A qualidade da alimentação piorou na pandemia. Entrevista especial com Walter Belik

"Há uma homogeneidade na alimentação: as pessoas comem o mesmo alimento no Sul e no Norte; se aproveita pouco a diversidade brasileira", diz o pesquisador

Foto: Instituto Cidade Amiga

Por: Ricardo Machado e Patricia Fachin | 26 Novembro 2020

Se no início da crise pandêmica muitos de nós vimos a possibilidade de ter uma alimentação mais saudável por passarmos mais tempo em casa, a constatação, depois de oito meses de distanciamento social, é a de que "a qualidade da alimentação piorou", diz o pesquisador Walter Belik, professor da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Segundo ele, isso se deve, em parte, às próprias escolhas alimentares dos brasileiros e ao aumento da compra de refeições por aplicativo, inclusive nas famílias com renda mais baixa.

 

Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp à IHU On-Line, Belik reflete sobre os efeitos das mudanças climáticas na produção de alimentos, explica a alta do preço de produtos essenciais, e defende uma rede de proteção social para retirar o Brasil do Mapa da Fome e restituir a segurança alimentar. A rede de proteção, segundo ele, deve estar fundamentada em dois pilares: uma renda básica universal e o acesso aos alimentos. "É preciso uma rede de proteção social para garantir que as pessoas possam se segurar em períodos de crise. Na campanha eleitoral deste ano, voltou a discussão sobre uma renda básica universal para que todos possam ter minimamente condições de consumirem alimentos. Essa é uma política compensatória porque se todos tivessem emprego e se a economia crescesse, não seria necessária uma política desse tipo. Mas precisamos colocar esse limite de primeiro garantir uma renda e, depois, garantir que mesmo as pessoas que não têm acesso à renda possam ter acesso a alimentos", justifica.

 

Ele também comenta a Economia de Francisco e Clara e o convite do Papa aos jovens economistas. " É incrível a vanguarda do Papa nessa discussão. Num mundo em que se está negando a mudança climática, o Papa fala em sustentabilidade, porque não é possível uma economia de desenvolvimento sem sustentabilidade e sem solidariedade", menciona.

 

Walter Belik (Foto: @Chasimagens)

Walter Belik é graduado e mestre em Administração pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas, com doutorado em Ciência Econômica pela Unicamp. É professor do Instituto de Economia da Unicamp.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - O que os gastos com alimentação revelam sobre a realidade econômica dos brasileiros?

Walter Belik – Em primeiro lugar é interessante mencionar que os gastos com alimentação foram caindo ao longo do tempo. Se compararmos a primeira Pesquisa de Orçamentos Familiares - POF, realizada em 2004, e depois as de 2008 e 2013, com as de 2017/2018, perceberemos que o gasto com alimentação foi entrando em segundo plano em relação a outros gastos, seja porque o alimento ficou mais barato, relativamente, seja porque outras despesas assumiram uma parcela maior do orçamento. Nas áreas urbanas, os custos com habitação e transporte passaram à frente dos custos com alimentação. Não sei como está essa situação agora, em função do aumento dos preços dos alimentos, mas o fato é que houve uma queda relativa dos custos com alimentação na cesta de consumo das pessoas.

A outra constatação é que quando separamos a alimentação em grupos, o que se percebe, a exemplo dos países desenvolvidos, é que no Brasil está aumentando a alimentação fora dos domicílios. Nas classes de renda mais alta, essa prática já é bastante elevada e ultrapassa 50% das famílias, enquanto nas classes de renda mais baixa já está em torno de 20%.

A alimentação fora de casa tem um significado diferente para as pessoas de renda de classe mais alta e mais baixa. Para a família de renda mais baixa, a alimentação fora de casa, geralmente, consiste na merenda escolar que as crianças recebem na escola – embora elas não paguem por esta merenda, o valor dela é imputado nas despesas de alimentação da família –, a alimentação que os trabalhadores recebem na fábrica ou o vale-refeição. Para as classes de renda mais alta, a alimentação fora de casa é feita em restaurantes, bares etc.

 

IHU On-Line – Em função da pandemia, que alterações vislumbra na alimentação das famílias? A tendência é que aumente a alimentação caseira, a alimentação fora de casa ou a tele-entrega?

