22 Outubro 2020
É um livro monumental em tamanho e ambição e explica de cheio, incluindo a Casa dos Sonhos da Barbie e o videogame Pokémon Go, como o capitalismo mudou de época, como entramos no que Shoshana Zuboff denomina “La era del capitalismo de la vigilancia” (Paidós).
A entrevista é de Justo Barranco, publicada por La Vanguardia, 10-10-2020. A tradução é do Cepat.
Se no capitalismo industrial se explorava a natureza ao máximo e hoje vivemos uma emergência climática, o novo capitalismo de vigilância, criado por Google, mas seguido por empresas digitais e não digitais, explora com afinco a própria natureza humana para transformá-la em previsões do nosso comportamento para comercializar, destaca Zuboff, professora emérita da Harvard Business School, que no final dos anos 1980 já havia publicado A era da máquina inteligente.
Um processo que nasceu no terreno fértil do neoliberalismo, mas também da crise das pontocom e do 11-S, e pelo qual o Google começou a aproveitar os dados das buscas, não para melhorar seu produto, mas, ao contrário, para vender enorme publicidade personalizada. Hoje, com a escala alcançada e com a tecnologia 5G e Internet das Coisas já presentes, acredita que ameaça o futuro da autonomia humana e da democracia. Não apenas buscam nossos dados, diz. Digitalizam nossas emoções e modificam nosso comportamento em seu proveito.
“Houve um tempo em que buscávamos no Google. Agora, o Google nos busca”, denuncia no livro.
Pensávamos que usávamos o Google e as redes sociais, e são o Google e essas redes que nos usam. Pensamos que seus serviços são gratuitos, mas essas companhias pensam que nós somos gratuitos. Pensamos que são companhias inovadoras que ocasionalmente cometem erros que violam a privacidade, quando a realidade é que esses erros são as inovações. Pensamos que a web nos dá acesso a qualquer tipo de conhecimento registrado, quando de fato essas empresas estão extraindo nossa experiência, transformando nossas vidas em dados e reivindicando essas vidas como seu conhecimento registrado.
O maior paradoxo é que a sua retórica procurou nos convencer que a privacidade é algo privado. Que decidimos a quantidade de informação pessoal que damos ao Google e Amazon e que podemos controlar esse intercâmbio. Mas o fato real é que não é privada, é pública. Toda vez que dou a estas companhias algo de informação pessoal, sua interface lhes permite obter muitos dados a mais de minha experiência, sem que eu esteja consciente... Até captar as microexperiências em meu rosto que preveem minhas emoções e meu comportamento, e assim nutrir grandes sistemas de inteligência artificial que são sistemas de conhecimento e poder desigual. Uma sociedade que cuida de sua privacidade é muito diferente de uma indiferente a ela ou que inclusive é agressiva em seu desejo de eliminá-la. A privacidade é pública, se a entregamos, destruímos a sociedade e diminui a democracia.
Disse que o capitalismo industrial explorava a natureza e que agora o capitalismo de vigilância explora a natureza humana. Para onde nos leva?
Há séculos, o capitalismo busca coisas que não são ainda parte da dinâmica do mercado para as transformar em mercadorias. Hoje, temos um novo mundo, o digital. Pequenas empresas tentaram verificar como fazer dinheiro nele. Houve uma bolha pelas pontocom e explodiu. As empresas estavam desesperadas e os investidores se retiravam. Nessa emergência, as empresas não tinham tempo e no Google descobriram uma mata virgem como novo espaço de extração e mercantilização: nós, sobretudo nossas experiências privadas. Fincaram suas bandeiras em nossas vidas. E disseram que é seu material bruto e gratuito, seus ativos privados para vender como mercadoria.
Assim nasce o capitalismo de vigilância e explica as capitalizações do Google, Facebook, cada vez mais da Amazon, Microsoft, Apple e de milhares de empresas, não apenas no setor tecnológico. O CEO da Ford disse que deseja atrair financiamento como o do Google e Facebook, mas ninguém está interessado. Sendo assim, mudarão a Ford e será um sistema operativo de transporte que extrairá dados das pessoas que dirigem seus carros e os acrescentará aos que deles na Ford Credit para criar grandes bases de dados e atrair investimentos. É o dividendo da vigilância.
Afirma que não só obtêm informação, como também impelem nosso comportamento.
Documentos vazados do Facebook mostram que em suas fábricas a inteligência artificial toma trilhões de dados por dia e faz seis milhões de previsões de comportamento humano por segundo. E como a competição neste mercado se intensifica, descobrem que os dados mais preditivos vêm de como intervir em nosso comportamento para garantir resultados comerciais.
Em 2013, o Facebook fez experimentos que mostravam como manipular com sinais subliminares, dinâmicas de comparação social, microtargeting psicológico, prêmios e punições. Com uma compilação de dados muito inteligentes, viram que podiam influenciar o comportamento no mundo real.
Foi em 2018, com a Cambridge Analytica, que vimos que os métodos do Facebook eram utilizados em grande escala, passando de objetivos comerciais a políticos. A campanha de Trump usou os dados do Facebook para destacar psicologicamente muitos eleitores negros e os convencer a não votar em 2016, uma das razões pelas quais Hillary perdeu.
A tecnologia iria aumentar a autonomia individual, o conhecimento, a democracia, e agora diz que tudo isso está em perigo.
O capitalismo de vigilância é profundamente antidemocrático. A modificação da conduta como escola de comportamento sempre foi contra a ideia de liberdade. B. F. Skinner, grande teórico da modificação comportamental, escreveu Para além da liberdade e da dignidade, que lhe pareciam entidades ficcionais, valores imaginários problemáticos que vão contra a eficácia social. Assim como ele, os homens que comandam os grandes impérios do capitalismo de vigilância também acreditam que possuem uma forma melhor de governar o mundo, com a verdade algorítmica e a governança computacional, superiores à democracia.
O século digital deveria democratizar o conhecimento, mas vemos enormes concentrações de conhecimentos em poucas empresas que monopolizam a capacidade de entender essa informação. Temos uma pequena elite, uma casta sacerdotal que controla concentrações de conhecimento inauditas. Conhecimento sobre nós. E lhes confere poder para nos influenciar. É uma manifestação fundamentalmente antidemocrática do capitalismo e ocorreu porque, nos últimos 20 anos, o capitalismo de vigilância não foi impedido pela lei, ainda precisamos criar os direitos, os marcos legislativos, os paradigmas regulatórios que tornem o mundo digital compatível com a democracia. O capitalismo de vigilância foi inventado em 2001 pelo Google. O que mais aconteceu em 2001?
O 11-S.
Com o 11-S se deixou de discutir no Congresso a respeito da proteção de direitos de privacidade. Permitiu-se que essas empresas, já conhecidas por seu golpe à privacidade, se desenvolvessem de modo que invadissem nossa privacidade, porque as agências de inteligência dos Estados Unidos e da Europa, que não podem reunir esses dados, obteriam delas. Assim, o capitalismo de vigilância teve 20 anos para se desenvolver sem qualquer lei impeditiva e se tornou muito perigoso para as pessoas, a sociedade e a democracia.
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“A privacidade é pública, se a entregamos, destruímos a sociedade”. Entrevista com Shoshana Zuboff - Instituto Humanitas Unisinos - IHU