-19 nas redes públicas de estados e municípios é dos gestores, por conta do “sistema democrático atual, que prevê a investidura por parte do voto”. “Isso dá muito mais legitimidade ao gestor para essa escolha, porque também é ele que possui a maior responsabilidade por ela”, avalia. Meira defende que o MP, como órgão de controle, atue para fazer com que “as escolhas dos gestores sejam baseadas em critérios razoáveis”. “Não cabe ao MP definir qual o melhor tratamento. Essa não é nossa formação, não somos médicos.”
Para o médico e advogado Daniel Dourado, a atuação de integrantes do MP vem na esteira da publicação, desde maio, de “protocolos extraoficiais” do Ministério da Saúde para o uso de cloroquina, hidroxicloroquina e azitromicina em pacientes com Covid-19. “Esses medicamentos já têm registro para outras indicações – a cloroquina, por exemplo, é registrada há décadas para tratamento de malária, artrite reumatoide, lúpus etc. Mas o uso deles fora dessas indicações de bula não é registrado e, por isso, não é admitido pela autoridade sanitária, a Anvisa. A Anvisa não reconhece o uso de cloroquina, ivermectina ou qualquer outra droga para Covid-19”, destaca. “Esses promotores e procuradores estão agindo contra a legislação sanitária quando querem forçar um prefeito, governador ou secretário de Saúde a adotar uma medida sem comprovação científica.”
Dourado lembra que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) ação ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde (CNTS) pedindo que as autoridades federais sejam obrigadas a se abster de recomendar o uso de cloroquina e/ou hidroxicloroquina para pacientes com Covid-19 em qualquer estágio da doença, suspendendo qualquer contrato de fornecimento desses medicamentos. A medida aguarda julgamento do relator, Celso de Mello. Segundo Dourado, uma decisão favorável à solicitação da CNTS pode ter efeito sobre iniciativas como as dos membros do MP.
No Rio Grande do Sul, algumas das prefeituras que firmaram o TAC com o MPF já fizeram compras públicas de cloroquina e derivados depois da assinatura do acordo, em 10 de julho. A Secretaria de Saúde de Bento Gonçalves, o município mais populoso entre os 27, informou que em 17 de julho adquiriu 450 comprimidos de hidroxicloroquina para tratar pacientes com “suspeita ou confirmação” de Covid-19. Além disso, no último dia 24, a cidade recebeu outros 27 mil comprimidos de cloroquina vindos do Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército (LQFEX).
O município de Garibaldi, o segundo mais populoso do grupo, também já abasteceu seus estoques. De acordo com a Secretaria Municipal de Saúde, imediatamente após a assinatura do TAC, houve “a compra dos medicamentos hidroxicloroquina (210 comprimidos) e ivermectina (200 comprimidos)”. O órgão comunicou que aguarda a chegada de uma caixa com 500 comprimidos de cloroquina solicitada ao Ministério da Saúde no início de agosto.
A Pública conversou com o prefeito Pedro Sotili (PTB-RS), de Nova Araçá, outro município signatário do acordo. Ele afirmou que o contato para as negociações do TAC partiu do procurador Alexandre Schneider. “Quem buscou essa questão foi o procurador da República, que entrou em contato com a associação para organizar esse protocolo. Isso foi através da Amesne”, diz. Amesne é a Associação dos Municípios da Encosta Superior Nordeste, presidida por José Carlos Breda (PP-RS), prefeito de Cotiporã, cidade que também firmou o termo.
Ao jornal Zero Hora, Breda também declarou que tudo começou pela iniciativa de Schneider. “Há algum tempo, os prefeitos foram instados pelo MPF a responder um questionamento. Pelo que nós entendemos, ele [procurador] estava questionando se os municípios estavam obstruindo a disponibilização de medicamento para tratamento preventivo. Estranhamos isso e respondemos que isso não cabia ao município, ao prefeito, mas que é uma questão de liberdade do médico, a critério dele”, explicou. “Depois, ele [procurador] entrou em contato de novo, fizemos reunião por videoconferência, e ele disse que o intuito não era constranger os prefeitos, pelo contrário. O que o MPF pediu aos prefeitos foi que eles não se opusessem se o médico quisesse prescrever o tratamento precoce. E, a partir disso, se partiu para a construção de um TAC.”
Tentamos contato com Breda, que não respondeu ao pedido de entrevista por mensagem nem atendeu as ligações. Enviamos ainda um pedido à assessoria de imprensa da Amesne, mas não tivemos resposta.
Em Goiás, o procurador Ailton Benedito de Souza é o autor da recomendação que pede que o governo do estado e todos os seus municípios adotem o protocolo de tratamento precoce para pacientes com Covid-19 do Ministério da Saúde. Publicado em 24 de maio, o documento solicita que a Anvisa tome medidas adequadas para que a hidroxicloroquina e azitromicina “estejam disponíveis nas farmácias e drogarias comerciais” das cidades.
Oito dias depois, o procurador transformou a recomendação em ação judicial, negada em primeira instância pela Justiça Federal de Goiás. Na decisão, o juiz Euler de Almeida Silva Júnior afirma que a concessão do pedido do procurador “implicaria institucionalização compulsória, no SUS, de assistência médico-farmacológica ambulatorial precoce com os medicamentos” e que é “temerária a interferência judicial na intensidade pretendida” pela ação de Souza. O procurador recorreu da decisão e aguarda novo julgamento.
Ailton Benedito de Souza é atualmente um dos principais expoentes conservadores do MPF. Em sua conta no Twitter, defende pautas como o Escola Sem Partido e o combate à “ideologia de gênero”, além de tecer críticas recorrentes à esquerda. Entre as declarações polêmicas do procurador, está a de que o partido alemão nazista era socialista. A Pública enviou um pedido de entrevista com Souza à assessoria do MPF em Goiás, mas não foi atendida. Posteriormente, encaminhamos ao órgão questionamentos específicos sobre a atuação do procurador em prol da disponibilização de cloroquina, hidroxicloroquina e azitromicina nas unidades de saúde do estado, porém não recebemos resposta até a publicação da reportagem.
A reportagem identificou também ações movidas por representantes dos MPs estaduais em outros cinco estados.
Em Paulínia (SP), promotores do MP de São Paulo emitiram recomendação e posteriormente ingressaram com ação civil pública para obrigar o fornecimento do kit de medicamentos no município. A ação foi julgada improcedente pela Justiça do estado, e o recurso dos promotores à decisão também foi negado. Ação civil pública semelhante foi movida em Conceição do Araguaia (PA) por representantes do MP do Pará, ainda sem decisão judicial.
No estado de Sergipe, uma ação civil pública recebeu decisão favorável: a juíza Tatyane Albuquerque, da 2ª Vara Cível do município de Estância, atendeu parcialmente à ação do MP, que solicitou que a cidade disponibilize hidroxicloroquina e outros medicamentos na rede pública.
Em Pernambuco, o MP fez recomendação à prefeitura de Timbaúba para garantir o fornecimento dos medicamentos para tratamento precoce. No Paraná, o MP emitiu recomendação para que o prefeito de Foz do Iguaçu garantisse o tratamento precoce com hidroxicloroquina de alunos da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) diagnosticados com Covid-19.
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Grupo do Ministério Público defende cloroquina no SUS em nove estados brasileiros - Instituto Humanitas Unisinos - IHU