Walter Belik – Essa é uma questão interessante. Embora consideremos a alimentação dentro de casa aquilo que consumimos nas residências, a alimentação delivery não é uma alimentação feita em casa no sentido de ser preparada pela família. É curioso porque em determinados países, como nos EUA, o sujeito compra uma pizza para comer em casa e ele de fato a come em casa, mas não prepara o próprio alimento.

Além disso, aumentou muito a compra por aplicativo, mesmo nas rendas de classe mais baixa. Ainda não sabemos qual o impacto que isso vai representar na cesta de consumo de forma geral. A minha desconfiança é que embora a alimentação seja feita dentro de casa, a qualidade da alimentação piorou na pandemia.

 

IHU On-Line - Segundo pesquisa realizada pelo senhor, apenas dez grupos de alimentos compõem quase a metade do consumo dos brasileiros. O que pesa na hora de escolher o que colocar no prato? Uma dieta tão restritiva tem como principal fator questões econômicas ou pode ser explicada por outros fatores?

Walter Belik – O que pesa muito é a falta de opção; não se apresentam opções para o consumidor e a compra feita no supermercado é cada vez mais sem surpresas. A grande crítica que se pode fazer a isso é que o Brasil, que tem uma diversidade enorme de produção, de clima, não aproveita todo o potencial que tem. Há uma homogeneidade na alimentação: as pessoas comem o mesmo alimento no Sul e no Norte; se aproveita pouco a diversidade brasileira.

Como os canais de distribuição estão muito concentrados, há essa homogeneidade no tipo de consumo e as classes de renda mais baixa emulam o padrão de consumo das classes mais altas, o resultado é que se acaba tendo pouca diversidade e uma repetição do consumo dos mesmos alimentos.

 

IHU On-Line – Nos últimos anos aumentou o número de atacadões no país e alguns até avaliam que essa será uma tendência para os próximos anos. Isso tende a reduzir ainda mais o padrão alimentar dos brasileiros? Quais são as vantagens e desvantagens desse tipo de mercado?

Walter Belik – Tende a reduzir, sim, mas não necessariamente, porque não se trata de algo intrínseco ao modelo de supermercado. Os supermercados poderiam trabalhar com diversidade, com suprimentos locais, desenvolvendo agricultores e fornecedores. Isso seria mais econômico e mais lucrativo para o supermercado. Mas como o sistema de distribuição em grandes centrais de distribuição e a compra são centralizados na sede das empresas, as negociações são feitas em grandes quantidades, então, tem essa mesmice.

Os supermercados poderiam trabalhar de forma ampla, diversificada. Conheço supermercados na Europa e na Califórnia, nos EUA, que basicamente vendem suprimentos locais. É uma grande operação do supermercado, mas ele privilegia o consumo local e isso é importantíssimo. No entanto, para alguns supermercados, é mais eficiente trabalhar com grandes negociações e não passa pela estratégia da empresa mudar essa lógica.

 

IHU On-Line - Neste ano de 2020, o brasileiro viu disparar o preço de alimentos básicos, como arroz e óleo de soja. Como, economicamente, explicar esses aumentos? O que esse episódio do aumento de preços dos alimentos básicos em 2020 revela sobre a produção e comercialização de alimentos e as escolhas de políticas econômicas no Brasil?

Walter Belik – Quando analisamos a oferta desses alimentos, se verifica que não houve queda na oferta. Se há um aumento de preços, esse aumento não ocorre por causa da falta de produtos. Pelo lado da demanda, o Ministério da Economia justificou o aumento dos preços em função do auxílio emergencial, porque as pessoas estão comendo mais. Mas não me consta que uma pessoa, quando estava empregada e gastava normalmente no supermercado, esteja gastando ainda mais agora que está desempregada e recebendo o auxílio. Não tem o menor sentido uma coisa dessas. Não se trata de um problema gerado pelo aumento da demanda.

Talvez os episódios de pânico poderiam explicar o fenômeno. No início da pandemia, falaram que iria faltar papel higiênico e as pessoas fizeram estoque desse produto. Mas o aumento dos preços não ocorre por causa disso.

 

Economia agrícola

O que se percebe claramente é que a economia agrícola tem o viés voltado para a dinâmica externa, que não tem nada a ver com o consumo doméstico. Como o dólar disparou a 5,70, e o preço da soja está vinculado ao dólar, o preço do óleo de soja, no outro dia, subiu.

O caso do arroz é típico: o Brasil importa aproximadamente um milhão de toneladas de arroz e exporta 200 mil toneladas. Nossa dinâmica não está ligada à importação de arroz. Não é porque o dólar sobe que o preço do arroz vai aumentar. O problema está na formação de preço e não em movimentos pelo lado real da economia, ou seja, oferta e demanda. Como a economia agrícola é oligopolizada, poucas empresas dominam o mercado e elas fazem os preços. No caso do arroz, especificamente, tem outro problema: o desmonte das políticas de estoques reguladores. O arroz é um caso típico de um alimento básico da alimentação do brasileiro sobre o qual o governo deveria ter controle para evitar aumentos excessivos de preços. O governo brasileiro deixou de fazer a gestão do estoque e isso não é algo recente do governo Bolsonaro nem do governo Temer; isso vem de antes.

Os volumes de estoque de arroz foram caindo ano a ano até que chegou o momento de crise, na pandemia, em que o estoque público de arroz era suficiente apenas para o abastecimento de alguns dias de consumo. Quando falamos de estoque, é bom deixar claro que não estamos falando da manutenção de armazéns ou volumes imensos de estoque – é isso que o pensamento neoliberal tenta fazer “colar” na discussão sobre estoques reguladores, ou seja, de que as políticas reguladoras do governo são ineficientes. Desde o final dos anos 1990, o governo FHC mudou a gestão dos estoques, que é feito via bolsa de mercadoria, não com a colocação de estoques físicos no mercado, mas através da opção de compra.

No final de 2019, havia 758 toneladas de arroz no mercado de opção, e o consumo do Brasil é de dez milhões de toneladas. Se juntarmos outros estoques estratégicos, como as 22.485 toneladas, que são estoques em poder da gestão pública, do Programa de Aquisição de Alimentos - PAA e da Política de Garantia de Preços Mínimos - PGPM, e dividirmos o valor de 22.485 por dez milhões, resulta em 0,2%. Multiplicando esse valor por 365 dias, temos como resultado oito dias de estoque. Isso é abrir mão de fazer política agrícola.

 

IHU On-Line – Como é feita a gestão do estoque regulador dos alimentos?

Walter Belik – O estoque físico é muito complicado de gerir porque 80, 90% da produção de arroz vem do Rio Grande do Sul e ele é consumido no Brasil inteiro. Se faltar arroz em Minas Gerais, não tem o menor sentido ter estoques reguladores na área de produção e ter que deslocar o arroz para o estado para colocá-lo no mercado. Esse tipo de operação tem um custo altíssimo e não resolve o problema.

A gestão do estoque é feita a partir de uma compra antecipada por parte do Estado, ou seja, ele tem um papel que lhe dá direito sobre os estoques que foram produzidos em qualquer lugar do Brasil, e ele pode exercer essa função no momento em que os preços estão muito elevados. A política de estoques funciona deste jeito: o Estado tenta estabilizar os preços de tal forma que quando o preço começa a aumentar, ele libera estoque, ou seja, o governo exerce a sua função de regulador e coloca o produto no mercado. Por exemplo, o estoque da Camil Alimentos no Rio Grande do Sul “não pertence” à Camil; pertence ao Estado. No momento em que o preço começa a aumentar, o Estado pode exercer sua função e colocar o arroz no mercado com o preço mínimo estabelecido pela Companhia Nacional de Alimentos - Conab. Isso também funciona no sentido contrário: quando o preço está muito baixo, esse preço pode desincentivar o produtor a plantar uma próxima safra. Nesse caso, o governo pode operar um preço mais alto, comprometendo-se a comprar o produto. Dessa maneira, é possível manter o preço estável em um determinado período: ele nem sobe muito nem cai muito.

O que acontece no caso do arroz é que o preço internacional vem subindo há alguns anos e a China está entrando no mercado e comprando bastante, de tal modo que já tem arroz em estoque para oito meses. No Sul, onde se produz o arroz gaúcho, ocorreram várias inundações, secas e efeitos climáticos que fizeram com que o preço subisse. Então, a compra antecipada que gera um estoque virtual deveria ter sido articulada há muito tempo e, por isso, num momento de crise como este, o governo não tem como intervir. É por essa razão que os especuladores e os oligopólios que dominam as cadeias de produção se sentem à vontade para aumentar os preços, porque sabem que nada vai acontecer.

 

IHU On-Line - Além da gestão pública dos estoques de alimentos, o que mais pode ser feito para evitar o aumento dos preços?

Walter Belik – Existem várias possibilidades e o governo, tardiamente, acordou para isso e liberou a importação sem imposto para uma série de produtos. É preciso criar mecanismos – e hoje esses mecanismos são todos via mercado, porque não tem como intervir – para aumentar a oferta rapidamente ou proporcionar alternativas para o consumidor. Em São Paulo, por exemplo, o governador está na contramão: aumentou o imposto sobre o produto agrícola. Isso é jogar gasolina na fogueira. É preciso baixar o imposto, retirar barreiras comerciais, favorecer a importação para mudar a dinâmica do setor, mostrando que os aumentos não têm sustentação.

 

IHU On-Line – Hoje, em função do aquecimento global e do aumento dos fenômenos climáticos extremos, projeta-se, consequentemente, um crescimento do número de refugiados climáticos. Que consequências já podem ser previstas em relação à produção e ao consumo de alimentos em decorrência da emergência climática, particularmente no Brasil?

Walter Belik – É possível ter efeitos desiguais a depender da cultura. Para o Brasil como um todo, o aquecimento global até poderá ser positivo em alguma medida. Hoje estão produzindo soja na Amazônia e ela é uma cultura de clima temperado, então, com o aquecimento global, o Brasil poderia ocupar mais áreas com soja. A cana-de-açúcar também poderia descer para os estados do Sul. Não estou defendendo isso, temos que acabar com o desmatamento para o plantio de soja e reduzir a monocultura da cana-de-açúcar, mas temos que estar atentos pois esse pode ser mais um efeito adverso das mudanças climáticas. No fundo, para as principais monoculturas cultivadas no Brasil, talvez o saldo seja positivo em termos de produção. Na Rússia, estão comemorando o aquecimento global porque dá para plantar por mais tempo e dá para ocupar a Sibéria, que é uma região enorme.

 

Mudança climática prejudica a diversidade

 

Esses efeitos acerca da produção são positivos em termos, porque determinadas culturas conseguem se adaptar e outras não. Mais uma vez a nossa discussão sobre a diversidade acaba sendo prejudicada, porque a mudança climática prejudica a diversidade de culturas. O Brasil deveria começar a se preparar bem para, em termos de política agrícola, fazer essa adaptação. A questão hídrica é fundamental, porque a agricultura consome 80% da água do planeta. Se não trabalharmos melhor essas questões, poderemos aumentar a produção de soja e de cana-de-açúcar, mas essas produções pressionarão ainda mais os recursos naturais e é preciso pensar nisso para evitar o desgaste para outras culturas.

 

IHU On-Line – É possível conciliar o agronegócio com a agricultura familiar diversificada?

Walter Belik – Em primeiro lugar, não temos mais que investir no agronegócio – inclusive, crédito público para o agronegócio é algo que não faz o menor sentido. Em segundo lugar, não é preciso produzir mais. O volume de produção de alimentos gerado pelo nosso planeta já é suficiente para alimentar todo mundo; o que existe é um problema de distribuição e falta de acesso das pessoas aos alimentos. Assim, mesmo projetando uma população de 9,3 bilhões para 2050 – alguns calculam que a partir daí comece a ter um declínio na população do planeta –, o que produzimos hoje já é quase totalmente suficiente para alimentar a população. O que precisamos fazer, ao contrário, é melhorar os sistemas de distribuição, reduzir perdas e desperdícios, garantir o acesso das pessoas aos alimentos e tentar preservar o meio ambiente, porque avançar sobre reservas de água vai acabar nos prejudicando mais para frente.

A agricultura familiar, nessa equação, é a que menos pressiona o meio ambiente: ela produz diversidade e é voltada para o consumo próprio e local, além de ter uma série de outras vantagens.

 

IHU On-Line - Como as universidades têm contribuído para propor um novo modelo de desenvolvimento agrícola para o país e o que mais pode ser feito nesse sentido desde a academia?

Walter Belik – Embora existam aquelas universidades com problemas de financiamento e mais voltadas ao treinamento e não à pesquisa, ou que são fracas de modo geral, a produção acadêmica no Brasil é muito boa. A área de ciências agrárias é muito forte. A questão é que esse conhecimento é pouco levado em conta. Estamos numa fase de negação da ciência. Por isso, apesar de se produzir muito, as decisões de políticas públicas não são tomadas com base em critérios técnico-científicos, mas a partir do lobby e das pressões econômicas que não querem reconhecer determinadas verdades científicas.

A universidade vem fazendo um bom trabalho e há uma diversidade de estudos no Brasil. Tenho participado do grupo de pesquisadores em Segurança Alimentar e Nutricional e a cada ano há mais trabalhos sobre esse tema transversal, que engloba desde a temática agrícola até a nutricional. Os trabalhos são de boa qualidade e de reconhecimento internacional. As pessoas estão trabalhando bastante, apesar da falta de investimento, do desincentivo que há na própria universidade e da tentativa de a transformarem numa escola de treinamento de capacitação de pessoas, quando na verdade a universidade em si é ensino, pesquisa e extensão.

 

IHU On-Line - A pesquisa de que o senhor participou também aponta um grande consumo de alimentos industrializados, especialmente dos ultraprocessados. Por que se opta tanto por estes produtos no Brasil?

Walter Belik – As razões são múltiplas e levam em conta as mudanças de hábitos alimentares, de padrão de consumo, de propaganda e demográficas. A população está melhorando de renda historicamente e a sociedade está cada vez mais urbanizada, idosa, e em busca de facilidade e comodidade. Além disso, o mercado de trabalho é dinâmico. Se antigamente o papel da mulher era ficar em casa cozinhando, hoje não é mais assim e elas já representam a maioria do mercado de trabalho. Todos esses fatores empurram o consumidor para a facilidade de consumir os produtos ultraprocessados, pré-prontos.

Desmontar essa máquina é extremamente complicado. Costumo dizer que na pandemia as pessoas imaginavam que teriam mais tempo e até poderiam fazer o pão de fermentação natural. Algumas pessoas até fizeram pão uma ou duas vezes, mas depois passaram a comprá-lo no supermercado, porque é algo que dá trabalho. Além disso, o trabalho em casa não diminuiu. A propaganda enganosa também exerce grande influência no comportamento das pessoas, ao indicar que o biscoito é vitaminado, por exemplo.

 

 

IHU On-Line - Como compreender o fato de dois litros de refrigerante custarem muito menos do que um litro de suco de frutas 100% natural? De que forma essa diferença impacta a dieta dos brasileiros?

Walter Belik – O custo de produção de dois litros de refrigerante é muito barato, porque é basicamente água com 40% de açúcar. Além disso, o refrigerante tem um papel social simbólico para as famílias de baixa renda. O sujeito poder tomar um refrigerante é algo significativo – antigamente só se comprava refrigerante em dias de festa. Mas o suco de frutas de caixinha é pior do que o refrigerante por conta da quantidade de açúcar e aditivos químicos que contém. É por isso que na embalagem diz que o suco é feito à base da fruta, ou seja, contém pouquíssima fruta e o restante é corante.

Tem uma comparação melhor de ser feita, entre os preços do leite comum e do litro de álcool no posto de gasolina – o preço do leite em algumas regiões pode menor que o do álcool. Um pecuarista que tem gado leiteiro precisa vacinar as vacas e ordenhá-las todos os dias, quer dizer, uma vaca, na melhor das hipóteses, produz 15 litros de leite por dia, enquanto uma usina de álcool produz milhões de litros de álcool. Então, se o litro de leite custa tão caro para o produtor, em comparação com o álcool e o etanol, no fundo, ou o produtor de leite está ganhando muito pouco ou o usineiro está ganhando muito.

Essa régua de preços é complicada de ser comparada e os produtos industrializados têm uma possibilidade de manobra de preço maior para concorrer. Se o preço do refrigerante fosse mais barato, as empresas continuariam lucrando.

 

IHU On-Line- Outro grande destaque na sua pesquisa sobre gastos e consumo dos brasileiros é o consumo de alimentos à base de farinha de trigo, como o pão de sal ou pão francês. O Brasil não é um grande produtor de trigo. Por que se consome muito mais um produto que depende de importação e muito menos alimentos de produção local?

Walter Belik – Isso faz parte da herança cultural. Na década de 1950, o Brasil recebeu trigo a partir de doações internacionais e se impôs um determinado hábito de consumo no país – o próprio Programa Nacional de Alimentação Escolar começou assim. Os EUA doavam os excedentes de trigo para garantir a manutenção do preço dos agricultores norte-americanos. Então, retiravam do mercado o excedente e doavam para países da América Latina a partir do Programa Aliança para o Progresso. O objetivo era conter o barril de pólvora social e o avanço do comunismo durante a Guerra Fria. O trigo introduzido no Brasil nesse período era subsidiado e o subsídio durou até os anos 1990.

Hoje o Brasil já produz metade do trigo que consome, mas na época produzia somente 20%. Além disso, o trigo brasileiro é de pior qualidade do que aquele que importamos dos nossos vizinhos. Em função desses acontecimentos, o trigo passou a ser muito barato e a fazer parte da dieta do brasileiro. Numa época de crise como esta que vivemos, é possível substituir o feijão e o arroz pelo macarrão, que até diminuiu de preço.

O pão francês, por sua vez, foi introduzido na dieta a partir dos anos 1950, 1960. O Sul e São Paulo têm uma colonização europeia, mas nos demais estados não havia essa cultura. Minas Gerais tem a cultura de consumir a broa de milho, o fubá; o mineiro não comia pão no café da manhã. Mas essa cultura foi se disseminando e hoje temos uma cultura do trigo, que é um alimento consumido em todas as regiões do país. É difícil reverter esse hábito, que está se aprofundando. A pizza, por exemplo, virou uma comida nacional.

 

IHU On-Line - É comum ouvirmos nos supermercados que frutas, verduras e legumes são caros, que comer bem custa muito, especialmente a busca por orgânicos e alimentos mais naturais. Isso é real? Por quê? É possível manter uma dieta saudável sem gastar excessivamente?

Walter Belik – Sim, mas o ponto que gostaria de ressaltar é o que comentei no início da entrevista: o custo da alimentação foi caindo no Brasil, relativamente. O complicado são as escolhas que as pessoas fazem: deixam de comer um produto mais fresco e saudável para consumir outras coisas. As pessoas precisam gastar tanto dinheiro com um celular ou com itens de habitação e transporte? É possível reduzir os custos de outras atividades e ter uma alimentação mais saudável.

É óbvio que um alimento fresco tem que remunerar o produtor de alguma forma. Isso não significa que o alimento tenha que ser muito caro, mas se você pensar no processo produtivo, é mais complicado gerenciar a logística de um alimento que foi colhido na noite anterior, para que o consumidor possa aproveitar aquele frescor, do que um produto industrializado, como uma massa de pizza, que é feita numa linha de produção. É preciso valorizar o produto fresco e o consumidor tem de entender que na outra ponta tem um produtor que precisa ser bem remunerado. É possível ter uma alimentação saudável com frutas e verduras, comprando os produtos de época. A Ceasa divulga os preços dos alimentos do FLV (fruta, legume e verdura) que estão mais baratos e existem aplicativos que permitem verificar os preços nos supermercados. Ou seja, é possível ter uma alimentação mais saudável, mas não podemos equiparar os produtos frescos aos produtos industrializados. A competição é diferente.

 

IHU On-Line – É possível comer menos e melhor, considerando os altos índices de obesidade no país por conta do excesso do consumo de açúcar?

Walter Belik – Sem dúvida. É possível mudar a dieta reduzindo produtos calóricos, ultraproteicos, ultraprocessados, e consumir produtos frescos, vegetais. Talvez a conta final dê na mesma, mas a pessoa está comendo alimentos mais saudáveis.

 

IHU On-Line - Nesses últimos anos, o Brasil voltou ao Mapa da Fome. O que nos levou a este retrocesso? E quais os desafios para sairmos desse mapa? Que tipo de política pública o país precisa para garantir a segurança alimentar?

Walter Belik – O Brasil entrou no Mapa da Fome rapidamente. Os dados da POF de 2013 mostravam que no quesito segurança alimentar grave, o Brasil tinha caído para 3,2% – e abaixo de 5% é considerado residual, embora a obesidade tenha aumentado. Os dados da última POF mostram que o Brasil entrou novamente no Mapa da Fome. Mais uma vez, não estou falando do governo Bolsonaro e de Temer, mas de um período anterior. Houve um desmonte das políticas, a economia reduziu o desempenho, aumentou o desemprego, diminuiu a renda, e é neste momento que mais precisamos das políticas.

 

Renda básica e rede de proteção social

 

A segurança alimentar é uma necessidade. Como diz José Graziano, estamos falando de combater a fome e não de colocar o homem em Marte, ou seja, temos meios materiais, intelectuais e financeiros para resolver esse problema. Não ter fome no mundo é civilizatório, diante de tanta abundância e capacidades.

É preciso uma rede de proteção social para garantir que as pessoas possam se segurar em períodos de crise. Na campanha eleitoral deste ano, voltou a discussão sobre uma renda básica universal para que todos possam ter minimamente condições de consumirem alimentos. Essa é uma política compensatória porque se todos tivessem emprego e se a economia crescesse, não seria necessária uma política desse tipo. Mas precisamos colocar esse limite de primeiro garantir uma renda e, depois, garantir que mesmo as pessoas que não têm acesso à renda possam ter acesso a alimentos.

O acesso a alimentos se dá através de programas públicos de alimentação. A alimentação escolar é um deles. No Brasil existem 43 milhões de crianças que recebem alimentação escolar 200 dias por ano. A manutenção e a ampliação desse programa são fundamentais para garantir que todos os dias do ano, além dos letivos, a criança possa fazer duas ou três refeições na escola.

 

 

O programa de restaurantes populares, que vende comida a um real, se expandiu rapidamente, mas de 2014 para frente, ele deixou de existir. O restaurante que atende cinco mil pessoas por dia, com uma alimentação saudável, é fundamental para quem trabalha no centro da cidade ou está desempregado, para que tenham a possibilidade de fazer ao menos uma refeição por um real.

Os bancos de alimentos que recolhem alimentos bons para o consumo, mas que não estão sendo comercializados, também são importantes. Se existem bancos que recolhem esses alimentos e os distribuem através de outras entidades, também é possível garantir a segurança alimentar.

Nas eleições municipais discutiram sobre hortas comunitárias. Há uma série de terrenos vazios nas cidades que poderiam ser destinados a grupos de desempregados ou a associações. É tudo uma questão de discutir como fazer.

 

IHU On-Line – A que o senhor atribui o desmonte das políticas em meados de 2014?

Walter Belik – Por causa da não intervenção nos mercados, do teto de gastos, da ideia de que o país precisa ter superávit. Em função disso, alguns programas foram esvaziados. O benefício do Bolsa Família teve um aumento antes da eleição de 2014 de outro antes das eleições de 2018. Já o repasse da alimentação escolar, que se dá por aluno matriculado, também vai completar quatro anos de congelamento. Houve uma preocupação excessivamente financeira com relação à redução dos programas de combate à fome e segurança alimentar num momento em que precisávamos muito deles. Essa situação foi se agravando e hoje está muito grave. Nesse sentido, os anos de 2018 e 2019 foram péssimos e 2020, nem se fala.

 

 

IHU On-Line - Diante desse contexto de crises, da econômica à ambiental, da social à sanitária, o papa Francisco tem insistido na necessidade de concepção de uma outra economia, que valorize a vida nas suas mais variadas formas e não a economia por si mesma. O senhor acompanha os debates nesse sentido? Como vê a proposta do Papa?

Walter Belik – Eu tenho acompanhado e vi que o Papa promoveu um evento internacional na semana passada. O movimento é interessante e tem mobilizado jovens. Vários estudantes da nossa universidade estão envolvidos com a Economia de Francisco e Clara. É incrível a vanguarda do Papa nessa discussão. Num mundo em que se está negando a mudança climática, o Papa fala em sustentabilidade, porque não é possível uma economia de desenvolvimento sem sustentabilidade e sem solidariedade.

É possível construir uma economia capitalista – ninguém está falando em mudança de regime político –, mas com solidariedade, percebendo que não adianta acabarmos com o mundo para ficarmos mais ricos. Vejo com muita simpatia e estou acompanhando, na medida do possível, este debate. A Encíclica do Papa sobre sustentabilidade [Laudato Si’] é bastante avançada e incorpora contribuições científicas importantes sobre essa questão. Nesse particular, estamos caminhando muito bem e espero que o movimento cresça.

 

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