06 Dezembro 2019
Não é algo novo. Nos primórdios do cristianismo, os gnósticos identificaram o mal e a perdição com a matéria, enquanto o divino e a salvação pertenciam ao espiritual. De algum modo, essas ideias voltam a ressurgir, agora, com o que se denominou transumanismo, que pode ser definido como “a convicção de que o ser humano está em um suporte equivocado”.
A reportagem é de Pablo Garcinuño, publicada por InnovaSpain, 03-12-2019. A tradução é do Cepat.
Isso é explicado por Antonio Diéguez, professor de lógica e filosofia da ciência na Universidade de Málaga (UMA). Nas suas palavras, trata-se de acreditar que “o corpo biológico que ocupamos é algo desprezível, sujeito às vicissitudes da própria biologia: envelhecimento, doenças, sofrimentos ... e, é claro, acabará morrendo”. “O objetivo seria poder ter um suporte diferente”.
O pesquisador alerta que “o mero fato de não considerar o corpo parte de si mesmo, mas um mero suporte” tem “implicações filosóficas muito fortes”. Contudo, dentro dessa corrente de pensamento existem graus diferentes. Em geral, pode-se falar de “um movimento cultural e filosófico que visa aplicar novas tecnologias ao ser humano para melhorá-lo do ponto de vista físico, espiritual, moral e até emocional”. A partir desse ponto inicial, os mais radicais almejam “conseguir um ser humano muito melhorado, que já não pertença à nossa própria espécie”.
Diéguez distingue duas correntes. Por um lado, o pós-humanismo cultural, que “tem suas origens na filosofia continental e que estaria representado por Donna Haraway e Rosi Braidotti”. “Busca demonstrar que, de fato, já somos pós-humanos, ou seja, que a tecnologia produziu uma mudança fundamental em nossa própria condição”, afirma.
A outra tendência é o transumanismo tecnocientífico que defende a ideia, já mencionada, de superar o suporte biológico. O professor da UMA se considera um “crítico moderado” dessa corrente, especialmente porque muitas de suas previsões “são completamente infundadas”. “A ciência não pode sustentá-las, como, por exemplo, a ideia de que logo será possível colocar a mente em um computador”.
No entanto, considera que muitas de suas abordagens podem ser exploradas. “Forçam-nos a repensar a condição da natureza e da dignidade humana, e até nos obrigam a assumir mais radicalmente que o ser humano não é um produto acabado, mas o fruto de uma evolução biológica”, acrescenta.
O transumanismo tecnocientífico permitiu a esse professor reivindicar a filosofia de Ortega y Gasset, já que “antecipou algumas ideias interessantes que podem ser aplicadas hoje”. “Em primeiro lugar, percebeu que a tecnologia era algo substancial para o ser humano, não um acréscimo ou algo negativo”, analisa. “Ele fala de autocriação ou autofabricação: o ser humano se cria através da tecnologia. Sempre fez isso, não é algo novo”.
A diferença com as posições mais radicais é que “Ortega não perde de vista o fato de que o objetivo final de tudo isso é garantir que o ser humano possa desenvolver um projeto de vida satisfatório, e a tecnologia não pode oferecer conteúdo” porque “em si é algo vazio”. Na sua opinião, o filósofo madrileno tinha uma visão positiva da ciência, mas não ingênua.
Após obter a cátedra, em 2010, Antonio Diéguez se especializou inicialmente em realismo científico e depois se concentrou na filosofia da biologia. Atualmente, grande parte de seu trabalho se refere ao transumanismo, assunto ao qual dedicou um livro com o subtítulo A busca tecnológica do melhoramento humano.
No transumanismo, o que mais lhe interessa é o biomelhoramento humano. Considera que os avanços nesse campo “são mais reais e as consequências previsíveis em pouco tempo poderão ser analisadas de maneira mais sólida”. Medidas importantes já foram tomadas na aplicação da tecnologia para prolongar a vida humana, na criação de híbridos entre animais e seres humanos para a possibilidade futura de xenotransplantes - por exemplo, entre porcos e pessoas -, e na possibilidade de eliminar sérias mutações da fase embrionária.
“Quando se fala em modificar a linha germinal, por exemplo, aqueles que se opõem costumam usar três argumentos: que atenta contra a dignidade humana, que não se deve brincar de ser Deus e que isso é intrinsecamente mau”, refletiu o professor da UMA, em meados de novembro, no CNIO Workshop on Philosophy & Biomedical Sciences, organizado pelo Centro Nacional de Pesquisas Oncológicas (CNIO), com o apoio da Fundação Banc Sabadell. “Ninguém me convence. Se o genoma é modificado em um embrião para evitar uma doença, por que isso implica perda de dignidade?”.
Ele é um forte defensor de que, “no futuro, se essa tecnologia se tornar mais eficiente, poderá ser aplicada ao ser humano na linha germinal”, por exemplo, para melhorar embriões que tenham mais inteligência, mais saúde e mais longevidade. “Se isso é possível ser feito de maneira segura, não acho que isso atente contra a dignidade humana”, acrescenta.
A filosofia da ciência surge como um campo acadêmico nos anos 1930. “Tem uma ampla tradição, especialmente no mundo de língua inglesa". Ele e todos os que se dedicam a esta disciplina têm um pé nos dois mundos e são frequentemente vistos com desconfiança pelos profissionais de ambas as áreas.
“Há filósofos que pensam que isso é uma coisa periférica e não é a verdadeira filosofia, e também há cientistas que ficam surpresos ao saber que algo relevante pode ser dito sobre a ciência, a partir da filosofia”, reconhece Diéguez, embora afirme que essas atitudes estejam diminuindo pouco a pouco.
A complementaridade entre os dois campos é “rica, frutífera e absolutamente necessária para entender o mundo em que vivemos”. “Quando começo a matéria no início do curso, pergunto aos estudantes de filosofia se eles acham que a sociedade de hoje pode ser entendida sem prestar atenção no que a ciência e a tecnologia estão fazendo”, acrescenta.
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“O transumanismo acredita que o ser humano está em um suporte equivocado”, afirma filósofo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU