25 Fevereiro 2021
"No entanto, seria incorreto (e, aliás, contraproducente) entregar-se a atitudes apocalípticas, sem colher os indiscutíveis benefícios que essa tecnologia pode trazer se for mantida sob controlo e colocada ao serviço de objetivos humanizadores. Também neste caso é necessário não esquecer a ambivalência estrutural de toda conquista humana ou lembrar - como argumentava Francis Bacon - que toda inovação “sempre conserta algo, mas prejudica alguma outra coisa”. Trata-se, portanto, de elaborar um modelo ético capaz de fornecer orientações positivas tanto no nível pessoal como no social", escreve Giannino Piana, teólogo italiano, ex-professor das universidades de Urbino e de Turim, na Itália, e ex-presidente da Associação Italiana dos Teólogos Moralistas, em artigo publicado em Il Gallo, de janeiro-fevereiro de 2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
A revolução digital em curso representa o desafio mais importante que o homem é chamado a enfrentar para definir sua identidade e planejar seu futuro. As ferramentas disponíveis têm de fato um impacto decisivo na vida das pessoas e da sociedade, visto que afetam os vários setores em que se desenvolve a economia, a política, a cultura, etc. - e exercem grande influência na formação da opinião pública - basta pensar na troca de milhões de informações - de fato condicionando, inclusive de forma pesada, as escolhas de cada um.
Potencialidade e perigos. A tecnologia digital, com suas múltiplas implicações, bem analisadas em um volume recente de Marco Damilano e Antonio Nicita (Big Data. Come stanno cambiando il nostro mondo, IlMulino 2020), onde potencialidades e perigos são registrados, não muda apenas os aspectos externos da convivência, mas, dando origem a novos usos, novas práticas e novos hábitos, afeta a vida interior pessoas (sua consciência) e acaba produzindo uma verdadeira mutação antropológica. Por isso, não pode ser considerada neutra - como pensam aqueles que remetem tudo ao uso positivo ou negativo que é feito -, mas deve ser avaliada levando-se em consideração que sempre desdobra seus efeitos em um contexto de uso e na relação com as outras tecnologias. Para entender a extensão da influência exercida por essas tecnologias e as repercussões que elas têm na condução da vida econômica e social, basta lembrar a importância adquirida pelas chamadas TI (Tecnologia da Informação) incluindo Google, Amazon, Facebook, Apple, Microsoft, que, além de ter entrado de forma invasiva e generalizada na vida de todos graças à multiformidade do uso que delas se pode fazer - na verdade, servem para comunicar e fazer compras, para escrever, contar, planejar, desenhar e intermináveis outras atividades cotidianas - ocupam os cinco primeiros lugares no ranking de valor de mercado das empresas estadunidenses, desfrutando de uma posição dominante que em outros tempos não teria sido tolerada.
Os efeitos negativos de sua presença no nível socioeconômico são evidentes. Graças à sua entrada no mercado, a concentração de grandes empresas aumentou, enquanto a taxa de entrada de novas empresas caiu drasticamente e os lucros das empresas digitais cresceram enormemente, graças também à ausência de políticas de concorrência e regulação dos mercados por causa da negligência ou da cumplicidade do poder político. A consequência negativa desses processos tem sido o aumento das desigualdades; a redução da concorrência de fato provocou (e só poderia provocar) uma queda nos investimentos e uma desaceleração no crescimento da produção.
Mas o aspecto ainda mais grave e preocupante é a redução dos empregos, com o aumento da pobreza até mesmo na chamada classe média. A cota de geração de empregos das empresas digitais é de fato muito limitada para todas as empresas mencionadas, com exceção da Amazon, que possui uma rede de distribuição que necessita de mão de obra (e que, no entanto, representa apenas 0,4% dos postos de trabalho totais nos EUA). Isso significa que sua atividade tem um impacto quantitativo muito modesto sobre o crescimento econômico dos EUA - são atividades que exercem extrema influência sobre o sistema econômico no nível de geração de valor com escassos resultados sobre o da economia real - e que acaba determinando um retrocesso na produtividade e no emprego. Se passarmos então à análise dos efeitos que envolvem mais diretamente a vida pessoal, os riscos de recaídas negativas não são menos relevantes. Dois são sobretudo os dados que emergem imediatamente a esse respeito e que merecem atenção: a perda de algumas faculdades subjetivas fundamentais e a perda da privacidade.
