“Comida para todos”: a inteligência artificial pode se transformar em arma contra a fome. Entrevista com Vicenzo Paglia

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28 Setembro 2020

Vincenzo Paglia, presidente da Academia para a Vida, participa do encontro “Apelo a uma ética da IA”.

A entrevista é publicada por Vatican News, 24-09-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

A tecnologia que povoa a “galáxia digital” é um “presente de Deus”, ainda que nem sempre seja fácil “prever seus efeitos” e “definir suas responsabilidades”. O papa Francisco falou assim das novas fronteiras da Inteligência Artificial ao final de fevereiro, na Assembleia Plenária da Pontifícia Academia para a Vida, que se celebrou junto com a Conferência “O ‘bom’ algoritmo”. E como dom, se usa de maneira ética, a Inteligência Artificial pode ajudar o homem a ganhar o desafio da comida para todos.

Um apelo da FAO, IBM, Microsoft e Pav

Os primeiros signatários do chamado “Apelo por uma ética da IA”, um resultado concreto da Conferência de fevereiro, estão convencidos disso, isto é, o diretor-geral da FAO Qu Dongyu, o vice-presidente da IBM John Kelly II, presidente da Microsoft Brad Smith e o presidente da Academia para a Vida, arcebispo Vincenzo Paglia, que nesta tarde às 15h de Roma, se encontrarão online na Conferência Internacional: “IA, alimento para todos. Diálogo e experiências”.

Em uma hora e meia de debate, o objetivo do Apelo será reafirmado em primeiro lugar: garantir um futuro em que a inovação digital e o progresso tecnológico estejam a serviço do gênio e da criatividade humana e não sua substituição gradual. A seguir, soluções concretas para a crise alimentar através do uso ético de IA serão apresentadas e, finalmente, indicar um caminho virtuoso para a pandemia pós-Covid-19.

“Temos os recursos para tornar este planeta mais habitável, sem explorá-lo indiscriminadamente, como nos pede o Papa”. É a convicção do presidente da Pontifícia Academia para a Vida, arcebispo Vincenzo Paglia, que recorda ao Vatican News o valor do apelo feito em fevereiro e desta nova etapa: com a FAO, com a Microsoft e com a IBM, em fevereiro passado em Roma, assinamos um “Apelo por uma ética da IA”, para o desenvolvimento e uso da Inteligência Artificial em favor de toda a família humana e não de poucos afortunados. A ciência e a cultura humanística devem se unir e fundir-se com as culturas, conhecimentos e tradições dos povos do mundo, para dar a toda a humanidade um futuro diferente e melhor. A Igreja embarca neste caminho e nós destacamos justamente com esse lema, convencidos de que a tecnologia deve ser usada de forma ética, para enfrentar e solucionar as carências, inclusive a falta de alimentos. Neste sentido, a Igreja sente-se empenhada, num mundo em que pela primeira vez mais de 9 bilhões de pessoas podem ser alimentadas, mas mais de 500 milhões continuam passando fome.

 

Confira a entrevista com dom Vincenzo Paglia.

 

O que vai acontecer especificamente hoje?

Vamos retomar o diálogo com o presidente da Microsoft, Brad Smith, o vice-presidente da Ibm, John Kelly II, e o diretor-geral da FAO, Qu Dongyu. O tema será alimentação e inteligência artificial. De fato, a maldição da fome é um poço sem fundo de dor onde até o mistério de Deus permanece emaranhado, onde a vida humana é exposta ao seu limite biológico e à violência do pecado. Uma vez que o abastecimento de alimentos para todo o planeta tornou-se científica e tecnicamente sustentável, nossas estatísticas infelizmente se tornaram insustentáveis. Há muitas pessoas que não podem se sentar nesta mesa comum em nosso planeta, e isso não é mais suportável.

Durante o encontro, algumas experiências positivas e concretas do uso da Inteligência Artificial nos desafios ambientais globais também serão apresentadas. Você pode nos dizer algo?

Apresentaremos duas experiências concretas de monitoramento do uso dos recursos hídricos, porque a água também é um assunto muito sensível. Torna-se central para o futuro: não são poucos os estudiosos que falam das guerras do futuro como as guerras pela água. Também aqui os recursos devem ser colocados a serviço do bem comum e não para dominar ou explorar indiscriminadamente a terra e as pessoas. A tecnologia ligada à vigilância e correta distribuição dos recursos, alimentos e água, é por sua vez um grande recurso para tornar este planeta mais habitável, como o papa Francisco nunca deixa de lembrar.

Seu desejo era que governos e startups se juntassem a este debate e clamassem por ética na Inteligência Artificial. Eles tiveram sucesso?

Sim, já tivemos a importante assinatura do governo italiano com a ministra Paola Pisano. Agora, após a inevitável estagnação devido à quarentena, nosso compromisso se renova, para conduzir outros governos, empresas, universidades e sociedade civil, a um grande compromisso moral ao nível planetário, para que a técnica, neste caso a Inteligência Artificial, responda a critérios éticos, educacionais e até legais para ajudar a todos a um renascimento humanístico e não a uma incivilidade que se tornaria guiada apenas pela técnica.

Com este apelo, a Igreja Católica demonstra uma abertura de crédito e confiança na ciência e tecnologia. Como o papa Francisco disse, a tecnologia é um dom para ser usado, mas da maneira certa...

Claro que sim. O Papa também escreveu isso recentemente na Exortação Apostólica Querida Amazônia, e há 5 anos a Encíclica Laudato Si’ vem apontando nesta direção, ou ainda, está reafirmando agora nas catequeses dominicais. Na verdade, há uma dupla reflexão a se fazer. Por um lado, devemos cuidar dessa casa comum, que deve ser habitada. Por outro lado, devemos prestar atenção à família humana que a habita. E assim as relações entre os povos, entre as pessoas e as relações entre os povos e as pessoas e o meio ambiente, são grandes desafios que não podemos deixar de enfrentar. Um se junta ao outro. Afinal, é o que nós, como cristãos, dizemos no Credo, quando dizemos que “esperamos que venha a nós o vosso Reino”, não apenas após a morte ou após o fim dos tempos. O mundo vindouro deve ser construído agora.

Também neste campo a Igreja é chamada a ser “extrovertida”, em suma. Existe o risco de um acidente, como recordou o Papa no Angelus de domingo? Não existe o perigo de termos que nos comprometer com um “modelo tecnocrático”, tão criticado por Francisco?

Um neoliberalismo tecnocrático aparece cada vez mais, em sua contradição, mas precisamente por isso é necessária uma dimensão humanística que deve reunir toda a tradição da Igreja, mas também outras tradições religiosas e todos aqueles que acreditam no homem, no humanismo. Nesse sentido, há uma grande aliança a se fazer e é por isso que devemos sair. Sair com os que pensam o contrário, sair com os humanistas, com cientistas e, certamente, quando você sai, não está coberto e seguro de forma alguma. Vamos sujar um pouco os sapatos e também temos que engraxá-los, assim como há água para se lavar as mãos quando se dá a mão aos que não as têm limpas. Nesse sentido, acho fundamental sermos mais ousados e criativos, porque o futuro tem que ser construído e não podemos construí-lo sozinhos, pois sós nós não vamos conseguir. Por isso uma grande aliança é decisiva para uma fraternidade universal, para um mundo que é uma casa comum para todos.

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