O primeiro desses dados - a perda das faculdades subjetivas - é o resultado do uso crescente dessas ferramentas para realizar operações feitas no passado diretamente pela pessoa, que colocava ativamente em função suas próprias capacidades. A consciência de que são capazes de realizar operações cada vez mais complexas em espaços de tempo muito curtos e que, portanto, favorecem um aumento exponencial dos poderes cognitivos do homem, leva ao seu uso ilimitado, também para operações simples, que no passado eram geridas por cada um ativando as faculdades pessoais, como a memória, a racionalidade, a fantasia, etc., com o perigo (não puramente hipotético) de sua total atrofia. Tudo o que constitui nosso Eu migra para um banco de dados por meio das telas; assim, é determinada uma extensão do self realizado por meio do gêmeo digital, que impede a ativação das faculdades pessoais.
O outro dado - o da privacidade - é consequência do primeiro. A entrega dos dados pessoais à máquina coincide com a sua publicidade, portanto, com o cerceamento total da privacidade. Para além da preocupante união entre o poder de monopólio e propriedade da informação - a coleta de dados pessoais pelas empresas de informação tem fins principalmente comerciais - a construção do gêmeo digital garante que os dados pessoais se tornem disponíveis para terceiros e que uma sondagem da vida de cada pessoa seja possível detectando em detalhes os vários aspectos de sua personalidade e identificando claramente suas escolhas preferenciais.
Dietrick De Kerckhove e Maria Pia Rossignaud destacaram claramente a relevância desses dois dados e a ligação entre eles, e escrevem:
Confiando nos instrumentos virtuais, delegamos a eles poderes consideráveis e nós, como indivíduos, perdemos cada vez mais memória, capacidade de julgamento, imaginação e privacidade ... De fato, a maior parte dos nossos dados pessoais já está disponível para terceiros, e por isso o cenário plausível que combina tecnologias para smartphones e assistentes digitais é o de casais digitais não só do nosso presente, mas de cada detalhe da nossa vida.
E eles acrescentam:
Estar equipados com um gêmeo baseado num banco de dados, aprendizado de máquina e inteligência artificial com instrumentos pertinentes provavelmente fornece a cada um de nós acesso a poderes cognitivos enormemente aumentados, mas quanto mais usamos esses poderes, menos dependeremos de nossas faculdades internas: pensar, imaginar, planejar, projetar, julgar, escolher, decidir e seremos cada vez mais transparentes nos mínimos detalhes (La grande migrazione verso il gemello digitale, in "Avvenire", 9 de julho de 2020, p 24).
Para tornar ainda mais radical a dimensão da mudança, para a qual há quem fale de uma verdadeira revolução antropológica, é a reviravolta das coordenadas espaço-temporais tradicionais, com a demolição do dualismo passado-presente em razão de um presentismo, que dá a sensação de ubiquidade ou dá origem - como defende Antonio Loperfido (Ti ricorderò per sempre. Lutto e immortalità artificiale, Edizioni Dehoniane 2020) - a uma espécie de "imortalidade digital".
As redes sociais, em particular o Facebook, há muito que iniciaram uma reconversão da sua função de espaço de relação para um gigantesco arquivo de memórias, com a produção de uma autobiografia coletiva, na qual as relações, além de se estenderem quantitativamente de forma desmedida, podem se tornar evanescentes e desaparecer. Eles criam estranhos efeitos delirantes a ponto de alimentar a falsa crença de uma relação contínua com o parente falecido.
Não menos relevante (e de fato desestabilizadora) é o que Baudrillard define como a "morte da realidade", ou seja, a substituição do real pelo virtual e, em um sentido mais amplo, a prevalência da opinião subjetiva sobre os fatos objetivos; a presunção, em outras palavras, de que nossa relação com a realidade é mais importante do que a própria realidade, que é portanto destituída de significado. A relação simbiótica que a pessoa estabelece com a máquina, que se sacraliza assumindo as características de uma verdadeira divindade, e portanto transformada em fonte de verdade, determina uma troca sutil mas avassaladora entre as dinâmicas psicológicas do sujeito e os mecanismos próprios da tecnologia: uma troca destinada a afetar profundamente a forma como nos relacionamos com o mundo, dando vida a atitudes e comportamentos alienantes.
A tecnologia digital, pelo impacto que tem - como vimos - na vida das pessoas e da comunidade exige ser submetida a um severo escrutínio crítico no terreno ético. No entanto, seria incorreto (e, aliás, contraproducente) entregar-se a atitudes apocalípticas, sem colher os indiscutíveis benefícios que essa tecnologia pode trazer se for mantida sob controlo e colocada ao serviço de objetivos humanizadores. Também neste caso é necessário não esquecer a ambivalência estrutural de toda conquista humana ou lembrar - como argumentava Francis Bacon - que toda inovação “sempre conserta algo, mas prejudica alguma outra coisa”. Trata-se, portanto, de elaborar um modelo ético capaz de fornecer orientações positivas tanto no nível pessoal como no social.
No primeiro nível - o pessoal - o verdadeiro desafio é a capacidade de reagir ao perigo de uma forma de individualismo indefinido, construindo um viver juntos, feito de verdades compartilhadas e valores comuns. A tecnologia digital, alicerçando-se na subjetividade individual, favorece a tendência a uma forma de autorreferencialidade, que é, aliás, destituída, graças à redução assinalada no exercício das faculdades propriamente humanas, de uma verdadeira participação pessoal. Deve-se acrescentar - e este é o aspecto mais relevante – que para acentuar a subjetivação tem contribuído (e contribui), de maneira determinante, a relação cada vez menos direta (e física) com o outro, substituído pela mediação do instrumento comunicativo, e a negação da importância dos fatos para a prevalência das opiniões, com a consequente ausência de um critério objetivo de verdade e de quadro de valores compartilhado.
A possibilidade de vencer essas perigosas tentações implica, por um lado, uma utilização moderada e prudente da tecnologia digital, com a capacidade de se distanciar mesmo através da suspensão temporal; estar constantemente conectados cria uma dependência que acaba por condicionar fortemente a própria existência, também em termos de tempo dedicado às mensagens, determinando uma forma de escravidão psicológica, que também pode assumir (os casos se multiplicam a cada dia) conotações claramente patológicas. E comporta, por outro lado, o cultivo de iniciativas que permitam o desenvolvimento, não apenas virtual, das relações interpessoais e de atitudes pessoais ligadas ao exercício de faculdades superiores. A consciência de que a pessoa (cada pessoa) necessita para crescer um tu e um nós deve levar a abrir espaço para encontros situados em contextos espaço-temporais precisos, que dão real concretude à experiência da própria vida.
Se passarmos então para o lado socioeconômico - este é o segundo nível - a questão fundamental passa a ser aquela do controle do sistema e, mais radicalmente, da identificação de um uso alternativo dos instrumentos a disposição. O mercado é hoje dominado - como vimos - pelos gigantes da web, que com as suas plataformas digitais exercem uma influência decisiva nas escolhas dos consumidores, violando a sua liberdade mediante o levantamento do perfil de cada um, dos gostos e hábitos e das propensões para compra; tudo isso constitui um instrumento fundamental para a ativação de estratégias comerciais e políticas.
O capitalismo digital, que representa a principal forma do capitalismo de hoje, precisa ser regulado por normas precisas, que contenham seus efeitos negativos, tanto em termos de segurança como de privacidade, e permitam às pessoas manter a identidade e o crescimento pessoal. A política é então chamada em causa, pedindo a adoção de inovações estratégicas importantes, que não podem ser promovidas pelos Estados individualmente, mas requerem um compromisso transnacional. O aumento desmedido do poder tecnológico e da interdependência planetária exigem que as intervenções sejam planejadas em conjunto, cuja eficácia se dá pela capacidade de interferir nos processos em curso de forma cada vez mais extensa - a globalização tornou evidente a impossibilidade de Estados individuais lidar com problemas que transcendem amplamente suas fronteiras - e com autoridade cada vez maior.
A gravidade das questões em jogo torna necessária, se queremos preservar as perspectivas de um verdadeiro humanismo e não caminhar para um transumanismo, que gere um homem aumentado, mas não melhorado, a identificação de um caminho comum dos povos e dos cidadãos no sinal da criação das condições para a concretização de processos inspirados naqueles valores que fundamentam a possibilidade de uma expressão autêntica de si mesmos, a partir da própria liberdade, e criam as premissas para uma convivência civil democrática e solidária.
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Um humanismo tecnológico. Artigo de Giannino Piana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU